Com a admissão pela Vale de que pretende vender os navios adquiridos em 2008 e ainda não entregues, se encerra de vez o ciclo Roger Agnelli na presidência daquela que já foi a maior estatal brasileira, e hoje é a maior mineradora de ferro do mundo. (E monopólio das linhas de trem em Minas e no Pará, e terminais de ferro na maior parte do Brasil, e campeã de ahem "problemas" com povos nativos mundo afora.)
O curioso é que a medida, caso tivesse sido tomada por um ente público, levaria a gritos de impeachment de quem indicou o presidente da empresa. Roger Agnelli, pouco após ser indicado pelo Bradesco para a presidência da empresa (então ainda chamada Companhia Vale do Rio Doce), vendeu a frota própria dela, num momento em que navios estavam baratos e fretes baixos. Em 2008, antes da crise, quando os fretes e navios estavam no máximo, comprou um monte de navios, maiores do que quaisquer outros jamais vistos (o departamento de propaganda cunhou a expressão "valemax," análoga aos panamax, suezmax e outras classes de tamanho de navios, estas baseadas no tamanho máximo que pode passar em dado canal). Ou seja, vendeu barato, comprou caro, e agora vai ter que vender barato de novo pra minimizar o prejuízo (a venda é obrigatória, agora, porque Agnelli não se certificou com ninguém de que seus navios seriam aceitos nos portos chineses).
O curioso é que nenhuma outra decisão de Agnelli, incensado como gênio na imprensa brasileira, pode ser chamada de genial, para contrabalançar essa imensa defecada. Ele comprou a Inco, canadense, por 18 bilhões - a empresa tem custos muito maiores do que os da própria Vale, que poderia desenvolver minas equivalentes às dela por menos de 4bi. Pensou em mudar a empresa para a Suíça, em comprar mais dúzias de concorrentes (só conseguiu fazê-lo no Brasil, aonde podia quebrá-los com o quase-monopólio sobre portos e ferrovias). E mais nada. A Vale cresceu assustadoramente explorando sua posição dominante, e porque a geração de caixa, já em tempos estatais, era monstruosa. E a empresa, graças à generosidade do governo privatizante, nasceu sem dívidas.
Agnelli era incensado nas revistas de negócios antes por uma questão de alinhamento político-ideológico - representava a correção das privatizações - do que por ter feito algo que pudesse ser de fato elogiado. Agora fica a pergunta de quanto vão vender os livros de auto-ajuda empresarial baseados nele...
Auferre, trucidare, rapere, falsis nominibus imperium; atque, ubi solitudinem faciunt, pacem appellant.
Pesquisar este blog
21.12.11
13.12.11
Guerra civil I
Eu cá rio um pouco da guerra civil do PSDB, que com a publicação do livro "privataria tucana," de Amaury Jr, entra em sua fase quase declarada. E com a finesse de Aecim, que declarou na maior desfaçatez, enquanto o livro por ele patrocinado contando as mamatas do gentil colega esgota edição:
"[A candidatura do Serra a prefeito] é o sentimento da grande maioria do partido, pela sua liderança, pelas candidaturas que já teve, extremamente competitivo", disse. "Não podemos forçar ninguém a ser aquilo que não quer, mas, no fundo, há uma esperança de que ele seja o candidato."
é digno de
ANTONY. Friends, Romans, countrymen, lend me your ears!
I come to bury Caesar, not to praise him.
The evil that men do lives after them,
The good is oft interred with their bones;
So let it be with Caesar. The noble Brutus
Hath told you Caesar was ambitious;
If it were so, it was a grievous fault,
And grievously hath Caesar answer'd it.
Here, under leave of Brutus and the rest-
For Brutus is an honorable man;
So are they all, all honorable men-
Come I to speak in Caesar's funeral.
He was my friend, faithful and just to me;
But Brutus says he was ambitious,
And Brutus is an honorable man...
Arrisca-se, o nobre senador e playboy, claro, a ver alguma foto sua publicada pelo homem honrado Serra. Não pela Veja, que já o elegeu o super-homem que irá nos salvar do lulocomunismo petista, mas pela Folha, ou pelo Estadão, mais fiéis ao núcleo duro do tucanato paulista. Pelo andar da carruagem, Kassab fez bem em largar a nau tucana, abrindo suas possibilidades de aliança (OK, sua não-aliança é boa inclusive para uma eventual candidatura do PSDB à prefeitura que ele apóie, já que seu índice de rejeição está em 49%), não tanto pela inelegibilidade do Serra quanto pela possibilidade de se ver pego por essa briga - e a um discípulo de Maluf e Pita, não devem faltar esqueletos no armário.
Os petistas, por sua vez, eufóricos com o livro, não vêem que o significado político real dele é muito pouco. Um livro, publicado na entressafra política, não se compara à propaganda constante de qualquer malfeito publicado por qualquer pessoa remotamente ligada ao PT, que aparecerá em tudo que é banca de jornal próximo à eleição. Aliás, é justamente por isso que o livro saiu agora.
"[A candidatura do Serra a prefeito] é o sentimento da grande maioria do partido, pela sua liderança, pelas candidaturas que já teve, extremamente competitivo", disse. "Não podemos forçar ninguém a ser aquilo que não quer, mas, no fundo, há uma esperança de que ele seja o candidato."
é digno de
ANTONY. Friends, Romans, countrymen, lend me your ears!
I come to bury Caesar, not to praise him.
The evil that men do lives after them,
The good is oft interred with their bones;
So let it be with Caesar. The noble Brutus
Hath told you Caesar was ambitious;
If it were so, it was a grievous fault,
And grievously hath Caesar answer'd it.
Here, under leave of Brutus and the rest-
For Brutus is an honorable man;
So are they all, all honorable men-
Come I to speak in Caesar's funeral.
He was my friend, faithful and just to me;
But Brutus says he was ambitious,
And Brutus is an honorable man...
Arrisca-se, o nobre senador e playboy, claro, a ver alguma foto sua publicada pelo homem honrado Serra. Não pela Veja, que já o elegeu o super-homem que irá nos salvar do lulocomunismo petista, mas pela Folha, ou pelo Estadão, mais fiéis ao núcleo duro do tucanato paulista. Pelo andar da carruagem, Kassab fez bem em largar a nau tucana, abrindo suas possibilidades de aliança (OK, sua não-aliança é boa inclusive para uma eventual candidatura do PSDB à prefeitura que ele apóie, já que seu índice de rejeição está em 49%), não tanto pela inelegibilidade do Serra quanto pela possibilidade de se ver pego por essa briga - e a um discípulo de Maluf e Pita, não devem faltar esqueletos no armário.
Os petistas, por sua vez, eufóricos com o livro, não vêem que o significado político real dele é muito pouco. Um livro, publicado na entressafra política, não se compara à propaganda constante de qualquer malfeito publicado por qualquer pessoa remotamente ligada ao PT, que aparecerá em tudo que é banca de jornal próximo à eleição. Aliás, é justamente por isso que o livro saiu agora.
9.12.11
Trifecta
Num curto espaço de tempo, o governo Dilma soltou, diretamente ou por conivência com o congresso, três coliformes de vulto: o novo código florestal, a neutralização da lei antihomofobia, e o programa nacional contra o crack. O primeiro acaba com garantias contra o desmatamento que até estados feudais tinham, o segundo não tem muito efeito mas significa uma capitulação aos preconceituosos pseudo-religiosos (algum deputado da "bancada católica" votou contra o código florestal, como recomendado pela igreja?), o terceiro é a reabertura dos manicômios, para se isolar os doidos dos olhares de gente de bem(ns).
Não, não estou arrependido de ter votado na Dilma. Porque votei mesmo foi contra o Serra, e ele pregava todas as três coisas na campanha. Ombro a ombro com Silas Malafaia, Kátia Abreu, e Jair Bolsonaro. Mas que dá raiva, dá. A desculpa sempre é a necessidade de preservar o capital político para votações importantes, mas que votações importantes seriam essas? Até o Obama, que também usa essa desculpa, passou o seu plano de saúde pelo Congresso, mas não vejo nada além do ramerrame banal de orçamento, DRU, e outras cotianidades ser tentado pelo governo Dilma. Sem jogar (mesmo admitindo a possibilidade de derrota) por nenhuma bandeira, o PT dá razão à acusação de que sua única função no poder é manter-se no poder.
Do código florestal já falei bastante. Mas para explicar as outras duas indignações:
Não há nada de concreto no evisceramento do PLC 122 que me preocupe. Pelo contrário, A) mesmo neutralizado pela cláusula que permite a homofobia religiosa, ele continua sendo mais estrito do que a realidade hoje, e B) eu não acho que a criminalização do preconceito seja uma forma eficaz de lutar contra ele. Estamos comemorando os sessenta anos da lei Afonso Arinos, que proíbe o racismo, e continuamos tendo elevadores de branco, o crime de dirigir enquanto preto, cabelos ruins, e uma diferença salarial entre pretos e brancos maior do que a americana. Mas se nãoé um problema concreto, é uma sinalização - como tantas outras - de capitulação à bancada evangélica. O que os evangélicos mandarem, que não seja contra a CNA ou a Fiesp, o governo fará. E a esse povo, como aos ruralistas, o poder subiu a cabeça. Cada vitória deixa eles mais radicais, ao ponto de daqui a pouco o MEC ter que ensinar criacionismo nas escolas. (Seria irônico o primeiro museu de ciências de grande porte do Brasil ser criacionista... ok, tô exagerando.)
Sobre o plano de combate ao crack: ele não é mais do que o higienismo de tirar os indesejáveis das ruas. Internação compulsória não ajuda em nada os malucos (e toxicômanos são uma categoria de maluco), só atrapalha. Por isso que o Brasil, entre outros países, eliminou os manicômios ao longo dos anos 90, culminando na lei Paulo Delgado, de 2001. Por isso que a verdadeira função desse plano não é ajudar os craqueiros, mas sim retirá-los das vistas alheias. O neo-amigo Kassab agradece a ajuda para seu plano de valorização imobiliária da região da Luz. E o complemento do plano é uma intensificação da guerra às drogas, num momento em que até o presidente da Colômbia (um dos marechais dessa guerra no mundo, portanto) está questionando ela.
Anfã.
Não, não estou arrependido de ter votado na Dilma. Porque votei mesmo foi contra o Serra, e ele pregava todas as três coisas na campanha. Ombro a ombro com Silas Malafaia, Kátia Abreu, e Jair Bolsonaro. Mas que dá raiva, dá. A desculpa sempre é a necessidade de preservar o capital político para votações importantes, mas que votações importantes seriam essas? Até o Obama, que também usa essa desculpa, passou o seu plano de saúde pelo Congresso, mas não vejo nada além do ramerrame banal de orçamento, DRU, e outras cotianidades ser tentado pelo governo Dilma. Sem jogar (mesmo admitindo a possibilidade de derrota) por nenhuma bandeira, o PT dá razão à acusação de que sua única função no poder é manter-se no poder.
Do código florestal já falei bastante. Mas para explicar as outras duas indignações:
Não há nada de concreto no evisceramento do PLC 122 que me preocupe. Pelo contrário, A) mesmo neutralizado pela cláusula que permite a homofobia religiosa, ele continua sendo mais estrito do que a realidade hoje, e B) eu não acho que a criminalização do preconceito seja uma forma eficaz de lutar contra ele. Estamos comemorando os sessenta anos da lei Afonso Arinos, que proíbe o racismo, e continuamos tendo elevadores de branco, o crime de dirigir enquanto preto, cabelos ruins, e uma diferença salarial entre pretos e brancos maior do que a americana. Mas se nãoé um problema concreto, é uma sinalização - como tantas outras - de capitulação à bancada evangélica. O que os evangélicos mandarem, que não seja contra a CNA ou a Fiesp, o governo fará. E a esse povo, como aos ruralistas, o poder subiu a cabeça. Cada vitória deixa eles mais radicais, ao ponto de daqui a pouco o MEC ter que ensinar criacionismo nas escolas. (Seria irônico o primeiro museu de ciências de grande porte do Brasil ser criacionista... ok, tô exagerando.)
Sobre o plano de combate ao crack: ele não é mais do que o higienismo de tirar os indesejáveis das ruas. Internação compulsória não ajuda em nada os malucos (e toxicômanos são uma categoria de maluco), só atrapalha. Por isso que o Brasil, entre outros países, eliminou os manicômios ao longo dos anos 90, culminando na lei Paulo Delgado, de 2001. Por isso que a verdadeira função desse plano não é ajudar os craqueiros, mas sim retirá-los das vistas alheias. O neo-amigo Kassab agradece a ajuda para seu plano de valorização imobiliária da região da Luz. E o complemento do plano é uma intensificação da guerra às drogas, num momento em que até o presidente da Colômbia (um dos marechais dessa guerra no mundo, portanto) está questionando ela.
Anfã.
5.12.11
Motosserras a postos
O governo federal anuncia que, apesar de muito pior do que o atual, o novo código florestal (aprovado no Senado por vergonhosos 59 votos a 6) pelo menos será, ao contrário do atual, cumprido, porque vão investir em fiscalização. Há rumores de que uma senhora em Taubaté acreditou, ainda a serem investigados. Os ruralistas, que comemoraram efusivamente o novo código, não acreditaram nem um pouco, e alguns deles já ressuscitaram neste ano uma prática que não se via desde 2003: o corte raso com correntão. Explico: enquanto os desmatamentos realizados desde 2003, quando começou a haver alguma, ainda que incipiente, fiscalização foram velados, coisa que só aparece quando é um fato consumado, alguns fazendeiros no Pará e Mato Grosso estão desmatando pelo método de se amarrar uma corrente de navio entre dois tratores e sair pondo a mata abaixo. Mais descarado impossível. E um tal descaramento só pode ter uma origem: a certeza da anistia.
A certeza se justifica pelo comportamento do Executivo, revelando uma das poucas mudanças políticas reais entre o segundo governo Lula e o governo Dilma. O governo foi contra a primeira versão do código desflorestal, aprovada pela Câmara, dizem-nos, mas foi contra naquelas, tanto que o seu relator, Aldo Rebelo, continua sendo um dos líderes governistas. Da nova versão, só 99% a favor do desmatamento, foi a favor. Não custa lembrar que Marina Silva pulou fora do ministério do meio ambiente justamente por conta dos atritos com a então ministra da Casa Civil. (Não custa, também, reclamar da Marina Silva que, com sua atitude olímpica no segundo turno, pode ter preservado seu capital eleitoral udenista, mas abdicou de influência em prol do meio ambiente. Fosse apoiando Serra ou Dilma, essa seria bem maior.) Diga-se, pra ser justo, que nem todos os senadores governistas votaram a favor desse aborto. Pra ser exato, Lindinho e Requião foram contra, além de Randolfe Rodrigues e Marinor Mendes, do PSOL, e Paulo Davim, do PV. (E, bizarramente, de Fernando Collor.)
Não é que a Dilma seja o Blairo Maggi. Mas nem precisa; quando a maior e mais coesa bancada do Senado, além do poder econômico, estão a favor de algo, ser neutro já é o bastante para a catástrofe se anunciar. Não custa lembrar que o desmatamento anual sob o FH, que também não era o Blairo Maggi, e tenho certeza de que tem em privado até maiores convicções ambientais do que a Dilma, era mais de quatro vezes maior do que hoje em dia. E o que é pior: assim como os ingleses que eram contra a Guerra do Iraque, que não tinham alternativa porque o partido de oposição era mais a favor da guerra ainda, o PSDEMB é muito mais a favor do desmatamento ainda. Afinal, se apenas dois senadores governistas tiveram coragem de se opor ao governo, nenhum da oposição de direita se opôs.
A certeza se justifica pelo comportamento do Executivo, revelando uma das poucas mudanças políticas reais entre o segundo governo Lula e o governo Dilma. O governo foi contra a primeira versão do código desflorestal, aprovada pela Câmara, dizem-nos, mas foi contra naquelas, tanto que o seu relator, Aldo Rebelo, continua sendo um dos líderes governistas. Da nova versão, só 99% a favor do desmatamento, foi a favor. Não custa lembrar que Marina Silva pulou fora do ministério do meio ambiente justamente por conta dos atritos com a então ministra da Casa Civil. (Não custa, também, reclamar da Marina Silva que, com sua atitude olímpica no segundo turno, pode ter preservado seu capital eleitoral udenista, mas abdicou de influência em prol do meio ambiente. Fosse apoiando Serra ou Dilma, essa seria bem maior.) Diga-se, pra ser justo, que nem todos os senadores governistas votaram a favor desse aborto. Pra ser exato, Lindinho e Requião foram contra, além de Randolfe Rodrigues e Marinor Mendes, do PSOL, e Paulo Davim, do PV. (E, bizarramente, de Fernando Collor.)
Não é que a Dilma seja o Blairo Maggi. Mas nem precisa; quando a maior e mais coesa bancada do Senado, além do poder econômico, estão a favor de algo, ser neutro já é o bastante para a catástrofe se anunciar. Não custa lembrar que o desmatamento anual sob o FH, que também não era o Blairo Maggi, e tenho certeza de que tem em privado até maiores convicções ambientais do que a Dilma, era mais de quatro vezes maior do que hoje em dia. E o que é pior: assim como os ingleses que eram contra a Guerra do Iraque, que não tinham alternativa porque o partido de oposição era mais a favor da guerra ainda, o PSDEMB é muito mais a favor do desmatamento ainda. Afinal, se apenas dois senadores governistas tiveram coragem de se opor ao governo, nenhum da oposição de direita se opôs.
2.12.11
La Fontaine vs. Esopo
Anda causando alvoroço um relatório do UBS, o maior banco suíço, sobre as possíveis consequências do fim do Euro. Uma parte, em especial, chama a atenção:
Se um país forte, como a Alemanha, saísse do Euro, as consequências incluiriam bancarrota corporativa, recapitalização do sistema bancário, e colapso do comércio internacional. Se a Alemanha saísse, acreditamos que o custo seria da ordem de 6 a 8 mil euros para cada alemão, adulto ou criança, durante o primeiro ano, e entre 3500 e 4500 para cada pessoa, anualmente, na sequência; o equivalente a 20 a 25% do PIB no primeiro ano. Comparando, o custo de resgatar as dívidas da Grécia, da Irlanda e de Portugal em sua totalidade, em caso de moratória desses países, seria de pouco mais de mil euros, de uma vez só.
O relatório segue adiante com alguns outros alertas bem mais horríveis, como o de que a Iugoslávia precisou de umas guerrinhas genocidas para resolver o fim da união monetária, mas vamos nos concentrar nesse trecho, em que o banco fala do que entende: não é que os alemães estejam sendo chamados a fazer um sacrifício para salvar os países menores da Europa. É que o próprio interesse racional deles, se fosse aplicado, os faria gastar esse dinheiro. As pessoas não lidam muito bem com números abstratos, ainda mais negativos, então os alemães (logo eles, que desenvolveram o moderno sistema de resseguros) não se dão conta de que isso é um investimento com retorno de 6 a 8 vezes no primeiro ano, e 3 a 4 vezes todo ano na seguida. Qualquer um que se desse conta disso não apenas não protestaria contra um tal investimento, mas iria bater no Bundestag exigindo que ele fosse feito.
Mas não é apenas a falta de traquejo com números que faz os alemães preferirem o caminho que leva a mais problemas para eles mesmos: é que eles não estão vendo a coisa como uma questão de finanças, mas como se fosse uma moralidade medieval. Não importa que o mundo caia, esses perdulários* têm que ser punidos pela sua pusilanimidade. A cigarra tem que morrer de frio. É uma variantee do sentido de justiça que o ser humano compartilha com seus primos macacos (no caso dos chimpanzés, isso pode levar a coisas meigas como, por exemplo, um macaco arrancar a cara do outro com as mãos, a natureza é linda); não sei nem se pode ser, com justiça (heh) chamada de uma perversão. O único probleminha aí (além do sofrimento que esse senso de justiça causaria) é que a narrativa na qual ele se baseia é falsa. Os países periféricos não se endividaram porque são gastadores, e os alemães não acumularam dinheiro porque são formigas previdentes, muito antes pelo contrário. Fora a Grécia, todos os países periféricos violaram menos as normas fiscais de Maastricht do que a Alemanha.
