Pesquisar este blog

29.12.05

dry/sarcastic; friendly; obscure

Pessoas mais inteligentes que eu já comentaram que o meu humor é um tanto obscuro. Ia dizer às vezes, mas achei que o Serviço de Proteção aos Eufemismos me multaria. Pelo visto não é só o humor - e tanto no caso do humor quanto de outros, isso é um pouco até deliberado, é o prazer da inside joke, mas é muito mais uma falta de capacidade de imaginar o que os outros vão saber (então torna-se enfadonho ou irritante explicar) ou não. Bem, e preguiça. E dificuldade de expressão clara.

Normalmente, eu explico se alguém perguntar, senão assumo que ninguém se interessa. No caso do último post, porém, parece que eu realmente não me expliquei bem MESMO. Então vamos lá:

Primeiro a epígrafe: ela é do livro Neuromancer, de William Gibson, a obra mais famosa de uma corrente da ficção científica chamada cyberpunk. O "sprawl" no qual muitos de seus personagens vivem é o continente norte-americano, transformado ao longo do século XXI numa única, feia e decadente megalópole. O nome também se dá ao desenvolvimento suburbano, que é o assunto do post, especialmente àquele desenvolvimento suburbano que, nos EUA, se inicia após a II Guerra Mundial, e que se baseia no acesso, através de uma densa rede de estradas de rodagem, a loteamentos residenciais de grandes proporções, em que casas grandes (entre 1.200 e 8.000 pés quadrados, a 9 pés o metro) ocupam o centro de terrenos até nove vezes maiores.

Nota - a Amazônia mencionada no post é, pra ele, irrelevante, e ter falado da sua devastação só serviu pra embolar a mensagem, de que o Brasil não é um país de "baixa densidade populacional," já que essa baixa densidade é resultado de se acrescentar à área povoada as extensões da Amazônia, responsável por metade da área do país e um décimo da população. Seria como se alguém dissesse que a Dinamarca tem baixa densidade populacional, contando a Groenlândia (e a minha barbada, como se alguém ao dizer isso tivesse aproveitado pra denunciar o preconceito contra os Inuit). A nota fica aqui porque a devastação da Amazônia é movida pelo mesmo fator que levou à expansão dos subúrbios americanos: terra barata. Com a facilidade de acesso criada pelo automóvel e pelas estradas construídas em ritmo acelerado durante a Idade de Ouro, ter um terreno de mais de 5.000 metros quadrados no subúrbio é mais barato do que ter um quarto-e-sala no centro urbano; muitos centros urbanos mais recentes, nos EUA, nem chegaram a se desenvolver por conta disso, sendo hoje uma bizarra construção em que meia dúzia de arranha-céus, numa área de talvez quatro quarteirões, emergem de um extensíssimo subúrbio. Um dos efeitos colaterais disso é que o custo baixo da terra leva a construções com materiais mais baratos, tentando ocupar o máximo de terra possível (também é a razão dos gramados; a grama demanda baixo investimento inicial, principalmente antes do deslocamento da população americana para o Oeste árido). Assim, uma quase-mansão americana pode ser toda feita de madeira de segunda.

O modelo suburbano americano é o que eu estou criticando aqui, e não o fato de alguém morar em casas ou no subúrbio. Com a maior parte da classe média morando em subúrbios, as cidades européias têm densidades populacionais muito maiores do que as americanas. Não é simplesmente uma questão do tamanho da área ocupada pela família propriamente dita; o acesso exclusivamente automobilístico significa uma área considerável de estradas dedicadas ao automóvel, e as localizações escolhidas por esses loteamentos são, frequentemente, escolhidas pela própria beleza natural que elas destroem. Qualquer dos elementos (condomínios isolados, distância do centro, transporte de carro, grande área individual, preferência por localizações cênicas) desse modelo é inteiramente legítimo individualmente, mas o fato de ele ser acessível a baixo custo gera problemas sociais, ecológicos e econômicos para a sociedade. O problema não é a casa, é a Barra.

No Rio, esse modelo não seria o das casas de subúrbio nos bairros servidos pela estrada de ferro, que são de média densidade populacional, servidos por transporte de média-alta densidade (trens de superfície com cruzamentos), com estrutura urbana (serviços, infraestrutura, etc) antiga. Pelo contrário; o abandono dos antigos bairros operários, a não ser quando a "gentrification" faz deles objetos de especulação imobiliária, é um dos maiores desperdícios da dinâmica urbana capitalista. No caso do Rio de Janeiro, chega às raias do ridículo que uma cidade com problemas de transporte, em que seus bairros burgueses são também vias expressas atoladas de ônibus, privilegie a expansão para uma área mal-servida de infraestrutura, isolada da cidade por um maciço montanhoso, enquanto uma rede de transporte sobre trilhos de uns 200Km é deixada á própria sorte e os bairros por ela servidos vão lentamente se convertendo em terra de ninguém.