O que acontece é que o Euro, apresentado como uma dádiva da Alemanha à Europa ("metade do Deutsche Mark para Miterrand, toda a Alemanha para Kohl"), na verdade embutia algums probleminhas para todo mundo que não fosse alemão. O Deutsche Mark entrou no euro subvalorizado, o que gerou (além da inflação nos países que receberam sua nova moeda forte) um incentivo estrutural para a Alemanha exportar. Ora, quando um país exporta muito, em condições normais, há um feedback negativo, um movimento que faz com que sua moeda se fortaleça, ele se torna menos competitivo, com isso exporta menos. O Brasil está sentindo isso na pele no momento. E a Alemanha, exportando para países que tinham a mesma moeda que ela, não teve esse problema, e não por acaso virou a maior exportadora do mundo antes de ser passada pela China. Isso sem nem entrar no mérito de que a política do banco central europeu foi sempre conduzida de acordo com os interesses das economias alemã e francesa (e benelúxica, por coincidência mais que qualquer outra coisa), e não dos outros.
O Euro não é uma benesse alemã aos europeus. É um esquema que beneficia os alemães frente aos outros, e que para funcionar precisaria de um governo central e planejamento econômico únicos. Mas os alemães parecem decididos a matar a galinha dos ovos de ouro.
*Seria muita maldade falar "Untermenschen."
Se um país forte, como a Alemanha, saísse do Euro, as consequências incluiriam bancarrota corporativa, recapitalização do sistema bancário, e colapso do comércio internacional. Se a Alemanha saísse, acreditamos que o custo seria da ordem de 6 a 8 mil euros para cada alemão, adulto ou criança, durante o primeiro ano, e entre 3500 e 4500 para cada pessoa, anualmente, na sequência; o equivalente a 20 a 25% do PIB no primeiro ano. Comparando, o custo de resgatar as dívidas da Grécia, da Irlanda e de Portugal em sua totalidade, em caso de moratória desses países, seria de pouco mais de mil euros, de uma vez só.
O relatório segue adiante com alguns outros alertas bem mais horríveis, como o de que a Iugoslávia precisou de umas guerrinhas genocidas para resolver o fim da união monetária, mas vamos nos concentrar nesse trecho, em que o banco fala do que entende: não é que os alemães estejam sendo chamados a fazer um sacrifício para salvar os países menores da Europa. É que o próprio interesse racional deles, se fosse aplicado, os faria gastar esse dinheiro. As pessoas não lidam muito bem com números abstratos, ainda mais negativos, então os alemães (logo eles, que desenvolveram o moderno sistema de resseguros) não se dão conta de que isso é um investimento com retorno de 6 a 8 vezes no primeiro ano, e 3 a 4 vezes todo ano na seguida. Qualquer um que se desse conta disso não apenas não protestaria contra um tal investimento, mas iria bater no Bundestag exigindo que ele fosse feito.
Mas não é apenas a falta de traquejo com números que faz os alemães preferirem o caminho que leva a mais problemas para eles mesmos: é que eles não estão vendo a coisa como uma questão de finanças, mas como se fosse uma moralidade medieval. Não importa que o mundo caia, esses perdulários* têm que ser punidos pela sua pusilanimidade. A cigarra tem que morrer de frio. É uma variantee do sentido de justiça que o ser humano compartilha com seus primos macacos (no caso dos chimpanzés, isso pode levar a coisas meigas como, por exemplo, um macaco arrancar a cara do outro com as mãos, a natureza é linda); não sei nem se pode ser, com justiça (heh) chamada de uma perversão. O único probleminha aí (além do sofrimento que esse senso de justiça causaria) é que a narrativa na qual ele se baseia é falsa. Os países periféricos não se endividaram porque são gastadores, e os alemães não acumularam dinheiro porque são formigas previdentes, muito antes pelo contrário. Fora a Grécia, todos os países periféricos violaram menos as normas fiscais de Maastricht do que a Alemanha.
O que acontece é que o Euro, apresentado como uma dádiva da Alemanha à Europa ("metade do Deutsche Mark para Miterrand, toda a Alemanha para Kohl"), na verdade embutia algums probleminhas para todo mundo que não fosse alemão. O Deutsche Mark entrou no euro subvalorizado, o que gerou (além da inflação nos países que receberam sua nova moeda forte) um incentivo estrutural para a Alemanha exportar. Ora, quando um país exporta muito, em condições normais, há um feedback negativo, um movimento que faz com que sua moeda se fortaleça, ele se torna menos competitivo, com isso exporta menos. O Brasil está sentindo isso na pele no momento. E a Alemanha, exportando para países que tinham a mesma moeda que ela, não teve esse problema, e não por acaso virou a maior exportadora do mundo antes de ser passada pela China. Isso sem nem entrar no mérito de que a política do banco central europeu foi sempre conduzida de acordo com os interesses das economias alemã e francesa (e benelúxica, por coincidência mais que qualquer outra coisa), e não dos outros.
O Euro não é uma benesse alemã aos europeus. É um esquema que beneficia os alemães frente aos outros, e que para funcionar precisaria de um governo central e planejamento econômico únicos. Mas os alemães parecem decididos a matar a galinha dos ovos de ouro.
*Seria muita maldade falar "Untermenschen."
30.11.11
Liberalismos
Num artigo da Economist sobre mulheres na China (parte de uma série de artigos sobre mulheres em países asiáticos), um trecho no finalzinho chama um pouco a atenção:
It has already become more acceptable for a woman not to be working, says Helene Zhuge, CEO of bon-tv, a private television network broadcasting from China to the world. If her husband has a good job, or she has money of her own, she can now be a stay-at-home wife without incurring social disapproval. According to Ms Zhuge, this is part of a broader movement over the past few years towards greater social liberalism in China. In the big cities it is now fine for a couple to live together without being married; divorce is getting more common; and being gay is no big deal.
Acho que parte dos sinais de liberalização dos costumes que todos reconheceríamos é, sem dúvida, que um casal possa se juntar sem casar. Ou que ser gay não seja problema. Mas não creio que eu seja o único que acha que "a mulher não trabalhar e ser só dona de casa" está meio deslocado nessa companhia.
**************
A última atrocidade do novo código florestal: a bancada nordestina pretende eliminar os manguezais das áreas de preservação.
It has already become more acceptable for a woman not to be working, says Helene Zhuge, CEO of bon-tv, a private television network broadcasting from China to the world. If her husband has a good job, or she has money of her own, she can now be a stay-at-home wife without incurring social disapproval. According to Ms Zhuge, this is part of a broader movement over the past few years towards greater social liberalism in China. In the big cities it is now fine for a couple to live together without being married; divorce is getting more common; and being gay is no big deal.
Acho que parte dos sinais de liberalização dos costumes que todos reconheceríamos é, sem dúvida, que um casal possa se juntar sem casar. Ou que ser gay não seja problema. Mas não creio que eu seja o único que acha que "a mulher não trabalhar e ser só dona de casa" está meio deslocado nessa companhia.
**************
A última atrocidade do novo código florestal: a bancada nordestina pretende eliminar os manguezais das áreas de preservação.
24.11.11
Enquanto isso, na sala da justiça
Enquanto denúncias de corrupção comezinha dominam o noticiário brasileiro, e a crise européia o mundial, mal e mal se fala das revoluções no mundo árabe, mas não vai aparecer muita coisa relacionada ao que está acontecendo no Chifre da África, evidentemente. E o que está acontecendo é a maior fome desde 1984-85. Quando começou a carestia por lá, algumas publicações internacionais (lembro da Economist, da BBC, e do Le Soir) fizeram menção a ela, mas nenhuma brasileira; não parece que a coisa vá mudar tão rápido. A não ser que alguém faça um show, talvez, como nos anos 80.
A carestia começou a se tornar aguda com a seca, que já vem do ano retrasado. Não é uma seca dessas em que nada se mexe sob o sol não - o chifre da África continuou exportando, no primeiro ano da seca, centenas de milhares de toneladas de produtos agrícolas caros e que precisam de bastante água, como café, flores, e chá. Em março agora, três meses antes de as Nações Unidas declararem oficialmente um estado de fome na área ("fome" vem depois de "emergência humanitária"), a Etiópia ainda foi palco de uma imensa feira de flores, e a exportação de hortifrutis do país bateu recorde este ano. 450 milhões de flores cortadas exportadas enquanto 13 milhões de pessoas passam fome. Novidade nenhuma, diria o Mike Davis.
Pois bem, essa carestia apenas em parte natural já estava diminuindo um pouco, e a ONU estudava diminuir o status do problema em algumas áreas de fome para apenas emergência humanitária. E, claro, nessa mesma hora, ou seja, ontem, o governo etíope (aquele mesmo que mais acima está se orgulhando das exportações de flores e verduras enquanto seu povo morre de fome) entrar na Somália, como já tinha feito em menor escala o Quênia, e sempre sob as bênçãos dos EUA, para defender turistas e outros gringos da ameaça de sequestro por "islamistas." Não é por nada não, o Frank Miller que me perdoe, mas não me parece que o pior problema da região seja o terrorismo islâmico...
Foram 29,000 crianças de menos de cinco anos mortas até agora. Dos 2,5bn pedidos pela ONU, foram angariados 1,12bn. Os EUA prometeram 150 milhões, mas cortaram isso para 13 porque uma lei impede que saia dinheiro se parte da comida for roubada. O gasto anual da força-tarefa antipirataria no Golfo de Aden, ali do lado, é de uns 2 bilhões, desde 2008. (Sem contar o custo dos navios em si - outros 5bn.)
A carestia começou a se tornar aguda com a seca, que já vem do ano retrasado. Não é uma seca dessas em que nada se mexe sob o sol não - o chifre da África continuou exportando, no primeiro ano da seca, centenas de milhares de toneladas de produtos agrícolas caros e que precisam de bastante água, como café, flores, e chá. Em março agora, três meses antes de as Nações Unidas declararem oficialmente um estado de fome na área ("fome" vem depois de "emergência humanitária"), a Etiópia ainda foi palco de uma imensa feira de flores, e a exportação de hortifrutis do país bateu recorde este ano. 450 milhões de flores cortadas exportadas enquanto 13 milhões de pessoas passam fome. Novidade nenhuma, diria o Mike Davis.
Pois bem, essa carestia apenas em parte natural já estava diminuindo um pouco, e a ONU estudava diminuir o status do problema em algumas áreas de fome para apenas emergência humanitária. E, claro, nessa mesma hora, ou seja, ontem, o governo etíope (aquele mesmo que mais acima está se orgulhando das exportações de flores e verduras enquanto seu povo morre de fome) entrar na Somália, como já tinha feito em menor escala o Quênia, e sempre sob as bênçãos dos EUA, para defender turistas e outros gringos da ameaça de sequestro por "islamistas." Não é por nada não, o Frank Miller que me perdoe, mas não me parece que o pior problema da região seja o terrorismo islâmico...
Foram 29,000 crianças de menos de cinco anos mortas até agora. Dos 2,5bn pedidos pela ONU, foram angariados 1,12bn. Os EUA prometeram 150 milhões, mas cortaram isso para 13 porque uma lei impede que saia dinheiro se parte da comida for roubada. O gasto anual da força-tarefa antipirataria no Golfo de Aden, ali do lado, é de uns 2 bilhões, desde 2008. (Sem contar o custo dos navios em si - outros 5bn.)
23.11.11
Versailles-sur-Mer
Até a Economist, bastião do liberalismo, faz piada com o fato de a imposição à Grécia de "austeridade" pelos credores não ser lá muito democrática. Entretanto, a própria revista, dessa vez rezando mais ortodoxamente pela cartilha, comete um erro de fato ao dizer, em outra coluna, que "o problema da Grécia é que os gastos são maiores do que as receitas. Ou não exatamente um erro de fato, mas uma pequena confusão útil. É que a Grécia, como o Brasil faz desde 1999, tem superávit primário. Isto é, descontados os pagamentos aos bancos, a Grécia não "gasta mais do que arrecada." É menor do que o brasileiro - da ordem de 1,5% do PIB - mas definitivamente não se trata, olhando para isso, de "gregos perdulários vivendo às custas dos alemães trabalhadores." Aliás muito pelo contrário - a Alemanha está no zero. E teve mais anos no déficit desde 1993 do que a Grécia, que só teve déficits absurdos em 2008 e 2009. E adivinha pra quem, via bancos, vão os juros da dívida grega?
E aí é que está a dupla cruz da questão: o dinheiro apresentado como socorro à Grécia não o é coisíssima nenhuma. É um socorro aos bancos alemães e franceses (principalmente). Se a Grécia tem superávit primário, a austeridade que querem impor aos gregos é maior do que a que seria imposta ao país pelas consequências "naturais" de uma moratória. Evidentemente que os efeitos da moratória não se resumem unicamente ao país não conseguir pegar empréstimos - a Argentina se deu muito bem porque teve a sorte de declarar moratória num momento de valorização de seus produtos e de liquidez farta - mas tão evidente quanto isso é que eles não podem ser piores do que a colher de fel (de cicuta?) que oferecem à Grécia, e que o Papandreou, mais por esperteza que por surto democrático, deixou para os cidadãos decidirem se tomam. (Perdeu o cargo com isso, mas melhor perder o cargo do que ser amaldiçoado até a décima geração. E maldição balcânica pega.)
Se a Grécia pudesse declarar moratória sem "ser punida" pelas instituições transnacionais que de fato controlam sua economia, ela não apenas não teria que cortar gastos porque não teria mais empréstimos. Ela poderia expandir os gastos do governo apenas com o que arrecada. Mas em nome dos bancos franceses e alemães (e britânicos, e suíços, mas esses ficam quietos e fingem que não fazem parte da brincadeira), vão ser impostas medidas "de austeridade" aos cidadãos gregos. Entre aspas, porque aumentar a progressividade do imposto, nem pensar. Cortar gastos militares também não faz parte do pacote. E, como o FMI dos bons tempos dos ajustes estruturais que quase levaram a África para a Idade da Pedra e são lembrados com carinho por aqui, fazem parte do pacote um monte de medidas liberalizantes que não tem nada a ver com a capacidade arrecadatória do Estado, ou até a afetam negativamente, mas são incluídos porque segundo os impositores "no longo prazo, criarão o crescimento." Ora, além dessa sabedoria ser questionável, ela leva a falta de democracia para bem além da necessidade de assegurar o pagamento...
21.11.11
Bela Cordilheira
A força que ganhou o tema "Belo Monte" depois da adesão de estrelas da Globo à campanha contra a construção da usina comprova, talvez, que a era dos virais da internet ainda não suplantou a dos velhos mídias. Belo Monte, de problema de ecochato e gringo, virou cause cèlebre nacional. E eu, que sou do contra e falava mal da represa desde muito antes, e em especial do silêncio dos candidatos presidenciais, Marina incluída sobre a questão, vou ser do contra de novo: agora a Inês é morta, os cavalos escaparam pela porteira, o leite derramou. Os maiores problemas socioambientais derivados de hidrelétricas na Amazônia não são os causados pelo lago*, mas aqueles derivados do fluxo habitacional temporário e da interrupção do curso do rio, partindo em dois um ecossistema integrado (muitos peixes, eg, se reproduzem nas cabeceiras de um rio, mas vivem sua vida adulta no curso principal, ou mesmo no mar).
O segundo fator continua sendo preocupante em Belo Monte, sem dúvida, mas escadinhas de peixe, como a que existirá, amenizam ele bastante. Não é fácil quantificar se Belo Monte vai ser mais danosa aos peixes do Xingu do que um parque eólico equivalente seria às aves marítimas do Nordeste. O primeiro, que é o pior deles, é que essa imensa massa humana (em Belo Monte, fala-se de 100.000 pessoas - mais do que a população atual de Altamira - ou de Corumbá, ou de outros cinco mil municípios brasileiros - é transiente e desocupada. A usina não precisa durante sua construção de todos aqueles que são atraídos pela notícia dela, e depois da construção, de quase ninguém. E aí você tem dezenas de milhares de pessoas sem ocupação nem como voltar pra casa, cuja única alternativa é a agricultura de subsistência no que um dia foi floresta. O que, é claro, gera poluição e desmatamento, e conflitos com os índios e ribeirinhos.
Ora pois, a essas alturas o povo já se mudou pra Altamira. Cancelar a obra não faria tanta diferença assim. Belo Monte não será um problema ambiental, já foi um problema ambiental. Por isso é que eu não me importo mais tanto assim com ela. Por outro lado, e infelizmente sem nenhuma atenção global (será que vão fazer vídeo depois de feito o estrago?), o novo, e retrógrado, código florestal caminha para ser aprovado no Congresso. O novo código, não custa lembrar, causaria o desmatamento de uma área literalmente 500 vezes maior que a do lago de Belo Monte, na projeção mais otimista. Centenas de vezes maior, mesmo incluindo o desmatamento induzido. Sem vídeo da Globo avisando que a parolagem ambientalista de que a legislação ambiental brasileira é rigorosa é uma mentira deslavada, e que o contrário é verdade - na maioria dos países, o desmatamento permitido é zero, não 20 a 80% de uma propriedade.
*a não ser que se cometa a burrice de deixar a floresta lá para ser alagada, caso em que a usina emite metano em proporção pior, para o efeito estufa, do que se fosse uma usina de carvão do mesmo tamanho.
O segundo fator continua sendo preocupante em Belo Monte, sem dúvida, mas escadinhas de peixe, como a que existirá, amenizam ele bastante. Não é fácil quantificar se Belo Monte vai ser mais danosa aos peixes do Xingu do que um parque eólico equivalente seria às aves marítimas do Nordeste. O primeiro, que é o pior deles, é que essa imensa massa humana (em Belo Monte, fala-se de 100.000 pessoas - mais do que a população atual de Altamira - ou de Corumbá, ou de outros cinco mil municípios brasileiros - é transiente e desocupada. A usina não precisa durante sua construção de todos aqueles que são atraídos pela notícia dela, e depois da construção, de quase ninguém. E aí você tem dezenas de milhares de pessoas sem ocupação nem como voltar pra casa, cuja única alternativa é a agricultura de subsistência no que um dia foi floresta. O que, é claro, gera poluição e desmatamento, e conflitos com os índios e ribeirinhos.
Ora pois, a essas alturas o povo já se mudou pra Altamira. Cancelar a obra não faria tanta diferença assim. Belo Monte não será um problema ambiental, já foi um problema ambiental. Por isso é que eu não me importo mais tanto assim com ela. Por outro lado, e infelizmente sem nenhuma atenção global (será que vão fazer vídeo depois de feito o estrago?), o novo, e retrógrado, código florestal caminha para ser aprovado no Congresso. O novo código, não custa lembrar, causaria o desmatamento de uma área literalmente 500 vezes maior que a do lago de Belo Monte, na projeção mais otimista. Centenas de vezes maior, mesmo incluindo o desmatamento induzido. Sem vídeo da Globo avisando que a parolagem ambientalista de que a legislação ambiental brasileira é rigorosa é uma mentira deslavada, e que o contrário é verdade - na maioria dos países, o desmatamento permitido é zero, não 20 a 80% de uma propriedade.
*a não ser que se cometa a burrice de deixar a floresta lá para ser alagada, caso em que a usina emite metano em proporção pior, para o efeito estufa, do que se fosse uma usina de carvão do mesmo tamanho.
13.10.11
Dark Satanic Mills
Participação percentual na indústria de transformação, 2008
São Paulo 43,7
Minas Gerais 10,7
Rio Grande do Sul 8
Rio de Janeiro 6,7
Paraná 6,3
Santa Catarina 5,8
Bahia 3,2
Amazonas 2,7
Goiás 2,1
Pernambuco 1,6
Espírito Santo 1,6
Ceará 1,5
Pará 1,3
São Paulo 43,7
Minas Gerais 10,7
Rio Grande do Sul 8
Rio de Janeiro 6,7
Paraná 6,3
Santa Catarina 5,8
Bahia 3,2
Amazonas 2,7
Goiás 2,1
Pernambuco 1,6
Espírito Santo 1,6
Ceará 1,5
Pará 1,3
10.10.11
Quanto vale ou é por quilo
Portos de armação do tráfico de escravos, por total de escravos transportados, 1501-1870
(mil escravos)
Rio de Janeiro 1499
Salvador 1360
Liverpool 1337
Londres 829
Bristol 564
Nantes 542
"Pernambuco," sem cidade específica 437
Lisboa 334
Havana 249
La Rochelle 165
Texel 164
Le Havre 142
Bordéus 134
Vlissingen 123
Zeeland 94
"Rhode Island 73" sem cidade especificada
Saint Malo 73
Barbados 58
Cadiz 53
San Lucar 51
Lorient 50
Honfleur 37
Nova Iorque 35
Charleston 35
Amsterdam 33
Rotterdam 31
Cabo Verde 4
Luanda 4
Total, incluindo os muitos portos não listados, 9000
http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces
(mil escravos)
Rio de Janeiro 1499
Salvador 1360
Liverpool 1337
Londres 829
Bristol 564
Nantes 542
"Pernambuco," sem cidade específica 437
Lisboa 334
Havana 249
La Rochelle 165
Texel 164
Le Havre 142
Bordéus 134
Vlissingen 123
Zeeland 94
"Rhode Island 73" sem cidade especificada
Saint Malo 73
Barbados 58
Cadiz 53
San Lucar 51
Lorient 50
Honfleur 37
Nova Iorque 35
Charleston 35
Amsterdam 33
Rotterdam 31
Cabo Verde 4
Luanda 4
Total, incluindo os muitos portos não listados, 9000
http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces
6.10.11
Manifesto pela corrupção e contra a ordem
Ou melhor, contra o soi-disant movimento contra a corrupção. Veja bem, não é que eu seja a favor da corrupção - ninguém, creio, nem sequer os corruptos, é a favor da corrupção. Sim, nem os corruptos, porque ninguém se considera vilão. Quem paga a cervejinha do guarda para não levar multa não acha que cometeu corrupção ativa, acha que foi extorquido. E do mesmo jeito, tenho certeza de que Gabeira (contrata com verba pública a namorada) e Pedro Simon (emprega metade da família) não consideram seus "pecadilhos" corrupção, como aquela, vaga e nebulosa, contra a qual lutam à frente desse movimento. Mas não me confundam - não é porque gente corrupta está envolvida que desdenho do movimento contra a corrupção, mas justamente pelo fato de ninguém ser a favor da corrupção.
Um movimento político é uma mensagem; se essa mensagem é algo que já é universalmente aceito, ela é desnecessária, redundante. Ser a favor da paz, ou contra a corrupção, a rigor não significa nada, a não ser que haja alguém contra elas. Ser a favor da paz significando com isso que se é contra a militarização da polícia, ou o envio de tropas além-mar, quer dizer algo. Do mesmo modo, ser contra a corrupção talvez fizesse sentido se a mensagem por trás do slogan fosse "não aceitar políticos envolvidos em casos de corrupção" - mas aí entra-se no problema do ACM Neto fazer parte do movimento contra a corrupção. No fim das contas, chega-se à conclusão que o movimento faz apenas parte da estratégia política habitual de, não tendo-se plataforma ideológica nenhuma de governo (ou, como no caso do PSDB, nenhuma que creia-se palatável aos eleitores), acusa-se o outro de malfeitos e ganha-se no grito, com ajuda da imprensa. Uma coisa meio Jornalismo no Tennessee. Ou, para ficar numa referência mais tupiniquim, UDN.
Agora, para ser inteiramente sincero: mesmo que o movimento realmente fosse algo sério contra a corrupção, eu pararia de rir dele, mas não seria algo em com que me empolgasse muito, não. Isso porque a corrupção como problema é muito superestimada, até pela conveniência. Falando-se da corrupção, elide-se tratar de algum problema que seja, este sim, político e sujeito a ser combatido através de uma solução política. Todos somos contra a corrupção, esqueça que eu sou a favor das privatizações, por exemplo. Se acabássemos com a corrupção, haveria dinheiro para fazer tudo sem precisar aumentar impostos. Etc. E nem a corrupção ou falta dela são bons indicadores para o nível de bem estar de um país. Olhe o mapa do índice de corrupção percebida da Transparency International. Com Berlusconi e tudo, acho difícil dizer que a Itália está pior do que a Polônia de vida. A França do que o Chile. Israel do que o Uruguai. O Reino Unido do que a Irlanda. Resumir a luta política à corrupção é deixar a ideologia dos que já mandam sem a democracia comer solta.
Um caso flagrante de como a corrupção oculta o problema real, no Brasil, é a questão da lei e ordem, ou melhor, antes da ordem do que da lei. Os agentes do monopólio estatal da violência, muitos deles ainda imbricados nas forças armadas por teias de relacionamentos, mesmo na PF e nas PCs, que ao contrário das PMs e dos bombeiros não levam "militar" no nome, vêem sua tarefa como antes a manutenção da "ordem" (tradicional e consuetudinária - e portanto com todos os problemas e preconceitos da ordem tradicional, hierárquica) do que a aplicação da lei. É esse o grande problema desses órgãos, e não a corrupção, sempre levantada quando se fala da polícia, por exemplo. O policial que faz parte de um grupo de extermínio está cometendo um crime, segundo a lei escrita, mas fazendo algo necessário e meritório, pelas suas luzes. Com isso, a latitude para a mudança social a partir de legislação, a partir de cima, se vê severamente restrita, o que é um problema sério para qualquer governo que pretenda melhorar isso. E, portanto, um problema grave para qualquer grupo ativista - mudar a lei é rlativamente fácil, comparado com mudar a mentalidade de um grupo que por definição se vê como guardião de uma ordem quase - na visão deles - transcedental, e portanto imutável.
Um movimento político é uma mensagem; se essa mensagem é algo que já é universalmente aceito, ela é desnecessária, redundante. Ser a favor da paz, ou contra a corrupção, a rigor não significa nada, a não ser que haja alguém contra elas. Ser a favor da paz significando com isso que se é contra a militarização da polícia, ou o envio de tropas além-mar, quer dizer algo. Do mesmo modo, ser contra a corrupção talvez fizesse sentido se a mensagem por trás do slogan fosse "não aceitar políticos envolvidos em casos de corrupção" - mas aí entra-se no problema do ACM Neto fazer parte do movimento contra a corrupção. No fim das contas, chega-se à conclusão que o movimento faz apenas parte da estratégia política habitual de, não tendo-se plataforma ideológica nenhuma de governo (ou, como no caso do PSDB, nenhuma que creia-se palatável aos eleitores), acusa-se o outro de malfeitos e ganha-se no grito, com ajuda da imprensa. Uma coisa meio Jornalismo no Tennessee. Ou, para ficar numa referência mais tupiniquim, UDN.
Agora, para ser inteiramente sincero: mesmo que o movimento realmente fosse algo sério contra a corrupção, eu pararia de rir dele, mas não seria algo em com que me empolgasse muito, não. Isso porque a corrupção como problema é muito superestimada, até pela conveniência. Falando-se da corrupção, elide-se tratar de algum problema que seja, este sim, político e sujeito a ser combatido através de uma solução política. Todos somos contra a corrupção, esqueça que eu sou a favor das privatizações, por exemplo. Se acabássemos com a corrupção, haveria dinheiro para fazer tudo sem precisar aumentar impostos. Etc. E nem a corrupção ou falta dela são bons indicadores para o nível de bem estar de um país. Olhe o mapa do índice de corrupção percebida da Transparency International. Com Berlusconi e tudo, acho difícil dizer que a Itália está pior do que a Polônia de vida. A França do que o Chile. Israel do que o Uruguai. O Reino Unido do que a Irlanda. Resumir a luta política à corrupção é deixar a ideologia dos que já mandam sem a democracia comer solta.
Um caso flagrante de como a corrupção oculta o problema real, no Brasil, é a questão da lei e ordem, ou melhor, antes da ordem do que da lei. Os agentes do monopólio estatal da violência, muitos deles ainda imbricados nas forças armadas por teias de relacionamentos, mesmo na PF e nas PCs, que ao contrário das PMs e dos bombeiros não levam "militar" no nome, vêem sua tarefa como antes a manutenção da "ordem" (tradicional e consuetudinária - e portanto com todos os problemas e preconceitos da ordem tradicional, hierárquica) do que a aplicação da lei. É esse o grande problema desses órgãos, e não a corrupção, sempre levantada quando se fala da polícia, por exemplo. O policial que faz parte de um grupo de extermínio está cometendo um crime, segundo a lei escrita, mas fazendo algo necessário e meritório, pelas suas luzes. Com isso, a latitude para a mudança social a partir de legislação, a partir de cima, se vê severamente restrita, o que é um problema sério para qualquer governo que pretenda melhorar isso. E, portanto, um problema grave para qualquer grupo ativista - mudar a lei é rlativamente fácil, comparado com mudar a mentalidade de um grupo que por definição se vê como guardião de uma ordem quase - na visão deles - transcedental, e portanto imutável.
4.10.11
DMZ do bem
Da série: propostas do meu partido inelegível, ou, como combinar posts anteriores bem distintos.
O aquecimento global vai afetar o Brasil bem mais do que países de zonas frias, motivo pelo qual é do interesse do país fazer o máximo (por si só e pelo exemplo) para evitar emissões de efeito estufa. A terra de Santa Cruz já tem uma matriz de geração de energia elétrica relativamente limpa, e planos de aumentar essa geração limpa, principalmente via mais hidrelétricas e acessoriamente com eólicas e usinas térmicas a biomassa. Só tem um probleminha...é que um dos problemas que o Brasil vai enfrentar com o aquecimento global é justamente a diminuição da vazão dos rios, principalmente os amazônicos, e da energia dos ventos fora do litoral do nordeste. Uma hidrelétrica que gera 3GW hoje, em 2100 não vai gerar mais de 2,3GW. Um parque eólico no Rio Grande do Sul pode sofrer mais ainda, até 3/4 de perda. Não, não tem alternativa redentora que vá surgir para compensar isso.
A solução da Empresa de Pesquisa Energética e das grandes empreiteiras é óbvia: fazer o máximo possível de hidrelétricas, até que cada desnível da Amazônia esteja aproveitado. E, presume-se, não reste uma castanheira, uma sumaúma que seja, e os índios todos tenham se mudado para favelas em Manaus. Não sei, não sei - talvez não seja a melhor solução possível. De qualquer jeito, considerações humanitárias à parte, com a diminuição da vazão dos rios, tais hidrelétricas se tornam cada vez menos atraentes do ponto de vista econômico.
Agora vem a solução maluca: O primeiro "lugar estranho do mundo" da série que volta e meia aparece neste blog foi a Zona Desmilitarizada entre as duas coréias, na qual o medo humano serviu de proteção melhor do que qualquer desvelo para com a vida selvagem. Do mesmo modo, a área de proteção de Chernobyl, criada após o acidente, se tornou hoje uma área de natureza exuberante. Por outro lado, se você olha um mapa das unidades de conservação no Brasil, vai notar que enquanto na Amazônia há grandes parques naturais, do tamanho de alguns estados menores, no resto do país os parques são tão pequenos que são assinalados por bolinhas ao invés de representados graficamente.
Então que tal, para suprir as necessidades brasileiras de energia limpa, matar dois coelhos com uma caixa d'água só, e instalar usinas nucleares nas regiões sudeste e nordeste, ao lado de parques naturais existentes e no centro de parques naturais maiores a serem criados e eventualmente implantados? A presença da usina nuclear ajudaria a convencer muita gente a vender barato a terra para o governo (ou a concessionária, que teria responsabilidade pelo parque, se fosse o caso), e o parque serviria de zona de amortização que impediria que os efeitos nefastos de algum acidente afetassem seres humanos. Com isso, cada usina nuclear de uns 4GW seria o centro de um parque natural de uns 60Km de raio e 10.000Km2 de área. Com umas vinte dessas, teríamos uma geração elétrica igual ao total hoje produzido no Brasil, e uma área protegida nas regiões mais densamente povoadas no Brasil igualmente dobrada. E, como algumas inevitavelmente seriam feitas nas margens de rios, ainda ajudariam, pela conservação da vegetação, a mitigar as perdas de vazão das hidrelétricas.
O aquecimento global vai afetar o Brasil bem mais do que países de zonas frias, motivo pelo qual é do interesse do país fazer o máximo (por si só e pelo exemplo) para evitar emissões de efeito estufa. A terra de Santa Cruz já tem uma matriz de geração de energia elétrica relativamente limpa, e planos de aumentar essa geração limpa, principalmente via mais hidrelétricas e acessoriamente com eólicas e usinas térmicas a biomassa. Só tem um probleminha...é que um dos problemas que o Brasil vai enfrentar com o aquecimento global é justamente a diminuição da vazão dos rios, principalmente os amazônicos, e da energia dos ventos fora do litoral do nordeste. Uma hidrelétrica que gera 3GW hoje, em 2100 não vai gerar mais de 2,3GW. Um parque eólico no Rio Grande do Sul pode sofrer mais ainda, até 3/4 de perda. Não, não tem alternativa redentora que vá surgir para compensar isso.
A solução da Empresa de Pesquisa Energética e das grandes empreiteiras é óbvia: fazer o máximo possível de hidrelétricas, até que cada desnível da Amazônia esteja aproveitado. E, presume-se, não reste uma castanheira, uma sumaúma que seja, e os índios todos tenham se mudado para favelas em Manaus. Não sei, não sei - talvez não seja a melhor solução possível. De qualquer jeito, considerações humanitárias à parte, com a diminuição da vazão dos rios, tais hidrelétricas se tornam cada vez menos atraentes do ponto de vista econômico.
Agora vem a solução maluca: O primeiro "lugar estranho do mundo" da série que volta e meia aparece neste blog foi a Zona Desmilitarizada entre as duas coréias, na qual o medo humano serviu de proteção melhor do que qualquer desvelo para com a vida selvagem. Do mesmo modo, a área de proteção de Chernobyl, criada após o acidente, se tornou hoje uma área de natureza exuberante. Por outro lado, se você olha um mapa das unidades de conservação no Brasil, vai notar que enquanto na Amazônia há grandes parques naturais, do tamanho de alguns estados menores, no resto do país os parques são tão pequenos que são assinalados por bolinhas ao invés de representados graficamente.
Então que tal, para suprir as necessidades brasileiras de energia limpa, matar dois coelhos com uma caixa d'água só, e instalar usinas nucleares nas regiões sudeste e nordeste, ao lado de parques naturais existentes e no centro de parques naturais maiores a serem criados e eventualmente implantados? A presença da usina nuclear ajudaria a convencer muita gente a vender barato a terra para o governo (ou a concessionária, que teria responsabilidade pelo parque, se fosse o caso), e o parque serviria de zona de amortização que impediria que os efeitos nefastos de algum acidente afetassem seres humanos. Com isso, cada usina nuclear de uns 4GW seria o centro de um parque natural de uns 60Km de raio e 10.000Km2 de área. Com umas vinte dessas, teríamos uma geração elétrica igual ao total hoje produzido no Brasil, e uma área protegida nas regiões mais densamente povoadas no Brasil igualmente dobrada. E, como algumas inevitavelmente seriam feitas nas margens de rios, ainda ajudariam, pela conservação da vegetação, a mitigar as perdas de vazão das hidrelétricas.
3.10.11
Os bons ares e ventos da terra de Piratininga
Saiu, com algum estardalhaço, a notícia no jornal: São Paulo tem o ar menos poluído do que o de outras cidades brasileiras. A notícia, claro, é uma demonstração razoável do perigo de ler só a manchete, e do quanto de informação (que normalmente não é ensinada) é necessário para ler coisas que parecem simples. Ela vai, claro, totalmente contra o senso comum; todo mundo reclama da poluição paulistana, afinal. Normalmente, eu seria o primeiro a ficar feliz com a evidência científica contrariando o senso comum, mas (como sempre) a evidência científica não é algum fato em si caído das mãos de um Deus onisciente. Então, o que diz realmente a notícia, e por que o senso comum, no caso, tá certo mesmo?
Vamos lá: pra começar, a notícia não fala de "poluição do ar" num sentido abstrato, mas de um componente específico da poluição atmosférica, que é a taxa de particulados finos. Particulados finos podem ser traduzidos como fumaça invisível; ao contrário dos particulados grossos, visíveis mesmo em volumes relativamente reduzidos. São partículas com menos de 2,5 mícrons de diâmetro, que inaladas são as principais responsáveis por algumas doenças respiratórias; assim como no caso dos particulados grossos (entre 10 e 2,5 mícrons), as principais fontes de emissão deles são os veículos pesados (ônibus e caminhões) e a indústria em geral. Dessa lista de fontes, se pode ver, mais do que pelo próprio nariz, que há algo errado com a posição de São Paulo como cidade limpa - a desproporção entre tanto a frota de caminhões quanto a indústria paulistanas e a de outras metrópoles brasileiras é maior do que a diferença de área. A RM de São Paulo sozinha tem mais indústria do que qualquer estado brasileiro que não seja São Paulo, ainda hoje. E mais caminhões. Sem algum fator especial que "limpe" o ar, ou suje o das outras cidades, como pode o ar aqui ser mais limpo, se tem mais coisas sujando?
Pois bem, não se trata, bem entendido, da quantidade de tais partículas que "realmente existe," mas daquela que podemos medir; isso, é claro, depende de aonde estão as unidades de medição da qualidade do ar, e como elas funcionam. Ora, a CETESB tem exatamente quatro estações de medição da qualidade do ar que auferem a quantidade de particulados finos na Região Metropolitana de São Paulo. São elas: Ibirapuera (no meio do parque), Cerqueira César (no meio do Hospital das Clínicas), Pinheiros (no parque Villa Lobos), e São Caetano (ao lado do Hospital de Emergências). Três delas, portanto, em áreas grandes, arborizadas, e isoladas do tráfego. Duas longe de grandes fontes geradoras e em áreas altas da cidade (p2,5, mais pesadas que o ar, tendem a descer e não a subir). No Rio de Janeiro, em comparação, as 20 estações ficam espalhadas por toda a cidade, geralmente ao lado das grandes fontes emissoras (em SP, só é o caso da de São Caetano, próxima da fábrica da GM, e mais ou menos da Pinheiros, próxima da Marginal e da CEASA).
Não é, bem ententido, o único caso em que, por maquiagem intencional ou não, as estatísticas ficam longe de representar, seja a realidade, seja o que se pretende que elas representem. Um exemplo é o dos índices de homicídio no Rio de Janeiro e em São Paulo. Eles estão caindo atualmente, graças às milícias e UPPs e ao PCC respectivamente, sem sombra de dúvida. Mesmo levando em consideração as artimanhas estatísticas que diminuíram a taxa artificialmente em fins da década de 90 e início da de 2000, separando homicídios de outras formas de 'crimes que resultaram em gente morta," como "encontro de cadáver" e "auto de resistência (à agressão policial)," é verdade que as taxas de homicídio nos dois estados, e especialmente em suas capitais, têm diminuído. MAS... isso não quer dizer que as ruas estejam mais seguras. A imensa maioria dos assassinatos no Brasil não ocorre "nas ruas," a transeuntes incautos, noção que alimenta a paranóia urbana e deixa o Datena rico; tanto assassinos quanto assassinados são jovens excluídos da periferia, vitimados em confrontos internecinos de gangues criminosas. São essas mortes que diminuíram, e como são a maioria, diminuiu o número total.
Na verdade, as chances de você sofrer um latrocínio - tipo de assassinato da estatística que mais se aproxima da noção do assassinato do nada tão temido pela classe média nos seus bairros razoavelmente seguros - são pequenas. Mas elas estão, em São Paulo crescendo, no Rio estáveis. Ou seja, as metrópoles brasileiras são muito mais seguras do que se pensa, mas ao contrário do que se pensa estão ficando menos seguras... A lista poderia, claro, ir em frente ad infinitum. Entre a preguiça, intenções escusas, e burrice de imprensa e governo, provavelmente sai uma nova a cada dia.