É bem verdade, aliás, que o Rio não é um caso muito bom para se pensar o Brasil. Mesmo descontando as "cidades médias" das periferias metropolitanas, hoje a maior parte da população brasileira vive em cidades médias, que são também as que mais crescem - um crescimento que poderia, se um dia a especulação imobiliária aliada ao planejamento "estilístico" parassem de dar as cartas, ser uma pusta oportunidade em termos de planejamento urbano. O Rio é uma das duas megalópoles brasileiras, e nenhuma outra cidade do país parece ter ele ou SP no futuro avistável.

PS pro Guilherme: "Manhattans" se formam em ilhas ou outras situações em que o acesso para fora do centro urbano é difícil; é o caso do Rio e seus morros.

26.12.05

Sprawl

The sky was the colour of television tuned to a dead channel...


O Brasil é um país espaçoso. Fora algumas coisas pontuais, graças à megalomania hidrelétrica dos governantes e à informalidade empreendedora dos catadores, desperdiça muito de quase tudo. Uma dessas coisas é o espaço: As cidades brasileiras ainda têm densidades populacionais maiores do que as de países desenvolvidos em geral, mas isso se dá por falta de opção mais do que de vontade - jogando a renda na conta, o Brasil só perde para os campeoníssimos EUA, Austrália e Canadá, que abrigam 20 das 20 maiores cidades do mundo por área (a 21ª é Londres, depois tem mais norte-americanas e australianas, monstros em população como SP e Tóquio só aparecem lá pelos quarenta e tantos). Mas o país está no bom caminho para atingir a liderança.

A construtora MRV, especializada no segmento residencial, concluiu um programa de investimento de mais de R$ 20 milhões na compra de terrenos em 12 cidades nos Estados de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná. Ao todo, são 125 mil metros quadrados de áreas que serão transformadas em 25 condomínios residenciais. Dez do total de projetos serão condomínios fechados de casas, um nicho no qual a empresa está apostando.

"A tendência da classe média é querer morar em casa", diz o presidente da construtora, Rubens Menin. Hoje, as casas já correspondem por cerca de 35% das vendas da empresa, que ficou conhecida no mercado pela construção de prédios voltados para a classe média baixa.

"Não vamos deixar de construir prédios, mas, na medida do possível, porque encontrar bons terrenos para construção de casas não é tão fácil, vamos investir cada vez mais neste nicho." Os novos condomínios residenciais serão lançados pela MRV durante o primeiro semestre de 2006.


E não custa lembrar que a idéia de que tem espaço sobrando no Brasil é falsa. São Paulo tem dois terços da população da França em metade da área; o Rio tem uma vez e meia a população da Suíça na mesma área. O espaço sobrando no Brasil, onde a devastação ecológica de um condomínio residencial (os maiores responsáveis pela destruição, nos EUA, da orla marítima) seria relativamente pequena, é lá nos confins da Amazônia, onde o Maggi, a Cargill e a Bunge vão grilando e transformando a floresta de transição e o cerrado em pasto de boi e plantação de soja.

24.12.05

Concurso de Miss

André, no Contra o Consenso, na lista de links aí do lado (que precisa ser atualizada) comenta sobre como, ao contrário do que querem os clichês, a opinião pública no Brasil não só é "business-friendly" como é muito mais simpática às empresas do que no país-referência, os EUA. É a impressão que eu tenho também, mas afinal essas impressões refletem ou não a realidade? Pois bem, sobre o mote usado pelo André, a Wal-Mart, fizeram uma enquete. O resultado é bem mais simpático à Walborg do que eu imaginaria, mas ela ainda é das corporações mais mal-vistas. Nada que se compare à Halliburton, claro.

23.12.05

Reincidência

Eu ia comentar que o alagamento de São Paulo não é notícia, que nos últimos anos São Paulo tá com a drenagem tão ruim que alaga se alguém esquecer a mangueira ligada. Mas aí li esta matéria sobre a deterioração das rodovias, e me dei conta de que, em matéria de notícia reincidente, nada leva a palma sobre isso. Nem "inflação/desemprego sofrem efeitos sazonais," nem "eventos periódicos acontecerão." Reclama-se de que o governo não mantém as rodovias a contento pelo menos desde a dinastia Han chinesa; imagino que, se soubesse mais sobre os sucessores de Alexandre, poderia empurrar isso alguns séculos pra trás, e não me surpreenderia se algum escriba egípcio ou sumério tivesse registrado lá "Maldito seja o faraó, semelhante aos deuses, pois que meus pés se acabaram na estrada mal conservada entre Tebas e Mênfis."