Vamos lá: pra começar, a notícia não fala de "poluição do ar" num sentido abstrato, mas de um componente específico da poluição atmosférica, que é a taxa de particulados finos. Particulados finos podem ser traduzidos como fumaça invisível; ao contrário dos particulados grossos, visíveis mesmo em volumes relativamente reduzidos. São partículas com menos de 2,5 mícrons de diâmetro, que inaladas são as principais responsáveis por algumas doenças respiratórias; assim como no caso dos particulados grossos (entre 10 e 2,5 mícrons), as principais fontes de emissão deles são os veículos pesados (ônibus e caminhões) e a indústria em geral. Dessa lista de fontes, se pode ver, mais do que pelo próprio nariz, que há algo errado com a posição de São Paulo como cidade limpa - a desproporção entre tanto a frota de caminhões quanto a indústria paulistanas e a de outras metrópoles brasileiras é maior do que a diferença de área. A RM de São Paulo sozinha tem mais indústria do que qualquer estado brasileiro que não seja São Paulo, ainda hoje. E mais caminhões. Sem algum fator especial que "limpe" o ar, ou suje o das outras cidades, como pode o ar aqui ser mais limpo, se tem mais coisas sujando?
Pois bem, não se trata, bem entendido, da quantidade de tais partículas que "realmente existe," mas daquela que podemos medir; isso, é claro, depende de aonde estão as unidades de medição da qualidade do ar, e como elas funcionam. Ora, a CETESB tem exatamente quatro estações de medição da qualidade do ar que auferem a quantidade de particulados finos na Região Metropolitana de São Paulo. São elas: Ibirapuera (no meio do parque), Cerqueira César (no meio do Hospital das Clínicas), Pinheiros (no parque Villa Lobos), e São Caetano (ao lado do Hospital de Emergências). Três delas, portanto, em áreas grandes, arborizadas, e isoladas do tráfego. Duas longe de grandes fontes geradoras e em áreas altas da cidade (p2,5, mais pesadas que o ar, tendem a descer e não a subir). No Rio de Janeiro, em comparação, as 20 estações ficam espalhadas por toda a cidade, geralmente ao lado das grandes fontes emissoras (em SP, só é o caso da de São Caetano, próxima da fábrica da GM, e mais ou menos da Pinheiros, próxima da Marginal e da CEASA).
Não é, bem ententido, o único caso em que, por maquiagem intencional ou não, as estatísticas ficam longe de representar, seja a realidade, seja o que se pretende que elas representem. Um exemplo é o dos índices de homicídio no Rio de Janeiro e em São Paulo. Eles estão caindo atualmente, graças às milícias e UPPs e ao PCC respectivamente, sem sombra de dúvida. Mesmo levando em consideração as artimanhas estatísticas que diminuíram a taxa artificialmente em fins da década de 90 e início da de 2000, separando homicídios de outras formas de 'crimes que resultaram em gente morta," como "encontro de cadáver" e "auto de resistência (à agressão policial)," é verdade que as taxas de homicídio nos dois estados, e especialmente em suas capitais, têm diminuído. MAS... isso não quer dizer que as ruas estejam mais seguras. A imensa maioria dos assassinatos no Brasil não ocorre "nas ruas," a transeuntes incautos, noção que alimenta a paranóia urbana e deixa o Datena rico; tanto assassinos quanto assassinados são jovens excluídos da periferia, vitimados em confrontos internecinos de gangues criminosas. São essas mortes que diminuíram, e como são a maioria, diminuiu o número total.
Na verdade, as chances de você sofrer um latrocínio - tipo de assassinato da estatística que mais se aproxima da noção do assassinato do nada tão temido pela classe média nos seus bairros razoavelmente seguros - são pequenas. Mas elas estão, em São Paulo crescendo, no Rio estáveis. Ou seja, as metrópoles brasileiras são muito mais seguras do que se pensa, mas ao contrário do que se pensa estão ficando menos seguras... A lista poderia, claro, ir em frente ad infinitum. Entre a preguiça, intenções escusas, e burrice de imprensa e governo, provavelmente sai uma nova a cada dia.
16.9.11
Dano colateral
Muita gente, eu incluído, chama o novo código florestal, elaborado pelo "comunista" Aldo Rebelo e pela bancada ruralista, de "código desflorestal," como se a bancada ruralista fosse uma versão do TEA americano, cegamente ideológica e antiambientalista. Besteira. A bancada ruralista é 100% pragmática, não é o Xico Graziano (ex-secretário do meio ambiente de São Paulo, na gestão Serra, e antiambientalista de verdade). Um exemplo disso é a provisão que manda que todas as áreas de APP de represas hidrelétricas sejam desapropriadas e prontamente adquiridas pela concessionária. A medida é obviamente uma boa idéia do ponto de vista ambiental, porque significa mais segurança contra o desmatamento numa APP; mas ela está lá, na verdade, porque as concessionárias hoje "mandam" em áreas pertencentes a fazendeiros (fiscalizando para que a lei seja cumprida, em interesse próprio de preservação do lago), e com essa lei, que é retroativa, passariam a ter que pagar por isso. A estimativa de transferência de dinheiro entre os setores elétrico e agropecuário é de uns 30 bilhões pra cima.
A constatação, bem entendido, não deve ser considerada encorajadora por ninguém. Se apenas de histeria conservadora se tratasse, os interesses econômicos das grandes empresas poderiam pôr um freio no desmatamento induzido pelo código florestal novo, ou mesmo pesar contra ele no Congresso. Já que o desmatamento é interesse econômico real, só resta contra ele o Estado mesmo. Não precisa rir - além do desmatamento cadente na Amazônia desde 2005, o desmatamento no Cerrado caiu este ano. E por isso mesmo o novo código florestal é tão importante.
A constatação, bem entendido, não deve ser considerada encorajadora por ninguém. Se apenas de histeria conservadora se tratasse, os interesses econômicos das grandes empresas poderiam pôr um freio no desmatamento induzido pelo código florestal novo, ou mesmo pesar contra ele no Congresso. Já que o desmatamento é interesse econômico real, só resta contra ele o Estado mesmo. Não precisa rir - além do desmatamento cadente na Amazônia desde 2005, o desmatamento no Cerrado caiu este ano. E por isso mesmo o novo código florestal é tão importante.
15.9.11
Crise? Que bonança?
O gráfico abaixo mostra a evolução da renda familiar nos EUA, para três grupos: os 10% mais ricos, os 10% mais pobres, e a mediana. Reparem nas diferenças pequenas da evolução: para o americano médio, a "exuberância irracional" da economia americana nos anos 90 quase não fez diferença.
Liberal sólido
...sou eu, segundo a tipologia política do Pew Center. Desisti de fazer alguma piadinha pornográfica. Segundo a Pew, os liberais sólidos (heh heh) são
•Highly politically engaged
•75% are Democrats
•Concentrated in the Northeast and West
•57% are female
•Best educated of the groups: 49% hold at least a bachelor's degree and 27% have post-graduate experience
•A third regularly listen to NPR, about two-in-ten regularly watch The Daily Show and read The New York Times
•59% have a passport
•42% regularly buy organic foods
•21% are first or second generation Americans
PS na pesquisa, mais de dois terços dos "libertarians" são homens; é de longe o grupo com menos mulheres. Quelle surprise...
•Highly politically engaged
•75% are Democrats
•Concentrated in the Northeast and West
•57% are female
•Best educated of the groups: 49% hold at least a bachelor's degree and 27% have post-graduate experience
•A third regularly listen to NPR, about two-in-ten regularly watch The Daily Show and read The New York Times
•59% have a passport
•42% regularly buy organic foods
•21% are first or second generation Americans
PS na pesquisa, mais de dois terços dos "libertarians" são homens; é de longe o grupo com menos mulheres. Quelle surprise...
14.9.11
País do chá
Uma das coisas que sempre me surpreendem no debate público brasileiro é a quase total ausência de propostas de aumento de impostos nele. Pelo contrário, parece que todos interiorizaram o discurso do (desonesto grupo de lobby de tributaristas) IPT e seu impostômetro, e exorcizam a malfadada carga tributária. Mas quando se fala em diminuir o déficit fiscal, ninguém fala em aumentar impostos, só em cortar custos. Quando se fala em aumentar as possibilidades de ação do governo, ninguém fala em aumentar impostos para fazer isso. Mesmo quando se fala em aumentar impostos, é na ficção de uma "CPMF," um imposto que seja invisível e carimbado. Ora, a "classe média" brasileira, isto é, os 20% mais ricos, ainda pode sustentar um bom aumento de imposto (que não seja para pagar a mesma coisa que os outros quintis de renda). Não vou me estender sobre isso porque clicando na tag "impostos" aí embaixo vai ter um monte de posts sobre o assunto. E tanto a direita (que se reinvindica fiscalmente responsável) quanto a esquerda (que quer aumento da presença do estado e abatimento dos juros) teriam todo o interesse em aumentar esses impostos. Até a indústria teria esse interesse - zerar o déficit público significaria um abatimento rápido da taxa de juros.
Em outras palavras, os partidos brasileiros, todos, repetem o mantra do TEA party americano. Não aumentar os impostos. OK, alguns até falam - mas são sempre impostos que acham que não caem em ninguém, seja pela sua invisibilidade (CPMF) ou por atingirem apenas meia dúzia de pessoas míticas ("imposto sobre grandes fortunas"). IRPF a níveis americanos pós-Bush (44% de alíquota máxima, dependendo do estado) que é bom, necas. O que é mais curioso ainda num momento em que, internacionalmente (e curiosamente) você tem um monte de bilionários pedindo para pagar mais imposto, como o Bill Gates, o Warren Buffet e o Luca di Montezemolo, dono da Ferrari. Então por que diabos nem o PSoL fala em aumento do IRPF, e entra na prática no discurso da classe média sofrida?
(Aliás, podiam aproveitar a revisão do IRPF para eliminar o financiamento público de saúde e educação privadas para a classe média. Tem dependente? Teu desconto é x. Pronto. Se você quer fazer plano de saúde é problema seu.)
Em outras palavras, os partidos brasileiros, todos, repetem o mantra do TEA party americano. Não aumentar os impostos. OK, alguns até falam - mas são sempre impostos que acham que não caem em ninguém, seja pela sua invisibilidade (CPMF) ou por atingirem apenas meia dúzia de pessoas míticas ("imposto sobre grandes fortunas"). IRPF a níveis americanos pós-Bush (44% de alíquota máxima, dependendo do estado) que é bom, necas. O que é mais curioso ainda num momento em que, internacionalmente (e curiosamente) você tem um monte de bilionários pedindo para pagar mais imposto, como o Bill Gates, o Warren Buffet e o Luca di Montezemolo, dono da Ferrari. Então por que diabos nem o PSoL fala em aumento do IRPF, e entra na prática no discurso da classe média sofrida?
(Aliás, podiam aproveitar a revisão do IRPF para eliminar o financiamento público de saúde e educação privadas para a classe média. Tem dependente? Teu desconto é x. Pronto. Se você quer fazer plano de saúde é problema seu.)
5.9.11
Antiracismo, ontem e hoje
Para mostrar como nem tudo são espinhos, e graças à maravilha que é a Openlibrary, reproduzo aqui alguns trechos da contribuição feita pelo representante brasileiro ao Congresso Universal das Raças, um encontro antiracista que celebrou 100 anos em 26 de Julho, "O mestiço, ou híbrido brasileiro." O sujeito, João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional, assina o texto para o congresso como Jean Baptiste de Lacerda.
...devemos estabelecer o questionamento sobre se brancos e negros representam duas raças, ou duas espécies distintas. (Ele responde que são raças.)
Apesar de não se poder chamar o mestiço de modelo de beleza, seja na figura ou no contorno, é forçoso reconhecer, especialmente no sexo feminino, tipos de formas graciosas e bem-proporcionadas.
...devemos estabelecer o questionamento sobre se brancos e negros representam duas raças, ou duas espécies distintas. (Ele responde que são raças.)
Apesar de não se poder chamar o mestiço de modelo de beleza, seja na figura ou no contorno, é forçoso reconhecer, especialmente no sexo feminino, tipos de formas graciosas e bem-proporcionadas.
1.7.11
A conta do carro
A Folha reproduz matéria do new York Times sobre como cidades européias estão tomando cada vez mais medidas antiautomóvel, da qual a frase mais interessante, que resume tudo, é "Fellmann calculou que uma pessoa em um carro ocupa 115 metros cúbicos de espaço urbano em Zurique, enquanto um pedestre ocupa apenas três. "
Trinta e cinco vezes mais espaço nas ruas é necessário para carros do que para pessoas. Considerando-se que a área dedicada aos transportes é um terço da área de uma cidade, cidades poderiam ser 50% mais compactas sem eles, para a mesma quantidade de gente. Ou, por outro lado, cinquenta por cento mais arejadas.
Não é a única conta que pode ser feita, claro.
A taxa média de ocupação de automóveis em São Paulo é de 1,2 pessoas. Um automóvel pesa mais ou menos 1,2t na média. Um trem de metrô de 6 carros pesa 200 toneladas, e carrega 1500 pessoas confortavelmente (na prática, mais de 2500). São 6 vezes menos massa de veículo por passageiro transportado na média do dia. (No horário de pico, na prática hiperlotada, 13 vezes menos.) Como a eficiência energética do metrô, incluída a usina elétrica, é mais do que o dobro da do carro, quinze vezes menos energia com conforto (na prática, umas trinta vezes).
A capacidade de tráfego ao longo de uma linha de metrô normal (sem expresso do lado) é de 80.000 pessoas por hora, num nível de conforto razoável (o metrô de SP carrega quase 120.000). Ela tem 10m de largura, mais ou menos. Uma autoestrada urbana de 29,2 metros de largura (tipo a 23 de Maio) pode aguentar no máximo 7200 veículos por hora. A 1,2 passageiros por veículo, dá 7640 pessoas por hora. Mas vamos enfiar quatro pessoas em cada carro - vão ser um pouco menos de 28.800 passageiros. Para transportar a quantidade de gente transportada na linha 1, se cada carro estivese lotado, precisaríamos de quatro 23s de Maio em paralelo, uma autopista de 20 faixas em cada sentido e 120m de largura cortando São Paulo do Tucuruvi ao Jabaquara (ou, no mínimo, da Luz ao Paraíso. Se você simplesmente enfiasse metrô no lugar do corredor que inclui a 23, no mesmo espaço (e deixando dez metros livres) poderiam ser transportados fantasmagóricos 200.000 passageiros, somando-se aos 100.000 da atual linha 1 para carrear um milhão de pessoas no horário do rush. Ou 850.000 automóveis.
Trinta e cinco vezes mais espaço nas ruas é necessário para carros do que para pessoas. Considerando-se que a área dedicada aos transportes é um terço da área de uma cidade, cidades poderiam ser 50% mais compactas sem eles, para a mesma quantidade de gente. Ou, por outro lado, cinquenta por cento mais arejadas.
Não é a única conta que pode ser feita, claro.
A taxa média de ocupação de automóveis em São Paulo é de 1,2 pessoas. Um automóvel pesa mais ou menos 1,2t na média. Um trem de metrô de 6 carros pesa 200 toneladas, e carrega 1500 pessoas confortavelmente (na prática, mais de 2500). São 6 vezes menos massa de veículo por passageiro transportado na média do dia. (No horário de pico, na prática hiperlotada, 13 vezes menos.) Como a eficiência energética do metrô, incluída a usina elétrica, é mais do que o dobro da do carro, quinze vezes menos energia com conforto (na prática, umas trinta vezes).
A capacidade de tráfego ao longo de uma linha de metrô normal (sem expresso do lado) é de 80.000 pessoas por hora, num nível de conforto razoável (o metrô de SP carrega quase 120.000). Ela tem 10m de largura, mais ou menos. Uma autoestrada urbana de 29,2 metros de largura (tipo a 23 de Maio) pode aguentar no máximo 7200 veículos por hora. A 1,2 passageiros por veículo, dá 7640 pessoas por hora. Mas vamos enfiar quatro pessoas em cada carro - vão ser um pouco menos de 28.800 passageiros. Para transportar a quantidade de gente transportada na linha 1, se cada carro estivese lotado, precisaríamos de quatro 23s de Maio em paralelo, uma autopista de 20 faixas em cada sentido e 120m de largura cortando São Paulo do Tucuruvi ao Jabaquara (ou, no mínimo, da Luz ao Paraíso. Se você simplesmente enfiasse metrô no lugar do corredor que inclui a 23, no mesmo espaço (e deixando dez metros livres) poderiam ser transportados fantasmagóricos 200.000 passageiros, somando-se aos 100.000 da atual linha 1 para carrear um milhão de pessoas no horário do rush. Ou 850.000 automóveis.
Pai dos pobres, mãe dos ricos
O BNDES avisou com orgulho, no começo do mês, que pela primeira vez na sua história estava emprestando, neste ano, mais dinheiro a micro e pequenas empresas do que às grandes. O anúncio foi acompanhado de declarações empolgadas sobre a maturidade do mercado de crédito brasileiro, que fazia de empréstimos a grandes empresas subsidiados uma necessidade do passado, exceto para o setor de infraestrutura. Agora, imagino que essas declarações estejam na pasta "esqueça o que disse" dos dirigentes do banco, já que Abílio Diniz acaba de ganhar quatro bilhões (dez vezes o que ganharia um estádio da copa) para a bizantina fusão do Pão de Açúcar com a filial brasileira do Carrefour.
São duas as alegações feitas pelo governo para defender o apoio do BNDES à fusão. Uma é de que não é apoio de verdade, já que a BNDESpas, braço de investimento do banco, é quem está atuando, e portanto não haveria dinheiro público, do tesouro ou do FAT, envolvido. Argumento meio estranho, já que qualquer dinheiro do BNDES também é público, cáspite, e não apenas os que ele captou junto aos cofres da União ou da Previdência. Se um maluco resolver doar dinheiro ao BNDES, esse dinheiro continua sendo público. Se acharem ouro embaixo da sede do banco, vai continuar sendo dinheiro público. E dinheiro público não deveria ser empregado numa operação que não tivesse claro interesse público.
A outra justificativa é a de que com isso estaria sendo criada uma "campeã brasileira," uma companhia brasileira com peso internacional, capaz de competir no mercado global e ajudar na exportação de produtos brasileiros para o mundo. É a mesma justificativa que foi usada quando permitiram a Brahma e Antarctica se fundirem, abocanhando três quartos do mercado brasileiro de cerveja e aumentando significativamente os preços locais, apenas para a "Ambev" ser abocanhada pela belga Interbrew logo depois, fazendo com que uma companhia estrangeira tenha uma situação de quase-monopólio no Brasil. O mais curioso é que, longe de evitar o assunto Ambev, os representantes do governo mencionam o exemplo como positivo.
A alegação, tanto sobre a Ambev quanto sobre o Pão de Açúcar, é que o controle pode passar a mãos européias, mas executivos brasileiros controlariam tudo. Ora, bom pra eles, mas não significa nada para o país, a não ser talvez para alguém ligado a administração encher a boca sobre as qualidades de nossos Gordon Gecko. Melhor uma empresa brasileira com um administrador butanês do que uma belga, ou francesa, que por acaso tem um sujeito nascido no Brasil no comando. (Como a Renault e a Nissan, cujo presidente conjunto é um libanês nascido no Brasil - e que nem por isso merecem nenhum incentivo do governo brasileiro.)
OK, pelo menos o BNDES petista dá carradas de dinheiro a grandes empresas sem interesse público definido. Ainda é melhor do que as "privatizações de graça" que eram só o que o BNDES tucano fazia, pelas quais se alienava dinheiro sem razão definida. Por outro lado, a operação de Abílio Diniz, que é bizantina justamente para poder mantê-lo no comando da empresa apesar do contrato que tinha assinado com a Casino (arquirival na França da Carrefour), é tão nebulosa e legal, ética e moralmente questionável que é digna de um Daniel Dantas.
São duas as alegações feitas pelo governo para defender o apoio do BNDES à fusão. Uma é de que não é apoio de verdade, já que a BNDESpas, braço de investimento do banco, é quem está atuando, e portanto não haveria dinheiro público, do tesouro ou do FAT, envolvido. Argumento meio estranho, já que qualquer dinheiro do BNDES também é público, cáspite, e não apenas os que ele captou junto aos cofres da União ou da Previdência. Se um maluco resolver doar dinheiro ao BNDES, esse dinheiro continua sendo público. Se acharem ouro embaixo da sede do banco, vai continuar sendo dinheiro público. E dinheiro público não deveria ser empregado numa operação que não tivesse claro interesse público.
A outra justificativa é a de que com isso estaria sendo criada uma "campeã brasileira," uma companhia brasileira com peso internacional, capaz de competir no mercado global e ajudar na exportação de produtos brasileiros para o mundo. É a mesma justificativa que foi usada quando permitiram a Brahma e Antarctica se fundirem, abocanhando três quartos do mercado brasileiro de cerveja e aumentando significativamente os preços locais, apenas para a "Ambev" ser abocanhada pela belga Interbrew logo depois, fazendo com que uma companhia estrangeira tenha uma situação de quase-monopólio no Brasil. O mais curioso é que, longe de evitar o assunto Ambev, os representantes do governo mencionam o exemplo como positivo.
A alegação, tanto sobre a Ambev quanto sobre o Pão de Açúcar, é que o controle pode passar a mãos européias, mas executivos brasileiros controlariam tudo. Ora, bom pra eles, mas não significa nada para o país, a não ser talvez para alguém ligado a administração encher a boca sobre as qualidades de nossos Gordon Gecko. Melhor uma empresa brasileira com um administrador butanês do que uma belga, ou francesa, que por acaso tem um sujeito nascido no Brasil no comando. (Como a Renault e a Nissan, cujo presidente conjunto é um libanês nascido no Brasil - e que nem por isso merecem nenhum incentivo do governo brasileiro.)
OK, pelo menos o BNDES petista dá carradas de dinheiro a grandes empresas sem interesse público definido. Ainda é melhor do que as "privatizações de graça" que eram só o que o BNDES tucano fazia, pelas quais se alienava dinheiro sem razão definida. Por outro lado, a operação de Abílio Diniz, que é bizantina justamente para poder mantê-lo no comando da empresa apesar do contrato que tinha assinado com a Casino (arquirival na França da Carrefour), é tão nebulosa e legal, ética e moralmente questionável que é digna de um Daniel Dantas.
30.6.11
Resumo de posição
Tive que responder essa pergunta, e por isso peguei e recauchutei um texto antigo deste blog.
O racismo à brasileira tem suas peculiaridades que o diferenciam dos outros modelos de racismo conhecidos. Algumas pessoas o consideram apenas como uma questão de classes sociais e outros acreditam na existência de preconceito e discriminação racial em relação aos não brancos. Utilizando-se de argumentos em apoio, como você se posiciona diante dessa ambiguidade?
Quando se fala em racismo no Brasil, uma argumentação recorrente se baseia na idéia de que "é difícil definir quem é o quê no Brasil.” A ideia tem uma base real na comparação com os EUA,* em que o racismo é primariamente baseado na ascendência, mais binário e fácil de identificar portanto em contraste com o racismo brasileiro baseado (de novo, primariamente) na aparência física. Mesmo que não haja mais nos EUA leis, como havia antigamente**, definindo qual a proporção de sangue negro que faz de alguém negro, a definição ainda é simples, e um afro-descendente que queira dizer que é branco estará "passing," fingindo, ao contrário daqui, em que a mesma pessoa será branca de verdade. O problema dessa formulação é que ela tem uma meia-verdade embutida, e que é irrelevante mesmo naquelas ocasiões em que seria verdade.
A meia verdade: é difícil definir exatamente quem é o que no Brasil, dentro de uma fatia específica da população, que inclui parte dos "pardos" e parte dos "brancos. Não em geral. A Benedita da Silva é preta, e ninguém duvida disso. A Martha Suplicy é branca. O Vicentinho e a Marina Silva já são mais complicados. E notem, apesar de ser interessante em termos políticos e de conscientização rejeitar a classificação trinária do IBGE em favor de uma dualidade branco/negro, a situação dos "pretos" é, em todo o Brasil, muito pior do que a dos "pardos." Mesmo tirando todas as variáveis exóticas. Pretos vivem mais separados dos brancos, têm menos valor no "mercado" matrimonial, ganham menos, são mais revistados pela polícia... OK, fazendo a eterna comparação com os EUA, que mesmo os pretos ainda sofrem de discriminação matrimonial umas vinte vezes menor do que nos EUA, com a pior região metropolitana brasileira, o Vale do Itajaí,**** tendo a mesma segregação matrimonial que a melhor americana, Washington.
A irrelevância: uma distinção clara entre grupos humanos não é condição necessária nem suficiente para o preconceito, ao contrário da teoria senso-comunista de que o racismo advém da observação das diferenças. Não só o racismo em suas diversas encarnações, da cordial à apartada, como até a xenofobia, que é muito mais radical e rejeita o contato, prescinde da possibilidade de distinção clara. A guerra da Bósnia é um exemplo: na Bósnia-Herzegovina pré-dissolução, a população falava serbo-croata. Não existe distinção física nem de sotaque. Dos 60% que responderam alguma coisa ao invés de simplesmente "iugoslavo" ao Censo, 36% se casavam com gente do "outro grupo." O sentimento religioso não era nem é particularmente pronunciado. A segregação residencial estava abaixo de 25iv* E conseguiram, mesmo assim, entrar em uma guerra étnica.
Do mesmo modo, o racismo no Brasil nunca precisou de uma distinção clara para se perpetuar. Nunca houve barreiras definidas, e nunca houve entraves ao contato – desde que fosse iniciado pelo indivíduo que está acima na escala. O senhor de engenho podia permitir ao escravo do eito que tomasse uma pinga junto dele; o contrário nem pensar. O racismo brasileiro, se quiser assim, segue uma lógica individualista, "de mercado," que se opõe à lógica de castas do racismo americano ou sul-africano v*, mas não deixa de ser reafirmador de hierarquias por isso em momento algum. Ao invés de ser enfiado pela sociedade numa casta específica, o indivíduo tem uma certa quantidade de "capital racial," (d'après Bourdieu) que ele utiliza junto com "capital social," "capital educacional,' "capital monetário” e afins. A questão é que esse capital racial não tem nenhuma tendência maior à equalização ao longo do tempo do que os outros capitais; pelo contrário, a tendência do capital é centrípeta, é que aqueles que têm mais vão ganhando cada vez mais.
Claro que isso não impede que haja outras formas de preconceito no Brasil, e que elas infelizmente não disponham da mesma quantidade de inimigos que o racismo. Não só o preconceito social é aceito; preconceitos étnicos diversos também são, dos mais leves ("aquele turco safado", "japoneses (que podem ser de qualquer origem asiática) são bitolados," "parece coisa de judeu") ao mais comum e, por ser exclusivamente brasileiro, não identificado como preconceito étnico, que é o preconceito contra nordestinos. Que, evidentemente, não é um preconceito contra nordestinos em geral; nenhum Jereissati ou Magalhães jamais sofreu discriminação por ser nordestino. O preconceito contra os “baianos” paulistas e “paraíbas” cariocas é um preconceito contra os mestiços do sertão nordestino – que, aliás, distorcem, por muitos deles responderem “branco” ao IBGE, baseados em hierarquias locais, as próprias estatísticas raciais brasileiras – se mudássemos de categoria a eles, ou criássemos uma nova, as desigualdades raciais se tornariam ainda mais gritantes.
Até há pouquíssimo tempo atrás, o Brasil, oficialmente, era um país em que não havia racismo, como apregoado pelos relatórios brasileiros sobre racismo enviados à ONU. Essa mentira já foi denunciada no genérico, mas ainda não no particular, a ponto de se ter a situação em que racismo é crime inafiançável, mas os milhares de casos cotidianos - da pessoa preta que não pode usar o elevador social ao ministro do Supremo Tribunal Federal quase barrado pelos seguranças na própria possevi* - não geram condenações. É uma falácia falar de outros males brasileiros, ou mesmo de outros preconceitos, como argumento contra a luta anti-racista; uma coisa não exclui a outra - e, cinicamente, eliminar preconceitos de classe numa sociedade capitalista é um pouquinho difícil. O que gera um efeito interessante - a interação do racismo brasileiro com o preconceito de classe, ao mesmo tempo que minora a radicalidade desse racismo (mas não sua violência), o torna mais difícil de eliminar.
*A comparação é inevitável; no universo conceitual brasileiro, o etnocentrismo está mais centrado na metrópole do que cá na colônia.
**E ainda há para os índios.
***Sim, tanto pra uma quanto pra outra a quantidade de pretos (VdI) e negros (DC) na população geral já tendo sido levada em conta e eliminada.
IV* Para efeito de comparação, o mesmo índice, de dissimilaridade espacial, varia para negros (BR: pardos+pretos) entre 37(SP, RJ, PoA) e 48 (Salvador) no Brasil, e entre 75(NY) e 92(Chicago) nos EUA.
V* O racismo na Europa, apesar de se constituir basicamente em preconceito étnico, é ainda uma terceira história, embora tenha, na França desde as levas imigratórias da virada do século e na Grã-Bretanha desde a leva caribenha pós-descolonização, características que se assemelham mais na forma ao modelo americano, e no resultado ao modelo brasileiro.
VI* Depondo contra a teoria da exclusividade do preconceito social; afinal de contas, é um juiz, velho e bem vestido tentando entrar no Supremo, não um sujeito em trapos. Ou, ao inverso, disse uma tia-avó minha uma vez sobre o próprio filho, "ele entrou no aeroporto todo sujo e cheio de craca nas pernas. Ainda bem que ele é branquinho, senão tinham jogado ele no lixo."
O racismo à brasileira tem suas peculiaridades que o diferenciam dos outros modelos de racismo conhecidos. Algumas pessoas o consideram apenas como uma questão de classes sociais e outros acreditam na existência de preconceito e discriminação racial em relação aos não brancos. Utilizando-se de argumentos em apoio, como você se posiciona diante dessa ambiguidade?
Quando se fala em racismo no Brasil, uma argumentação recorrente se baseia na idéia de que "é difícil definir quem é o quê no Brasil.” A ideia tem uma base real na comparação com os EUA,* em que o racismo é primariamente baseado na ascendência, mais binário e fácil de identificar portanto em contraste com o racismo brasileiro baseado (de novo, primariamente) na aparência física. Mesmo que não haja mais nos EUA leis, como havia antigamente**, definindo qual a proporção de sangue negro que faz de alguém negro, a definição ainda é simples, e um afro-descendente que queira dizer que é branco estará "passing," fingindo, ao contrário daqui, em que a mesma pessoa será branca de verdade. O problema dessa formulação é que ela tem uma meia-verdade embutida, e que é irrelevante mesmo naquelas ocasiões em que seria verdade.
A meia verdade: é difícil definir exatamente quem é o que no Brasil, dentro de uma fatia específica da população, que inclui parte dos "pardos" e parte dos "brancos. Não em geral. A Benedita da Silva é preta, e ninguém duvida disso. A Martha Suplicy é branca. O Vicentinho e a Marina Silva já são mais complicados. E notem, apesar de ser interessante em termos políticos e de conscientização rejeitar a classificação trinária do IBGE em favor de uma dualidade branco/negro, a situação dos "pretos" é, em todo o Brasil, muito pior do que a dos "pardos." Mesmo tirando todas as variáveis exóticas. Pretos vivem mais separados dos brancos, têm menos valor no "mercado" matrimonial, ganham menos, são mais revistados pela polícia... OK, fazendo a eterna comparação com os EUA, que mesmo os pretos ainda sofrem de discriminação matrimonial umas vinte vezes menor do que nos EUA, com a pior região metropolitana brasileira, o Vale do Itajaí,**** tendo a mesma segregação matrimonial que a melhor americana, Washington.
A irrelevância: uma distinção clara entre grupos humanos não é condição necessária nem suficiente para o preconceito, ao contrário da teoria senso-comunista de que o racismo advém da observação das diferenças. Não só o racismo em suas diversas encarnações, da cordial à apartada, como até a xenofobia, que é muito mais radical e rejeita o contato, prescinde da possibilidade de distinção clara. A guerra da Bósnia é um exemplo: na Bósnia-Herzegovina pré-dissolução, a população falava serbo-croata. Não existe distinção física nem de sotaque. Dos 60% que responderam alguma coisa ao invés de simplesmente "iugoslavo" ao Censo, 36% se casavam com gente do "outro grupo." O sentimento religioso não era nem é particularmente pronunciado. A segregação residencial estava abaixo de 25iv* E conseguiram, mesmo assim, entrar em uma guerra étnica.
Do mesmo modo, o racismo no Brasil nunca precisou de uma distinção clara para se perpetuar. Nunca houve barreiras definidas, e nunca houve entraves ao contato – desde que fosse iniciado pelo indivíduo que está acima na escala. O senhor de engenho podia permitir ao escravo do eito que tomasse uma pinga junto dele; o contrário nem pensar. O racismo brasileiro, se quiser assim, segue uma lógica individualista, "de mercado," que se opõe à lógica de castas do racismo americano ou sul-africano v*, mas não deixa de ser reafirmador de hierarquias por isso em momento algum. Ao invés de ser enfiado pela sociedade numa casta específica, o indivíduo tem uma certa quantidade de "capital racial," (d'après Bourdieu) que ele utiliza junto com "capital social," "capital educacional,' "capital monetário” e afins. A questão é que esse capital racial não tem nenhuma tendência maior à equalização ao longo do tempo do que os outros capitais; pelo contrário, a tendência do capital é centrípeta, é que aqueles que têm mais vão ganhando cada vez mais.
Claro que isso não impede que haja outras formas de preconceito no Brasil, e que elas infelizmente não disponham da mesma quantidade de inimigos que o racismo. Não só o preconceito social é aceito; preconceitos étnicos diversos também são, dos mais leves ("aquele turco safado", "japoneses (que podem ser de qualquer origem asiática) são bitolados," "parece coisa de judeu") ao mais comum e, por ser exclusivamente brasileiro, não identificado como preconceito étnico, que é o preconceito contra nordestinos. Que, evidentemente, não é um preconceito contra nordestinos em geral; nenhum Jereissati ou Magalhães jamais sofreu discriminação por ser nordestino. O preconceito contra os “baianos” paulistas e “paraíbas” cariocas é um preconceito contra os mestiços do sertão nordestino – que, aliás, distorcem, por muitos deles responderem “branco” ao IBGE, baseados em hierarquias locais, as próprias estatísticas raciais brasileiras – se mudássemos de categoria a eles, ou criássemos uma nova, as desigualdades raciais se tornariam ainda mais gritantes.
Até há pouquíssimo tempo atrás, o Brasil, oficialmente, era um país em que não havia racismo, como apregoado pelos relatórios brasileiros sobre racismo enviados à ONU. Essa mentira já foi denunciada no genérico, mas ainda não no particular, a ponto de se ter a situação em que racismo é crime inafiançável, mas os milhares de casos cotidianos - da pessoa preta que não pode usar o elevador social ao ministro do Supremo Tribunal Federal quase barrado pelos seguranças na própria possevi* - não geram condenações. É uma falácia falar de outros males brasileiros, ou mesmo de outros preconceitos, como argumento contra a luta anti-racista; uma coisa não exclui a outra - e, cinicamente, eliminar preconceitos de classe numa sociedade capitalista é um pouquinho difícil. O que gera um efeito interessante - a interação do racismo brasileiro com o preconceito de classe, ao mesmo tempo que minora a radicalidade desse racismo (mas não sua violência), o torna mais difícil de eliminar.
*A comparação é inevitável; no universo conceitual brasileiro, o etnocentrismo está mais centrado na metrópole do que cá na colônia.
**E ainda há para os índios.
***Sim, tanto pra uma quanto pra outra a quantidade de pretos (VdI) e negros (DC) na população geral já tendo sido levada em conta e eliminada.
IV* Para efeito de comparação, o mesmo índice, de dissimilaridade espacial, varia para negros (BR: pardos+pretos) entre 37(SP, RJ, PoA) e 48 (Salvador) no Brasil, e entre 75(NY) e 92(Chicago) nos EUA.
V* O racismo na Europa, apesar de se constituir basicamente em preconceito étnico, é ainda uma terceira história, embora tenha, na França desde as levas imigratórias da virada do século e na Grã-Bretanha desde a leva caribenha pós-descolonização, características que se assemelham mais na forma ao modelo americano, e no resultado ao modelo brasileiro.
VI* Depondo contra a teoria da exclusividade do preconceito social; afinal de contas, é um juiz, velho e bem vestido tentando entrar no Supremo, não um sujeito em trapos. Ou, ao inverso, disse uma tia-avó minha uma vez sobre o próprio filho, "ele entrou no aeroporto todo sujo e cheio de craca nas pernas. Ainda bem que ele é branquinho, senão tinham jogado ele no lixo."
29.6.11
Dez anos de ação afirmativa, e a repetitiva miséria da estatística
Dez anos depois de iniciada a ação afirmativa pública beneficiando negros (não custa lembrar, de novo, que a ação afirmativa beneficiando brancos existiu no Brasil), sai uma matéria da Folha sobre o assunto, baseada na PNAD.
A matéria é mal escrita toda a vida, não sei se porque quer forçar a barra para dizer que as cotas são inúteis e o setor privado melhor ou pela costumeira falta de familiaridade com as estatísticas. A chamada é "Após dez anos de cotas, crescimento de pretos e pardos foi menor nas públicas." Ora, (e o que faz talvez pender a conta para a má-fé contra a burrice), em momento algum ela fala da proporção dos negros no ensino superior privado, só nas universidades públicas e na população em geral. Então, mesmo deixando de lado os fatos que explicariam muito bem um crescimento tendencial (isso é, na hipótese sem as cotas para o período) muito menor dos negros nas públicas, não é possível, apenas pelos dados apresentados na matéria, sequer concluir se a alegação dela é ou não verdade. O que eles apresentam é que o número de alunos negros em universidades privadas aumentou mais, em termos absolutos, do que nas públicas, assim como o número de alunos em geral. Assim:
Dados tabulados pela Folha a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE mostram que, no ensino superior, a proporção de auto declarados pretos e pardos cresceu de 21% para 35% de 2001 a 2009.
No ensino superior público, o aumento foi de 314 mil para 530 mil, uma variação de 69%. No privado, o crescimento foi de 264%, de 447 mil para 1,6 milhão. No total da população, a proporção desses grupos variou de 46% para 51%.
Cavucando um pouco, vê-se que eram, em 2009, cinco milhões de alunos em universidades particulares, o que faz os 1,6 milhões de negros mencionados representarem algo como 32% do total - índice um pouco inferior ao das públicas. Em 2001, de novo cavucando um pouco, vemos que haviam 2,091 milhões de estudantes em escolas particulares, dos quais os 447 mil negros representavam 21%. Índice, à época, exatamente igual ao das escolas públicas, portanto. IE foi nas públicas que a proporção de negros avançou (um pouquinho) mais.
E isso, claro, sem levar em consideração que, no Brasil, as universidades públicas são as melhores universidades, com exceções pouco significativas estatisticamente - as universidades católicas, as luteranas, a FAAP, a Cândido Mendes e o IBMec, e que portanto o impacto social de ter acesso a um curso de medicina na USP (ou na UFABC que apesar de novinha já é, por índices bibliométricos, a melhor do Brasil) não é o mesmo de ter acesso a um curso de direito na Universo ou na Uniban. Ou que, vendo a coisa pela outra ótica, é mais fácil para a classe média baixa a que pertence a maioria desses estudantes negros passar para uma dessas universidades particulares, sem sistema de ação afirmativa.
A matéria é mal escrita toda a vida, não sei se porque quer forçar a barra para dizer que as cotas são inúteis e o setor privado melhor ou pela costumeira falta de familiaridade com as estatísticas. A chamada é "Após dez anos de cotas, crescimento de pretos e pardos foi menor nas públicas." Ora, (e o que faz talvez pender a conta para a má-fé contra a burrice), em momento algum ela fala da proporção dos negros no ensino superior privado, só nas universidades públicas e na população em geral. Então, mesmo deixando de lado os fatos que explicariam muito bem um crescimento tendencial (isso é, na hipótese sem as cotas para o período) muito menor dos negros nas públicas, não é possível, apenas pelos dados apresentados na matéria, sequer concluir se a alegação dela é ou não verdade. O que eles apresentam é que o número de alunos negros em universidades privadas aumentou mais, em termos absolutos, do que nas públicas, assim como o número de alunos em geral. Assim:
Dados tabulados pela Folha a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE mostram que, no ensino superior, a proporção de auto declarados pretos e pardos cresceu de 21% para 35% de 2001 a 2009.
No ensino superior público, o aumento foi de 314 mil para 530 mil, uma variação de 69%. No privado, o crescimento foi de 264%, de 447 mil para 1,6 milhão. No total da população, a proporção desses grupos variou de 46% para 51%.
Cavucando um pouco, vê-se que eram, em 2009, cinco milhões de alunos em universidades particulares, o que faz os 1,6 milhões de negros mencionados representarem algo como 32% do total - índice um pouco inferior ao das públicas. Em 2001, de novo cavucando um pouco, vemos que haviam 2,091 milhões de estudantes em escolas particulares, dos quais os 447 mil negros representavam 21%. Índice, à época, exatamente igual ao das escolas públicas, portanto. IE foi nas públicas que a proporção de negros avançou (um pouquinho) mais.
E isso, claro, sem levar em consideração que, no Brasil, as universidades públicas são as melhores universidades, com exceções pouco significativas estatisticamente - as universidades católicas, as luteranas, a FAAP, a Cândido Mendes e o IBMec, e que portanto o impacto social de ter acesso a um curso de medicina na USP (ou na UFABC que apesar de novinha já é, por índices bibliométricos, a melhor do Brasil) não é o mesmo de ter acesso a um curso de direito na Universo ou na Uniban. Ou que, vendo a coisa pela outra ótica, é mais fácil para a classe média baixa a que pertence a maioria desses estudantes negros passar para uma dessas universidades particulares, sem sistema de ação afirmativa.
28.6.11
Substituição de importações ao contrário
Lelé propõe que as habitações populares no Brasil deixem de ser uma porcaria do lado estético. E um grande segundo passo nesse sentido (o primeiro é mesmo ter simplesmente a idéia de que isso é possível) seria começar a ter concursos de arquitetura, e concursos que fossem levados a sério, para projetos públicos. Nesse sentido, Lelé ter sido chamado pela Dilma para dar uma garibada no visual do Minha Casa Minha Vida faz parte do problema, junto com as 1,623,596 obras públicas feitas pelo escritório Niemeyer a convite, e que não passam de reciclagens infinitas da Oca do Ibirapuera. Pelo escritório, porque não creio que ninguém acredite que o Niemeyer ainda faça alguma coisa.
Quando falo em concurso levado a sério, estou pensando no fato de que mesmo quando há algum tipo de concurso público no Brasil, os mesmos arquitetos, com as conexões certas, invariavelmente são os ganhadores. Qualquer um que se interesse por arquitetura contemporânea logo vai reparar que a quantidade de coisas inovadoras e/ou boas por aqui é muito menor do que na maioria dos países com um rol de novas construções equivalentes, e não se pode atribuir isso aos arquitetos brasileiros, como provam os resultados do concurso Porto Olímpico, no Rio de Janeiro. A área a ser desenvolvida, enorme e com um canal no meio, é perfeita para qualquer ousadia. Entretanto, os escolhidos foram os mesmos arquitetos com ligações de amizade para com a prefeitura do Rio de Janeiro. Não que sejam ruins, necessariamente (gostei bastante do primeiro e quarto colocados, e nem um pouco dos segundo e terceiro). Mas inovadores é que não são.
Uma solução para isso, mais ainda do que a de internacionalizar o concurso, querendo dizer os concorrentes, seria internacionalizar os juízes de concursos arquitetônicos, para evitar o compadrio. Para avalizar em termos de "realidade brasileira," pode-se fazer assim: 60% de arquitetos e críticos estrangeiros, 40% de brasileiros. Não seria a solução que faria do Brasil uma Holanda ou Japão, mas pelo menos daria uma bagunçada long overdue* no coreto.
*En français dans le texte.
Quando falo em concurso levado a sério, estou pensando no fato de que mesmo quando há algum tipo de concurso público no Brasil, os mesmos arquitetos, com as conexões certas, invariavelmente são os ganhadores. Qualquer um que se interesse por arquitetura contemporânea logo vai reparar que a quantidade de coisas inovadoras e/ou boas por aqui é muito menor do que na maioria dos países com um rol de novas construções equivalentes, e não se pode atribuir isso aos arquitetos brasileiros, como provam os resultados do concurso Porto Olímpico, no Rio de Janeiro. A área a ser desenvolvida, enorme e com um canal no meio, é perfeita para qualquer ousadia. Entretanto, os escolhidos foram os mesmos arquitetos com ligações de amizade para com a prefeitura do Rio de Janeiro. Não que sejam ruins, necessariamente (gostei bastante do primeiro e quarto colocados, e nem um pouco dos segundo e terceiro). Mas inovadores é que não são.
Uma solução para isso, mais ainda do que a de internacionalizar o concurso, querendo dizer os concorrentes, seria internacionalizar os juízes de concursos arquitetônicos, para evitar o compadrio. Para avalizar em termos de "realidade brasileira," pode-se fazer assim: 60% de arquitetos e críticos estrangeiros, 40% de brasileiros. Não seria a solução que faria do Brasil uma Holanda ou Japão, mas pelo menos daria uma bagunçada long overdue* no coreto.
*En français dans le texte.
27.6.11
Clipping
Hoje é dia de clipping. Isso porque (bem, além de por causa da preguiça) tem coisa interessante por aí:
A Nature tem um suplemento especial sobre biocombustíveis, o que deveria ser leitura obrigatória pra todo mundo que mora no país que o Ignacy Sachs advoga como líder mundial da nova civilização solar.
O xkcd explica o mercado de vinhos. E sim, eu falo isso como um esnobe que toma vinho.
Amanhã sai o resultado do concurso Porto Olímpico, que vai ser a primeira coisa concreta tanto da olimpíada quando da "revitalização" da Zona Portuária.
A Nature tem um suplemento especial sobre biocombustíveis, o que deveria ser leitura obrigatória pra todo mundo que mora no país que o Ignacy Sachs advoga como líder mundial da nova civilização solar.
O xkcd explica o mercado de vinhos. E sim, eu falo isso como um esnobe que toma vinho.
Amanhã sai o resultado do concurso Porto Olímpico, que vai ser a primeira coisa concreta tanto da olimpíada quando da "revitalização" da Zona Portuária.
24.6.11
Lugares estranhos do mundo XIII - Ar condicionante
É geralmente sabido que o acesso dos mais pobres a diversos bens considerados essenciais é mais restrito que o dos mais ricos. É por isso, afinal de contas, que são pobres, ou miseráveis, ao invés de simplesmente "não ricos." O que cada vez mais se nos damos conta, entretanto, é que o rol desses bens não inclui apenas aqueles que são diretamente objeto de trocas comerciais, como comida, roupa,
moradia, ou bens duráveis em geral, como educação ou transporte, ou mesmo àqueles cujo status comercial é questionado, como água. O ar, por exemplo, ou o clima, são também apanágio dos ricos. Acontece mundo afora, graças à diferença de urbanização; os bairros ricos, com muito verde e ocupando áreas que já eram mais desejáveis, são mais agradáveis. Mas o exemplo mais bizarro disso, sem sombra de dúvida, fica na capital* da Bolívia, La Paz.
La Paz é basicamente uma imensa tigela irregular ou anfiteatro, esculpida pelo rio Choqueyapo no altiplano andino, segundo planalto mais alto do mundo. O ponto original de fundação da cidade era no alto do planalto, uma parada na rota dos tropeiros entre a antiga capital inca, Cuzco, e o Potosí, a "montanha de prata" que fez do império espanhol, e do Peru em particular, o lugar mais rico do mundo durante séculos. Os espanhóis se carrearam para altitudes menos extremas depois de poucos anos, porque ninguém gosta de passar frio o ano inteiro e respirar com a ajuda de aparelhos, e em La Paz a descida e subida não eram tão íngremes que inviabilizassem a comunicação com o altiplano, como em outros vales andinos.
Mais recentemente, entretanto, gente que não tinha muita escolha foi empurrada para cima pelo esgotamento dos terrenos no vale, em volta dos depósitos ferroviários e aeroporto do distrito, hoje município, de El Alto. Pelo nome já deu pra sacar que o lugar é meio lá em cima, não? A diferença de altitude entre o núcleo original de povoamento espanhol, hoje considerado a parte nobre da cidade, e o altiplano circuncidante, onde ficam os pobres, é de um quilômetro. La Paz tem altitude "média" de 3.650msnm, o que já é alto pra chuchu. Mesmo o núcleo nobre, a 3000 metros de altura, tão alto quanto...pera, não tem nenhuma cidade no Brasil dessa altura - Campos do Jordão fica a 1600. Lhasa, no Tibete, a do Dalai Lama, fica a 3450. Aliás, tá aí: falando do Tibete, a ferrovia Qingzang, inaugurada há nem tanto tempo pela China, disponibiliza tubinhos com oxigênio para os trechos acima de 4000m de altura, a altura de El Alto.
Sim, isso quer dizer que em La Paz, não apenas os pobres não têm ar como a cidade se irmana à Zona Sul do Rio de Janeiro, com os pobres ocupando os píncaros e os ricos os baixios. A diferença, claro, é que enquanto o clima do Rio é melhor nos morros (o que faz eles serem pouco atraentes são ou bem restrições legais, ou bem o risco de desastres), em La Paz pobre não tem direito ao oxigênio. O que, por sua vez, faz do Rio e não de La Paz um caso único, porque clima melhor para rico, se menos extremo do que na capital boliviana, é uma coisa comum. O jeito corriqueiro de atingir isso, quando não se tem uma cordilheira dos Andes à disposição, é através da arborização e impermeabilização do solo, quando possível acompanhada de corpos d'água. Em São Paulo, por exemplo, a diferença de temperatura no verão entre o setor sudoeste (do Morumbi à Vila Mariana) e os extremos da Zona Leste é de até nove graus Celsius.
*Bem, uma das. A Bolívia, como a África do Sul, tem capitais distintas para cada poder. A capital do judiciário, Sucre, é que é considerada "a" capital na constituição boliviana.
moradia, ou bens duráveis em geral, como educação ou transporte, ou mesmo àqueles cujo status comercial é questionado, como água. O ar, por exemplo, ou o clima, são também apanágio dos ricos. Acontece mundo afora, graças à diferença de urbanização; os bairros ricos, com muito verde e ocupando áreas que já eram mais desejáveis, são mais agradáveis. Mas o exemplo mais bizarro disso, sem sombra de dúvida, fica na capital* da Bolívia, La Paz.
La Paz é basicamente uma imensa tigela irregular ou anfiteatro, esculpida pelo rio Choqueyapo no altiplano andino, segundo planalto mais alto do mundo. O ponto original de fundação da cidade era no alto do planalto, uma parada na rota dos tropeiros entre a antiga capital inca, Cuzco, e o Potosí, a "montanha de prata" que fez do império espanhol, e do Peru em particular, o lugar mais rico do mundo durante séculos. Os espanhóis se carrearam para altitudes menos extremas depois de poucos anos, porque ninguém gosta de passar frio o ano inteiro e respirar com a ajuda de aparelhos, e em La Paz a descida e subida não eram tão íngremes que inviabilizassem a comunicação com o altiplano, como em outros vales andinos.
Mais recentemente, entretanto, gente que não tinha muita escolha foi empurrada para cima pelo esgotamento dos terrenos no vale, em volta dos depósitos ferroviários e aeroporto do distrito, hoje município, de El Alto. Pelo nome já deu pra sacar que o lugar é meio lá em cima, não? A diferença de altitude entre o núcleo original de povoamento espanhol, hoje considerado a parte nobre da cidade, e o altiplano circuncidante, onde ficam os pobres, é de um quilômetro. La Paz tem altitude "média" de 3.650msnm, o que já é alto pra chuchu. Mesmo o núcleo nobre, a 3000 metros de altura, tão alto quanto...pera, não tem nenhuma cidade no Brasil dessa altura - Campos do Jordão fica a 1600. Lhasa, no Tibete, a do Dalai Lama, fica a 3450. Aliás, tá aí: falando do Tibete, a ferrovia Qingzang, inaugurada há nem tanto tempo pela China, disponibiliza tubinhos com oxigênio para os trechos acima de 4000m de altura, a altura de El Alto.
Índice de pessoas com alta taxa de hematócritos |
*Bem, uma das. A Bolívia, como a África do Sul, tem capitais distintas para cada poder. A capital do judiciário, Sucre, é que é considerada "a" capital na constituição boliviana.
22.6.11
Alegria da Luma
Uma coisa que ficou atrás da orelha com essa coisa toda da crise nos bombeiros do Rio: por que o estado tem tantos bombeiros? São 15.000 bombeiros, um quarto do total nacional, apesar do Rio ter um duzentésimo do território e um duodécimo da população do Brasil. Mas aí você poderia perguntar: isso não é porque o Brasil em geral é desprovido de bombeiros, e o Rio é o que mais se aproxima de um padrão decente? Bem, mais ou menos São 16.550 bombeiros pra 15,993 milhões de pessoas. Ou 1 bombeiro pra cada mil pessoas, ou 103,48 bombeiros por cem mil habitantes, que é a medida usual. Guglando por dois segundos, é mais do que a maioria das cidades da Califórnia (lá o serviço é municipal), mas menos que San Francisco (148), Sacramento (123), e Oakland (108), esta sendo parte da RM de SF. Los Angeles tem 85, Long Beach 80, e San Diego 63.
Ah sim, e o Rio tem mais bombeiros do que a Califórnia, aparentemente. A Califórnia, não custa lembrar, tem mais de duas vezes a população do Rio, mais de dez vezes a área, umas dez vezes a renda (PIB), terremotos, vulcões, e tsunamis.
Ah sim, e o Rio tem mais bombeiros do que a Califórnia, aparentemente. A Califórnia, não custa lembrar, tem mais de duas vezes a população do Rio, mais de dez vezes a área, umas dez vezes a renda (PIB), terremotos, vulcões, e tsunamis.
20.6.11
Quem paga mais?
Segundo o estudo da UHY - sindicato internacional de contadores, o brasileiro que levar 200.000 anuais de salário bruto está bem melhor do que seus iguais em outros países. O que faturar 25.000, nem tanto. A carga tributária (contando previdência) sobre o primeiro é de 26% de sua renda, sobre o segundo 15,9%. No primeiro caso, é a quinta mais leve dos países pesquisados, no segundo está ali pelo miolo, entre as mais pesadas.
Aviso: pelo estudo, poderia-se crer que a carga tributária brasileira é progressiva. Só que mesmo o pobre-coitado que leva só míseros 32.000 reais líquidos pra casa no final do ano, coitadinho, ainda está entre os 20% mais ricos da população. Então esse imposto "progressivo" brasileiro só o é dentro do universo dos 20% mais ricos; quando se diz que a carga brasileira é regressiva, está se falando de uma comparação entre grupos maiores. E, claro, mesmo dentro desse grupo restrito, a comparação não leva em conta incentivos tributários ao investimento...
Aviso: pelo estudo, poderia-se crer que a carga tributária brasileira é progressiva. Só que mesmo o pobre-coitado que leva só míseros 32.000 reais líquidos pra casa no final do ano, coitadinho, ainda está entre os 20% mais ricos da população. Então esse imposto "progressivo" brasileiro só o é dentro do universo dos 20% mais ricos; quando se diz que a carga brasileira é regressiva, está se falando de uma comparação entre grupos maiores. E, claro, mesmo dentro desse grupo restrito, a comparação não leva em conta incentivos tributários ao investimento...
17.6.11
Desigualdades regionais
Acho que já li uns três artigos esta semana dizendo que a China vai soçobrar. Um deles falava nas desigualdades regionais que esfacelariam o país. Pois bem, fui atrás dessa desigualdade nas tabelas de PIB per capita de unidades subnacionais da Wikipédia, e qual não foi a minha surpresa?
Uma diferença de quase seis vezes entre Xangai e Guizhou (isso é, a renda da primeira é seis vezes maior, por cabeça, do que a da segunda). Se usar ao invés disso Jiangsu como topo da lista (limando as cidades-estado), são quatro vezes mais ou menos Para comparar,
a diferença entre Connecticut e Mississippi é de duas vezes. (Alasca e Delaware são minúsculos, e DC distorcido - contando este, umas cinco ponto cinco vezes.)
a diferença entre São Paulo e Piauí é de mais de quatro vezes. Contando o Distrito Federal, umas oito vezes e meia.
a diferença entre Nord-Pas de Calais e Pays de la Loire é de uns 20% (a mais que a renda per capita da primeira). Contando Paris, é de umas duas vezes.
a diferença entre Hessen e Mecklenburg-Vorpommern é de quase duas vezes. (Com Alemanha Oriental e tudo.) Contando as cidades-estado, um pouco menos de três vezes.
a diferença entre Nara e Aichi é de uns 70%. Contando Tóquio, duas vezes e meia.
Ou seja, em termos de províncias, a disparidade regional na China é similar à do Brasil, um pouco maior (porque apesar de serem cidades-estado, Xangai, Tianjin e Pequim são grandes).
Ah sim, a diferença entre as províncias do extremo sul argentino, Neuquén, ou a cidade de Buenos Aires, e o Chaco é de mais de dez vezes. Mesmo entre a província de Buenos Aires e o Chaco é de mais de três vezes e meia.
Uma diferença de quase seis vezes entre Xangai e Guizhou (isso é, a renda da primeira é seis vezes maior, por cabeça, do que a da segunda). Se usar ao invés disso Jiangsu como topo da lista (limando as cidades-estado), são quatro vezes mais ou menos Para comparar,
a diferença entre Connecticut e Mississippi é de duas vezes. (Alasca e Delaware são minúsculos, e DC distorcido - contando este, umas cinco ponto cinco vezes.)
a diferença entre São Paulo e Piauí é de mais de quatro vezes. Contando o Distrito Federal, umas oito vezes e meia.
a diferença entre Nord-Pas de Calais e Pays de la Loire é de uns 20% (a mais que a renda per capita da primeira). Contando Paris, é de umas duas vezes.
a diferença entre Hessen e Mecklenburg-Vorpommern é de quase duas vezes. (Com Alemanha Oriental e tudo.) Contando as cidades-estado, um pouco menos de três vezes.
a diferença entre Nara e Aichi é de uns 70%. Contando Tóquio, duas vezes e meia.
Ou seja, em termos de províncias, a disparidade regional na China é similar à do Brasil, um pouco maior (porque apesar de serem cidades-estado, Xangai, Tianjin e Pequim são grandes).
Ah sim, a diferença entre as províncias do extremo sul argentino, Neuquén, ou a cidade de Buenos Aires, e o Chaco é de mais de dez vezes. Mesmo entre a província de Buenos Aires e o Chaco é de mais de três vezes e meia.
O fosso do Sena
Após o assassinato na USP, maior universidade pública brasileira, agora foi noticiada uma série de furtos no campus da Praia Vermelha da UFRJ, a "Universidade do Brasil" criada em 1912 para que o rei da Bélgica pudesse ganhar um honoris causa. As autoridades da UFRJ falam em manter a abertura da comunidade para uso público, "mas..." Não sei o que esse "mas" embute na UFRJ; na USP, o assassinato foi usado como justificativa de uma política que já o antecedia, que é justamente de isolar cada vez mais a universidade da cidade, restringindo seu uso aos membros da comunidade universitária. Aos sábados, quem tenta adentrar a cidade universitária só o fará se conseguir explicar o que fará lá - isso se estiver de carro. Os ônibus dão meia-volta na entrada.
Houve um tempo, na idade média, em que a universidade era um problema. Ao contrário de hoje, em que a universidade de elite tem medo dos danos a serem causados pelos peões ao seu redor, os burgueses (no sentido original da palavra) consideravam os jovens universitários um bando de arruaceiros e encrenqueiros. Os peões, esses também no sentido original da palavra, estavam no campo e, como os pobres respeitosos das crônicas de Kipling e João do Rio, não ousariam causar confusão para seus superiores sociais porque sabiam que se o fizessem viria porrada, e muita. Bem, a não ser quando, na beira do desespero, se faziam bandidos, ou se amotinavam em gigantescas jacqueries. O que pensaria o burgomestre de Paris, que reclamava da "instituição bolonhesa" que só lhe dava dor de cabeça, de seu descendente direto, o reitor Rodas?
O movimento atual de foco total na faculdade como unicamente local de produção de saber técnico, isolado o máximo possível da comunidade, responde a um duplo anseio de isolamento entre elites e inferiores e de eliminação das contradições. Nesse sentido, o assassinato caiu como uma luva para o circo armado. Aliás, circo não, teatro - "teatro de segurança" é a expressão usada por muitos analistas para as medidas de segurança tomadas pelo governo Americano* após o atentado às torres gêmeas**, que em geral são consideradas ineficazes em si e de si, mesmo sem serem postas na balança contra o custo, aos confres do governo e à liberdade, pra não falar da paciência das pessoas, mas que provêem uma sensação, não de segurança, mas de estar se fazendo algo perante uma insegurança que só crescerá e que só pode ser enfrentada desse jeito. Cabe como uma luva num isolamento frente ao exterior como medida imposta após um assassinato que aconteceu no interior, e sem evidência de ter sido cometido por um meteco.
O curioso é isso estar acontecendo justo no momento em que o discurso da integração entre a faculdade e a sociedade está na moda...
Houve um tempo, na idade média, em que a universidade era um problema. Ao contrário de hoje, em que a universidade de elite tem medo dos danos a serem causados pelos peões ao seu redor, os burgueses (no sentido original da palavra) consideravam os jovens universitários um bando de arruaceiros e encrenqueiros. Os peões, esses também no sentido original da palavra, estavam no campo e, como os pobres respeitosos das crônicas de Kipling e João do Rio, não ousariam causar confusão para seus superiores sociais porque sabiam que se o fizessem viria porrada, e muita. Bem, a não ser quando, na beira do desespero, se faziam bandidos, ou se amotinavam em gigantescas jacqueries. O que pensaria o burgomestre de Paris, que reclamava da "instituição bolonhesa" que só lhe dava dor de cabeça, de seu descendente direto, o reitor Rodas?
O movimento atual de foco total na faculdade como unicamente local de produção de saber técnico, isolado o máximo possível da comunidade, responde a um duplo anseio de isolamento entre elites e inferiores e de eliminação das contradições. Nesse sentido, o assassinato caiu como uma luva para o circo armado. Aliás, circo não, teatro - "teatro de segurança" é a expressão usada por muitos analistas para as medidas de segurança tomadas pelo governo Americano* após o atentado às torres gêmeas**, que em geral são consideradas ineficazes em si e de si, mesmo sem serem postas na balança contra o custo, aos confres do governo e à liberdade, pra não falar da paciência das pessoas, mas que provêem uma sensação, não de segurança, mas de estar se fazendo algo perante uma insegurança que só crescerá e que só pode ser enfrentada desse jeito. Cabe como uma luva num isolamento frente ao exterior como medida imposta após um assassinato que aconteceu no interior, e sem evidência de ter sido cometido por um meteco.
O curioso é isso estar acontecendo justo no momento em que o discurso da integração entre a faculdade e a sociedade está na moda...
16.6.11
Mosqueteiros
Não consigo pensar em argumento melhor a favor do fim do sigilo eterno do que o fato de Sarney, Collor, e Bolsonaro serem contra.
Omphalos mundi
A surreal cobiça pelos royalties do petróleo (e só do petróleo) voltou ao noticiário nacional. O que eu acho da distribuição dos royalties do petróleo sem levar em conta a geografia já disse aqui, mas queria acrescentar uma coisa: é impressionante como o Brasil é autocentrado. Afinal de contas, que se queira tirar o royalty do petróleo, que é pago basicamente por brasileiros, já que a Petrobrás não é exportadora líquida, enquanto se ignora os royalties sobre a mineração pagos por estrangeiros, atesta para o fato de que os estados brasileiros só pensam na competição e na divisão do butim entre si, e não no resto do mundo. Não precisaram, as mineradoras brasileiras, de enfrentar uma tentativa de impor royalties mais elevados já que o minério de ferro está pela hora da morte. (E olha que os royalties australianos atuais já são bem maiores que os brasileiros.)
Outras evidências também pulularam pelo noticiário recentemente. Assim, ainda no tema "estados brasileiros estão dispostos a prejudicarem uns aos outros em favor de estrangeiros," a guerra fiscal que o STF cerceou incluía a isenção total de impostos a mercadorias importadas via portos daquele estado. Ora, assim como a Argentina impondo dificuldades à importação do Brasil, isso só beneficia os outros exportadores. Tudo bem que Santa Catarina queira beneficiar a sua indústria em relação à paulista, mas por que beneficiar assim a indústria chinesaamericanacoreanaturcaseilá? OK, no caso da guerra fiscal isso pode acontecer justamente porque, graças ao ICMS cobrado na origem exceto para energia e derivados de petróleo, Santa Catarina não receberia nada de imposto por um produto vindo de São Paulo de qualquer jeito. Mais um motivo para se ter o IVA, sem diferenciação por categoria, já.
Parêntese: só pra deixar claro, como até a Economist, em geral pró-empresa e antiestado, admite, falando de subsídios a Hollywood, guerras fiscais em geral só beneficiam a indústria incentivada, e não resultam em muito benefício para os guerreiros. Bem, não para os estados governados, imagino que mais para seus governantes.
Saindo das disputas tributárias, o ranking iberoamericano da SCImago de produção científica foi divulgado na revista da FAPESP como um motivo de se bater no peito e comemorar, já que a produção brasileira, apesar de ainda atrás da espanhola, está muito à frente de qualquer país latinoamericano. A USP sozinha já se equivale à Argentina, e não está tão atrás de Portugal assim; a UNICAMP, a UNESP e a UFRJ são cada uma comparável à Colômbia. Mas um sub-dado mais interessante do que esse é que enquanto na América Latina e Península Ibérica a proporção de colaborações internacionais fica entre 25 e 50%, com moda nos 30 e muitos, no Brasil ela fica entre 10 e 25%, com moda nos vinte e poucos. De novo, continuamos olhando muito para o próprio umbigo.
Outras evidências também pulularam pelo noticiário recentemente. Assim, ainda no tema "estados brasileiros estão dispostos a prejudicarem uns aos outros em favor de estrangeiros," a guerra fiscal que o STF cerceou incluía a isenção total de impostos a mercadorias importadas via portos daquele estado. Ora, assim como a Argentina impondo dificuldades à importação do Brasil, isso só beneficia os outros exportadores. Tudo bem que Santa Catarina queira beneficiar a sua indústria em relação à paulista, mas por que beneficiar assim a indústria chinesaamericanacoreanaturcaseilá? OK, no caso da guerra fiscal isso pode acontecer justamente porque, graças ao ICMS cobrado na origem exceto para energia e derivados de petróleo, Santa Catarina não receberia nada de imposto por um produto vindo de São Paulo de qualquer jeito. Mais um motivo para se ter o IVA, sem diferenciação por categoria, já.
Parêntese: só pra deixar claro, como até a Economist, em geral pró-empresa e antiestado, admite, falando de subsídios a Hollywood, guerras fiscais em geral só beneficiam a indústria incentivada, e não resultam em muito benefício para os guerreiros. Bem, não para os estados governados, imagino que mais para seus governantes.
Saindo das disputas tributárias, o ranking iberoamericano da SCImago de produção científica foi divulgado na revista da FAPESP como um motivo de se bater no peito e comemorar, já que a produção brasileira, apesar de ainda atrás da espanhola, está muito à frente de qualquer país latinoamericano. A USP sozinha já se equivale à Argentina, e não está tão atrás de Portugal assim; a UNICAMP, a UNESP e a UFRJ são cada uma comparável à Colômbia. Mas um sub-dado mais interessante do que esse é que enquanto na América Latina e Península Ibérica a proporção de colaborações internacionais fica entre 25 e 50%, com moda nos 30 e muitos, no Brasil ela fica entre 10 e 25%, com moda nos vinte e poucos. De novo, continuamos olhando muito para o próprio umbigo.
14.6.11
Lorenzianas
A Anefac (associação de gente que lida com finanças) divulgou a notícia de que, apesar do oba-oba recente, o Brasil continua se destacando, especialmente entre seus "novos pares" do G20, pela desigualdade e pela pobreza.
Não chega a ser uma notícia especialmente bombástica, a não ser para quem caiu na confusão geralmente feita no noticiário entre estoque, fluxo, variação (no fluxo, geralmente - variação no estoque sendo, bem, o fluxo), e tendência. Assim, por exemplo, o PIB é visto como riqueza (um estoque) quando ele representa a geração bruta de riqueza (isto é, um fluxo, e que nem conta a depreciação e outras perdas de riqueza - o PIB de um país que tem que reconstruir tudo é grande). E confundido com a variação anual no seu valor, que é chamada de "o pib." E do mesmo jeito, a desigualdade brasileira tem caido muito rapidamente, em termos relativos, nos últimos anos, mas essa queda é a partir de um valor absurdamente alto.
Pausa para explicar: a desigualdade medida pelo índice de Gini não é algum tipo de expressão direta da desigualdade absoluta. Ela mede, pra começar, apenas uma dimensão da desigualdade: a renda. Não está incluída a riqueza acumulada. Mais importante, não está incluída a prestação de serviços universais. Isso quer dizer que quando você lê que a desigualdade (índice de Gini) do Reino Unido (0,36) está próxima da dos EUA (0,40), ou pelo menos mais próxima destes do que da Escandinávia (entre 0,247 e 0,269), lembre-se de que o fato de britânicos terem acesso a um sistema único de saúde, e os americanos terem que pagar médico do próprio bolso, não entra na equação.
E mesmo a desigualdade de renda não é (por impossibilidade estatística, e até por conta de sigilo fiscal) da sociedade como um todo, mas por grupos de renda com uma resolução bem baixa, quintis (20% mais ricos, próximos 20%, etc) ou decis (acho que não preciso explicar). Por isso mesmo que sociedades consideradas profundamente desiguais na África têm índices de Gini baixos: como é meia dúzia de pessoas, e não 10% da sociedade, que é mais rica, os 10% (e os próximos 10%, e etc) não chegam a ser tão mais ricos, na média, a ponto de pesar no índice.
Mesmo com todas as ressalvas, é impossível negar que a mudança recente no Brasil foi expressiva. E isso é mais impressionante quando nos damos conta de que a mudança de atividade do Estado, nesse sentido, não foi o passar de um estado regressivo (que tira dos pobres para dar aos ricos) para um progressivo (dos ricos para dar aos pobres), ou mesmo neutro. Durante muito tempo, tanto a arrecadação de impostos quanto as transferências diretas de renda do Brasil foram fortemente regressivas, tanto em termos individuais quanto regionais. Hoje, isso mudou para algo francamente regressivo, no caso da distribuição, e fracamente regressivo, no caso da arrecadação. Em outras palavras, a distribuição de renda melhorou porque o grau em que o governo privilegia a classe média (os 20% mais ricos) e os ricos (o 1%) diminuiu, não porque ele atualmente privilegie os pobres.
Que essa mudança recente (principalmente devida ao bolsa-família, mas também à maior eficácia da Receita desde o Maciel) tenha sido para uma situação ainda regressiva, mas de si já tenha baixado a desigualdade expressivamente mostra o quanto a desigualdade brasileira não é "natural do sistema," ou uma herança externa ao estado e presente na sociedade que o governo ainda não conseguiu debelar, mas sim uma situação artificial construída pelo próprio estado. O estado brasileiro, longe de, como querem, ter se tornado ou jamais ter sido um Robin Hood, foi um Hood Robin pela maior parte de sua vida, e ainda é, se pouco. E a desigualdade brasileira é um pouco pior do que não mitigada pelo estado, ela sempre foi ativamente promovida por este. De novo, falando apenas em renda, transferência direta, incluindo aposentadorias e poupanças mas não nenhum gasto do estado. Não entra nessa conta o ICMS pago pelo seringueiro do Acre para sustentar a universidade da elite paulistana. Não entra nessa conta o IPI pago pelo mendigo no Anhangabaú que vira juro da dívida e assim fundo de renda fixa. Não entra o dinheiro do FAT sustentando empreiteiras. Não entra o ônibus ou metrô que tem que andar com as próprias pernas enquanto a gasolina tem subsídio de 14% via Petrobrás. Só transferências diretas.
Nos EUA, por outro lado, considerados a epítome do capitalismo selvagem entre os países ricos, e símbolo de liberdade e capitalismo, oposto à comunista Terra Brasilis, entre os colunistas e neodescolados da direita tupiniquim, a arrecadação de impostos é fortemente progressiva, e a distribuição de rendas medianamente progressiva. Isso apesar de todos os cortes de impostos e serviços do Reagan e do Bush. (Mas, de novo, sem levar em conta a falta de SUS.)
Não chega a ser uma notícia especialmente bombástica, a não ser para quem caiu na confusão geralmente feita no noticiário entre estoque, fluxo, variação (no fluxo, geralmente - variação no estoque sendo, bem, o fluxo), e tendência. Assim, por exemplo, o PIB é visto como riqueza (um estoque) quando ele representa a geração bruta de riqueza (isto é, um fluxo, e que nem conta a depreciação e outras perdas de riqueza - o PIB de um país que tem que reconstruir tudo é grande). E confundido com a variação anual no seu valor, que é chamada de "o pib." E do mesmo jeito, a desigualdade brasileira tem caido muito rapidamente, em termos relativos, nos últimos anos, mas essa queda é a partir de um valor absurdamente alto.
Pausa para explicar: a desigualdade medida pelo índice de Gini não é algum tipo de expressão direta da desigualdade absoluta. Ela mede, pra começar, apenas uma dimensão da desigualdade: a renda. Não está incluída a riqueza acumulada. Mais importante, não está incluída a prestação de serviços universais. Isso quer dizer que quando você lê que a desigualdade (índice de Gini) do Reino Unido (0,36) está próxima da dos EUA (0,40), ou pelo menos mais próxima destes do que da Escandinávia (entre 0,247 e 0,269), lembre-se de que o fato de britânicos terem acesso a um sistema único de saúde, e os americanos terem que pagar médico do próprio bolso, não entra na equação.
E mesmo a desigualdade de renda não é (por impossibilidade estatística, e até por conta de sigilo fiscal) da sociedade como um todo, mas por grupos de renda com uma resolução bem baixa, quintis (20% mais ricos, próximos 20%, etc) ou decis (acho que não preciso explicar). Por isso mesmo que sociedades consideradas profundamente desiguais na África têm índices de Gini baixos: como é meia dúzia de pessoas, e não 10% da sociedade, que é mais rica, os 10% (e os próximos 10%, e etc) não chegam a ser tão mais ricos, na média, a ponto de pesar no índice.
Mesmo com todas as ressalvas, é impossível negar que a mudança recente no Brasil foi expressiva. E isso é mais impressionante quando nos damos conta de que a mudança de atividade do Estado, nesse sentido, não foi o passar de um estado regressivo (que tira dos pobres para dar aos ricos) para um progressivo (dos ricos para dar aos pobres), ou mesmo neutro. Durante muito tempo, tanto a arrecadação de impostos quanto as transferências diretas de renda do Brasil foram fortemente regressivas, tanto em termos individuais quanto regionais. Hoje, isso mudou para algo francamente regressivo, no caso da distribuição, e fracamente regressivo, no caso da arrecadação. Em outras palavras, a distribuição de renda melhorou porque o grau em que o governo privilegia a classe média (os 20% mais ricos) e os ricos (o 1%) diminuiu, não porque ele atualmente privilegie os pobres.
Que essa mudança recente (principalmente devida ao bolsa-família, mas também à maior eficácia da Receita desde o Maciel) tenha sido para uma situação ainda regressiva, mas de si já tenha baixado a desigualdade expressivamente mostra o quanto a desigualdade brasileira não é "natural do sistema," ou uma herança externa ao estado e presente na sociedade que o governo ainda não conseguiu debelar, mas sim uma situação artificial construída pelo próprio estado. O estado brasileiro, longe de, como querem, ter se tornado ou jamais ter sido um Robin Hood, foi um Hood Robin pela maior parte de sua vida, e ainda é, se pouco. E a desigualdade brasileira é um pouco pior do que não mitigada pelo estado, ela sempre foi ativamente promovida por este. De novo, falando apenas em renda, transferência direta, incluindo aposentadorias e poupanças mas não nenhum gasto do estado. Não entra nessa conta o ICMS pago pelo seringueiro do Acre para sustentar a universidade da elite paulistana. Não entra nessa conta o IPI pago pelo mendigo no Anhangabaú que vira juro da dívida e assim fundo de renda fixa. Não entra o dinheiro do FAT sustentando empreiteiras. Não entra o ônibus ou metrô que tem que andar com as próprias pernas enquanto a gasolina tem subsídio de 14% via Petrobrás. Só transferências diretas.
Nos EUA, por outro lado, considerados a epítome do capitalismo selvagem entre os países ricos, e símbolo de liberdade e capitalismo, oposto à comunista Terra Brasilis, entre os colunistas e neodescolados da direita tupiniquim, a arrecadação de impostos é fortemente progressiva, e a distribuição de rendas medianamente progressiva. Isso apesar de todos os cortes de impostos e serviços do Reagan e do Bush. (Mas, de novo, sem levar em conta a falta de SUS.)
13.6.11
A vestal ciência
É comum, quando falamos em ciência que hoje foi desacreditada, apormos o prefixo "pseudo." Assim, o racismo científico, a criminalística lombrosiana, o darwinismo social, o flogisto, as investigações paranormais soviéticas, a eugenia seriam "pseudociências," e não ciência de verdade. E estaria preservada a verdadeira, a legítima, a pura ciência. Ora, como exatamente, afora o fato de serem teorias descartadas, se pode diferenciar a ciência da pseudociência? De um ponto de vista epistemológico, parece difícil. Ninguém chama o que Lamarck fazia, por mais que estivesse errado, de pseudociência; ninguém deixa de denunciar o trabalho de Gobineau como tal. Mas Lamarck e Gobineau ambos tinham noções acerca das ciências biológicas que eram amplamente aceitas em seus respectivos tempos, e que foram pouco após amplamente rejeitadas, não sem grandes disputas dentro e fora da academia, e importantes consequências políticas.
O motivo para a nomenclatura parece ser, antes, a noção de que a ciência é, em si e de si, algo bom e que não abriga (por definição) em si o erro moralmente condenável, como se ter sido parte de atrocidades condenasse a ciência como um todo. É, de certa forma, a mesma noção, mas do outro lado da torcida, que os criacionistas manipulam quando tentam desacreditar a teoria da evolução associando-a ao racismo científico. E, claro, é profundamente problemática, para além da questão racional e filosófica, politicamente. Porque implica em acreditar que a ciência não pode falhar - e dificulta a que enfrentemos ela quando falha. O racismo científico, por exemplo, ainda deveria ser combatido por uma questão moral mesmo que suas bases científicas fossem corretas oras pinóias.
O motivo para a nomenclatura parece ser, antes, a noção de que a ciência é, em si e de si, algo bom e que não abriga (por definição) em si o erro moralmente condenável, como se ter sido parte de atrocidades condenasse a ciência como um todo. É, de certa forma, a mesma noção, mas do outro lado da torcida, que os criacionistas manipulam quando tentam desacreditar a teoria da evolução associando-a ao racismo científico. E, claro, é profundamente problemática, para além da questão racional e filosófica, politicamente. Porque implica em acreditar que a ciência não pode falhar - e dificulta a que enfrentemos ela quando falha. O racismo científico, por exemplo, ainda deveria ser combatido por uma questão moral mesmo que suas bases científicas fossem corretas oras pinóias.
10.6.11
Por único monumento
O almirante negro, João Cândido Felisberto, já não tem mais por único monumento "as pedras pisadas do cais." Pelo contrário, é hoje homenageado por um navio da frota da Petrobrás e por uma estátua na praça XV, ambos desvelados com a presença do presidente da República, sucessor ao fio dos anos daquele Hermes da Fonseca que mandou que se jogasse cal viva nos marinheiros, depois de renegar sua promessa aos amotinados de que ao largarem as armas seriam tratados dignamente. E aí está o problema: a narrativa na qual é celebrado o Almirante Negro* é uma narrativa contracultural, de resistência ao sistema dominante - como funcionam as coisas quando essa narrativa é celebrada pelo próprio sistema dominante. Será que João Cândido, post mortem, "traiu o movimento, véi"? Não que seja o único nem o maior, nesse caso : a 4km dali, uma enorme reprodução de um busto do Benim celebra o quilombola Zumbi dos Palmares. Cuja morte é feriado.
As coisas são mais simples, evidentemente, quando se trata de revoluções, em que a nova ordem celebra seus heróis em contraposição aos da velha ordem. Mesmo quando resgata estes posteriormente, trata-se do passado heróico da nação, e não de uma luta contracultural que, em muitos casos, como no do almirante negro, ainda está sendo travada. Ele é o símbolo de uma luta contra o racismo e o preconceito social que ainda vigoram, fortemente, no país, afinal de contas. Como pode ser comemorado o herói de uma luta que ainda não terminou? Não é estranho alguém que tem Hermes da Fonseca na galeria de predecessores comemorar o homem que Hermes da Fonseca torturou? (Não que essa continuidade não seja ela mesma uma construção algo recherché, já que não houve continuidade institucional, como no modelo americano, mas uma, dois, três, quatro, cinco constituições desde então.
É uma versão simbólica do próprio problema dos partidos trabalhistas e social-democratas quando chegam ao poder de forma menos do que completa. Como continuar criticando um establishment do qual se faz parte? Mas no caso, é potencializada pelo fato de o próprio ato de celebrar "heróis de nossa história," em monumentos de bronze ou pedra ou concreto, de tempo cíclico ou de verbo oficial, ser tão irremediavelmente ligado à cultura do poder, e especialmente àquela burguesa.
*Falo da narrativa, explicitamente, e não do próprio, que apesar de liderar a revolta contra a tortura na Marinha ficaria horrorizado com parte das apropriações de sua imagem feitas, era integralista e conservador em geral.
As coisas são mais simples, evidentemente, quando se trata de revoluções, em que a nova ordem celebra seus heróis em contraposição aos da velha ordem. Mesmo quando resgata estes posteriormente, trata-se do passado heróico da nação, e não de uma luta contracultural que, em muitos casos, como no do almirante negro, ainda está sendo travada. Ele é o símbolo de uma luta contra o racismo e o preconceito social que ainda vigoram, fortemente, no país, afinal de contas. Como pode ser comemorado o herói de uma luta que ainda não terminou? Não é estranho alguém que tem Hermes da Fonseca na galeria de predecessores comemorar o homem que Hermes da Fonseca torturou? (Não que essa continuidade não seja ela mesma uma construção algo recherché, já que não houve continuidade institucional, como no modelo americano, mas uma, dois, três, quatro, cinco constituições desde então.
É uma versão simbólica do próprio problema dos partidos trabalhistas e social-democratas quando chegam ao poder de forma menos do que completa. Como continuar criticando um establishment do qual se faz parte? Mas no caso, é potencializada pelo fato de o próprio ato de celebrar "heróis de nossa história," em monumentos de bronze ou pedra ou concreto, de tempo cíclico ou de verbo oficial, ser tão irremediavelmente ligado à cultura do poder, e especialmente àquela burguesa.
*Falo da narrativa, explicitamente, e não do próprio, que apesar de liderar a revolta contra a tortura na Marinha ficaria horrorizado com parte das apropriações de sua imagem feitas, era integralista e conservador em geral.
9.6.11
O tamanho do rombo
O IPEA fez as contas, e a área de mato perdida com o novo código (des)florestal é pouquinha coisa. Algo como uma área maior do que os estados de Sergipe, Alagoas, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraíba e Rio Grande do Norte juntos. Ou, se preferir, maior do que as Ilhas Britânicas. Bobagem.
E, claro, esse é o cenário otimista do estudo. No pessimista, some-se ao conjunto de estados Pernambuco e Santa Catarina. Vamos lá: pegue o mapa do Brasil e corte fora os estados mencionados todos para ver quanto de área florestada sumiria com o código florestal. Ou, para usar uma área contígua, São Paulo, Rio, e Paraná. (Em termos internacionais, é mais do que a Suécia ou o Iraque.)
Mas pera, piora.
No bioma Amazônico, estão 60% dessa área não recuperada. Em termos relativos, no entanto, a Caatinga e a Mata Atlântica seriam os biomas mais prejudicados. Nessas regiões, o percentual de reserva legal que não seria recuperada, em comparação ao total da área desmatada, seria superior a 50%. “É um percentual muito grande se considerarmos que a Mata Atlântica, por exemplo, é um hotspot da biodiversidade brasileira”, argumentou Ana Paula Moreira da Silva, autora da pesquisa.
E, claro, esse é o cenário otimista do estudo. No pessimista, some-se ao conjunto de estados Pernambuco e Santa Catarina. Vamos lá: pegue o mapa do Brasil e corte fora os estados mencionados todos para ver quanto de área florestada sumiria com o código florestal. Ou, para usar uma área contígua, São Paulo, Rio, e Paraná. (Em termos internacionais, é mais do que a Suécia ou o Iraque.)
Mas pera, piora.
No bioma Amazônico, estão 60% dessa área não recuperada. Em termos relativos, no entanto, a Caatinga e a Mata Atlântica seriam os biomas mais prejudicados. Nessas regiões, o percentual de reserva legal que não seria recuperada, em comparação ao total da área desmatada, seria superior a 50%. “É um percentual muito grande se considerarmos que a Mata Atlântica, por exemplo, é um hotspot da biodiversidade brasileira”, argumentou Ana Paula Moreira da Silva, autora da pesquisa.
7.6.11
Dicionário
"Revitalização," volta e meia comento por aqui, quer dizer valorização imobiliária; é um doublespeak comum no mundo inteiro.
"Massivo" quer dizer maciço, e "atrativo" atraente, isso são apenas anglicismos de quem tem vocabulário pequeno em português e menor em inglês, recorrendo ao pidgin que é o marquetês.
"Usina plataforma," inventada pela Eletronorte e pela EPE e adotada com entusiástica alegria por Lula e, agora, Dilma, quer dizer usina hidrelétrica que vai destruir o meio ambiente e as comunidades locais igualzinho às outras, mas que através de uma comparação malbaratada com plataformas marítimas de exploração de petróleo vão ser vendidas como ecológicas, justificando que sejam feitas no meio de áreas de preservação.
Não que plataformas sejam lá inerentemente seguras para o meio ambiente. A Eletronorte só quis trocar a sua péssima reputação ambiental pela boa (e não inteiramente merecida) reputação da Petrobrás através da prestidigitação. Mas vamos lá para os custos dessas tais usinas plataforma (ou, mais propriamente, canteiros de obra-plataforma), se fossem levados a cabo: a obra de uma usina hidrelétrica emprega mais de cem vezes o contingente de trabalhadores embarcados de uma plataforma. Seriam transportados todo dia milhares de trabalhadores de helicóptero, é isso? Ou os trabalhadores seriam alojados em barracões e proibidos de sair do perímetro ao longo das obras?
"Massivo" quer dizer maciço, e "atrativo" atraente, isso são apenas anglicismos de quem tem vocabulário pequeno em português e menor em inglês, recorrendo ao pidgin que é o marquetês.
"Usina plataforma," inventada pela Eletronorte e pela EPE e adotada com entusiástica alegria por Lula e, agora, Dilma, quer dizer usina hidrelétrica que vai destruir o meio ambiente e as comunidades locais igualzinho às outras, mas que através de uma comparação malbaratada com plataformas marítimas de exploração de petróleo vão ser vendidas como ecológicas, justificando que sejam feitas no meio de áreas de preservação.
Não que plataformas sejam lá inerentemente seguras para o meio ambiente. A Eletronorte só quis trocar a sua péssima reputação ambiental pela boa (e não inteiramente merecida) reputação da Petrobrás através da prestidigitação. Mas vamos lá para os custos dessas tais usinas plataforma (ou, mais propriamente, canteiros de obra-plataforma), se fossem levados a cabo: a obra de uma usina hidrelétrica emprega mais de cem vezes o contingente de trabalhadores embarcados de uma plataforma. Seriam transportados todo dia milhares de trabalhadores de helicóptero, é isso? Ou os trabalhadores seriam alojados em barracões e proibidos de sair do perímetro ao longo das obras?
Hoplitas espartanos
Uma das defesas das ditaduras que às vezes se ouve é a noção de que na ditadura, varridos os políticos, teríamos menos corrupção; os próprios militares certamente parecem acreditar nisso em suas invectivas no clube militar.
A noção é, evidentemente, asinina, mais até do que a maioria das defesas das ditaduras. Logicamente, porque se há menos transparência e controle externo dos afazeres do Estado há mais espaço para roubar. Historicamente, porque as ditaduras não varrem com políticos, só os substituem por outros; mesmo os políticos civis hoje tidos como exemplos de roubalheira Brasil afora ascenderam na política justamente durante e como aliados da ditadura - Sarney, Maluf, ACM, e Collor foram todos interventores, governadores nomeados pelos generais. E os políticos sem esse nome, militares, foram (e continuam sendo, num ministério que gasta tanto quanto os da Saúde e da Educação, sem que muito se veja disso por aí) extremamente corruptos. Exemplo disso (e com perdão à morta) é o Figueiredo. O obituário de sua viúva no Globo fala em "dificuldade financeira" pela qual ela vendeu, entre outras coisas, duas telas do Di Cavalcanti. Realmente, pagar condomínio de apartamento de luxo na praia de São Conrado e manter um haras na região serrana deve custar caro; imagino que os trocados das telas do Di tenham ajudado.
A noção é, evidentemente, asinina, mais até do que a maioria das defesas das ditaduras. Logicamente, porque se há menos transparência e controle externo dos afazeres do Estado há mais espaço para roubar. Historicamente, porque as ditaduras não varrem com políticos, só os substituem por outros; mesmo os políticos civis hoje tidos como exemplos de roubalheira Brasil afora ascenderam na política justamente durante e como aliados da ditadura - Sarney, Maluf, ACM, e Collor foram todos interventores, governadores nomeados pelos generais. E os políticos sem esse nome, militares, foram (e continuam sendo, num ministério que gasta tanto quanto os da Saúde e da Educação, sem que muito se veja disso por aí) extremamente corruptos. Exemplo disso (e com perdão à morta) é o Figueiredo. O obituário de sua viúva no Globo fala em "dificuldade financeira" pela qual ela vendeu, entre outras coisas, duas telas do Di Cavalcanti. Realmente, pagar condomínio de apartamento de luxo na praia de São Conrado e manter um haras na região serrana deve custar caro; imagino que os trocados das telas do Di tenham ajudado.
6.6.11
Números
O governo tucano paulista de José Serra criticava o custo de 33bi do projeto de trem-bala entre Rio e Campinas dizendo que com esse valor daria para construir 200km de metrô. A crítica foi encampada, de forma entusiasmada, por boa parte da imprensa. Agora, entretanto, leio sem crítica nem polêmica que o governador tucano paulista Geraldo Alckmin pretende duplicar 20km da rodovia dos Tamoios ao custo de 4,3bi. O custo por km da rodovia (que, duplicado apenas este trecho, mais barato porque não é em descida de serra, não serve pra nada; a rodovia só faz sentido inteira, do planalto ao mar) vai ser bem maior do que o do TAV. Daria para fazer, segundo as contas (erradas) do Serra 43km de metrô com o valor a ser enterrado no trecho San José Ocampo - Paraibuna da Tamoios. Mais realisticamente, daria para fazer uns 12km. Ou 60km de trem-bala. OK, a conta é imbecil, então vou parar por aqui, mas continua a pergunta: por que uma rodovia duplicada comum vai custar mais caro do que um trem bala?
CORREÇÃO: os 4,3bn são para duplicar a rodovia inteira. As contas restantes estão mantidas. O preço, assim, é ligeiramente menor do que o de uma linha de trem bala com desapropriações, enormes túneis urbanos e material rodante inclusos.
**********************
Quer saber o preço da gasolina em qualquer canto por aí? (Qualquer canto na OCDE.)
************************
A Economist anda recrutando gente na Uniban pra fazer o Daily Chart. Depois da barbada com o índice de felicidade da OCDE, agora conseguiram fazer uma média superior a quase todos os elementos que a compõem, e quase igual ao maior deles. É a tabela de desflorestamento mundial, que eu acharia interessantíssima se não fosse a possibilidade de que não valha o papel no qual não está impressa.
************************
Cabral quis mostrar que é mais macho do que o Serra. Este mandou a polícia descer o cacete na polícia; aquele não só mandou descer o cacete nos bombeiros, como mandou prender todos os 439. 439 presos de uma vez. Cadê o povo que comparava a Dilma à ditadura militar quando o Cabral mandou prender o pessoal que tacou coquetel molotov no consulado americano?
CORREÇÃO: os 4,3bn são para duplicar a rodovia inteira. As contas restantes estão mantidas. O preço, assim, é ligeiramente menor do que o de uma linha de trem bala com desapropriações, enormes túneis urbanos e material rodante inclusos.
**********************
Quer saber o preço da gasolina em qualquer canto por aí? (Qualquer canto na OCDE.)
************************
A Economist anda recrutando gente na Uniban pra fazer o Daily Chart. Depois da barbada com o índice de felicidade da OCDE, agora conseguiram fazer uma média superior a quase todos os elementos que a compõem, e quase igual ao maior deles. É a tabela de desflorestamento mundial, que eu acharia interessantíssima se não fosse a possibilidade de que não valha o papel no qual não está impressa.
************************
Cabral quis mostrar que é mais macho do que o Serra. Este mandou a polícia descer o cacete na polícia; aquele não só mandou descer o cacete nos bombeiros, como mandou prender todos os 439. 439 presos de uma vez. Cadê o povo que comparava a Dilma à ditadura militar quando o Cabral mandou prender o pessoal que tacou coquetel molotov no consulado americano?
3.6.11
Democracia racial
Uma das coisas que mais se ouve, em discussões acerca do racismo, é gente negando que tenha qualquer privilégio por ser branco, ou dizendo "eu nem me considero branco, sou da raça humana." É um sentimento muito nobre, mas quando é usado para negar o racismo esbarra na questão óbvia: é completamente impossível para um não-branco nem se considerar [negro/japa/índio/judeu/etc], porque vão lembrá-lo disso o tempo todo. São todos (ok, um tanto menos o japonês e o judeu) coloridos. Têm raça. Enquanto isso, o default-branco pode constituir a própria identidade a partir das bases que quiser; não teve uma imposta a ele. Aliás, um default-branco que também não inclui as pessoas que sejam brancas mas nordestinas e/ou faveladas.
E isso afeta as pessoas desde a infância, inclusive se refletindo no desempenho educacional. Até porque o Brasil é um país extremamente preconceituoso. Num post bem lá atrás comentei por alto sobre como o preconceito no Brasil não se restringe aos negros, mas é difícil deixar de sublinhar isso: ao contrário da autoimagem de que o país seria particularmente tolerante, o preconceito, em todos os matizes, é uma constante da sociedade brasileira. Manifestações de preconceito que seriam consideradas inaceitáveis em outros países são, aqui, lugar-comum. Quantas piadas de japonês com pau pequeno, turco e judeu ganancioso, negro bebum, bicha alucinada ou coisas parecidas ainda existem na TV?
A tolerância que foi, em alguns momentos, evidenciada no Brasil foi basicamente em relação aos imigrantes europeus e árabes brancos, e em menor medida aos japoneses, durante a época da imigração em massa, e as razões dessa tolerância, longe de serem uma certa bonomia do caráter nacional, estão justamente ligadas ao racismo. Os imigrantes sofreram preconceito, mas esse preconceito foi temperado pela crença na sua superioridade racial em relação à população nativa, negra ou misturada. Sobra até para os argentinos (de novo, com farto estímulo dos mídias de massa) que, estes, em geral têm uma atitude bem mais positiva para com o Brasil do que vice-versa. Sim, mesmo os portenhos.
Um exemplo de como a atitude tolerante para com imigrantes (e, hoje, turistas) brancos não se estende a qualquer um é a situação dos imigrantes bolivianos, cognominados aqui em São Paulo "roxinhos," e que já são parte significativa da população em alguns distritos.* Não é apenas que muitos deles sejam trabalhadores semiescravos; mesmo os que não são enfrentam uma alta carga de preconceito diário. Crianças bolivianas em escolas públicas comem o pão que o diabo amassou. O preconceito brasileiro, é verdade, difere do presente em alguns outros lugares porque quase nunca se confunde com xenofobia; com raras, apesar de cada dia mais numerosas, exceções não se pretende "expulsar esses caras daqui." Ele é, antes, hierárquico, como tudo numa sociedade tão profundamente hierárquica. Que eles não saiam da cozinha, que saibam do seu lugar, cada macaco no seu galho.
Até por isso, seria interessante revisar, não apenas a xenofóbica lei de imigração getulista, mas também as diretrizes do MEC quanto ao ensino da cultura indígena. Estas ainda não foram editadas, mas pelo que tudo indica se focarão (como o fazem as diretrizes para o estudo da África e do negro no Brasil) especificamente nas etnias que historicamente fizeram parte do Brasil. Expandir isso para pelo menos o conjunto da América do Sul, além de ajudar a combater esse preconceito sofrido por bolivianos, paraguaios, e chilenos (e outros imigrantes de origem ameríndia que venham a se tornar significativos), seria um passo em direção a uma visão de mundo escolar menos voltada para o próprio umbigo. O Brasil é um país, pelo que se vê nos bancos escolares, tão girth by sea quanto a Austrália.
E isso afeta as pessoas desde a infância, inclusive se refletindo no desempenho educacional. Até porque o Brasil é um país extremamente preconceituoso. Num post bem lá atrás comentei por alto sobre como o preconceito no Brasil não se restringe aos negros, mas é difícil deixar de sublinhar isso: ao contrário da autoimagem de que o país seria particularmente tolerante, o preconceito, em todos os matizes, é uma constante da sociedade brasileira. Manifestações de preconceito que seriam consideradas inaceitáveis em outros países são, aqui, lugar-comum. Quantas piadas de japonês com pau pequeno, turco e judeu ganancioso, negro bebum, bicha alucinada ou coisas parecidas ainda existem na TV?
A tolerância que foi, em alguns momentos, evidenciada no Brasil foi basicamente em relação aos imigrantes europeus e árabes brancos, e em menor medida aos japoneses, durante a época da imigração em massa, e as razões dessa tolerância, longe de serem uma certa bonomia do caráter nacional, estão justamente ligadas ao racismo. Os imigrantes sofreram preconceito, mas esse preconceito foi temperado pela crença na sua superioridade racial em relação à população nativa, negra ou misturada. Sobra até para os argentinos (de novo, com farto estímulo dos mídias de massa) que, estes, em geral têm uma atitude bem mais positiva para com o Brasil do que vice-versa. Sim, mesmo os portenhos.
Um exemplo de como a atitude tolerante para com imigrantes (e, hoje, turistas) brancos não se estende a qualquer um é a situação dos imigrantes bolivianos, cognominados aqui em São Paulo "roxinhos," e que já são parte significativa da população em alguns distritos.* Não é apenas que muitos deles sejam trabalhadores semiescravos; mesmo os que não são enfrentam uma alta carga de preconceito diário. Crianças bolivianas em escolas públicas comem o pão que o diabo amassou. O preconceito brasileiro, é verdade, difere do presente em alguns outros lugares porque quase nunca se confunde com xenofobia; com raras, apesar de cada dia mais numerosas, exceções não se pretende "expulsar esses caras daqui." Ele é, antes, hierárquico, como tudo numa sociedade tão profundamente hierárquica. Que eles não saiam da cozinha, que saibam do seu lugar, cada macaco no seu galho.
Até por isso, seria interessante revisar, não apenas a xenofóbica lei de imigração getulista, mas também as diretrizes do MEC quanto ao ensino da cultura indígena. Estas ainda não foram editadas, mas pelo que tudo indica se focarão (como o fazem as diretrizes para o estudo da África e do negro no Brasil) especificamente nas etnias que historicamente fizeram parte do Brasil. Expandir isso para pelo menos o conjunto da América do Sul, além de ajudar a combater esse preconceito sofrido por bolivianos, paraguaios, e chilenos (e outros imigrantes de origem ameríndia que venham a se tornar significativos), seria um passo em direção a uma visão de mundo escolar menos voltada para o próprio umbigo. O Brasil é um país, pelo que se vê nos bancos escolares, tão girth by sea quanto a Austrália.
Assinar:
Postagens (Atom)