22.12.05

FOIA brasileiro?

Abrindo os arquivos.


Esperemos que os documentos brasileiros "liberados" tenham um pouco menos de tinta preta em "partes sensíveis" do que os da CIA. Que mesmo com toda a tinta preta permitiram que soubéssemos, por exemplo, que a teoria de conspiração esquerdista paranóica dos submarinos ao largo da costa brasileira, prontos pra apoiar o golpe, tava errada mesmo: não eram umas merrecas de submarinos, era uma Task Force inteira, com o USS Kitty Hawk de nau capitânea.

21.12.05

En Français dans le texte

Pra muita gente, com a ascensão da china ao posto de potência global, o Putonghua vai tirar o inglês do papel de língua global. Ou melhor, erroneamente falando do "Mandarim," já que o putonghua é apenas um dialeto de mandarim. Ou melhor ainda, acertadamente falando mandarim, já que "mandarim" referia-se originalmente à língua oficial (guanhua, na época) chinesa, não ao conjunto de dialetos (línguas) no qual ela se inscreve, que é o significado moderno. De qualquer jeito, à "língua da China."

Na minha opinião eminentemente ignorante: Claro que qualquer afirmação do vigor continuado de uma língua franca é arriscada; acho que não seriam poucos os que, até há relativamente pouco tempo, achariam estranha a noção de que o francês pudesse perder seu papel de língua franca entre os círculos diplomáticos, por exemplo. Mas aí é que está a questão: línguas francas não estão associadas diretamente ao vigor de uma potência hegemônica, mas a uma elite transnacional que por algum motivo fala aquela língua. A França foi central na Europa por muito tempo? Foi, mas nunca chegou a ser "hegemônica." A França de Richelieu e do Rei-Sol, no auge de sua força, nunca conseguiu expandir suas fronteiras, e não foi por falta de tentativa - as pessoas ficam impressionadas com Versailles, mas Luís XIV gastou seis vezes mais no exército do que na corte. O francês, no entanto, era falado, por vários motivos, pela nobreza européia, dos Pirineus aos Urais. Era uma língua de cultura, que não era necessariamente associada à França.

Do mesmo modo, o inglês, hoje - ou melhor, um pidgin English meio assustador - é uma língua que já perdeu a relação direta com os EUA (sem negar a continuada, e talvez crescente, irradiação cultural americana), e tomou o poder associado mais com uma nova elite (a mudança na constituição da comunidade científica, especialmente no pós-guerra, e a ascensão dos tecnocratas e administradores) do que com os Estados Unidos em si. A não ser que algo mude muito na subida chinesa, esta parece se dar reproduzindo a cultura "managerial," e não representando uma alternativa a ela.

Em tempos: o número de falantes nativos do putonghua ainda é relativamente exíguo. Uma das maiores zonas onde se concentram é Taiwan, porque a República da China sempre foi mais, ahan, insistente quanto ao seu uso do que a República Popular da China. Inclusive, enquanto putonghua significa "língua comum" (no sentido de língua franca, que nem no Tolkien e outros mundos de fantasia derivados), em Taiwan o nome é guoyu, "língua nacional."

Sugestão

Se, ao invés do ministro Marco Aurélio de Mello, puséssemos um chimpanzé no banco, e garantíssemos que os interesses da parte mais rica em qualquer ação fossem preservados (os interesses daqueles com mais de uma certa quantia, em ações criminais ou contra o Estado), economizaríamos dinheiro com o salário dele, e as sentenças seriam as mesmas.

19.12.05

Jesus Christ Supermona

Luiz Mott, líder do Grupo Gay da Bahia, ficou famoso por dizer que Zumbi era gay. Apesar de já ter, realmente, produzido coisa que até prestava sobre história das questões de gênero e sexualidade, ele agora dá a prova de que pirou de vez:

Jesus Cristo era Viado

Arriscando chutes

O lado ruim das coisas boas, ou o lado bom das coisas ruins:

A queda no número de alunos do ensino médio guarda uma correlação muito forte, por estado, com a evolução do caged. Estados em que a economia não-agrícola cresceu mais, com a reativação do mercado interno (inclusive graças ao tão mal-falado bolsa-família, que gerou empregos de serviços no Nordeste e na indústria paulista) tiveram maiores quedas no ensino médio; foram 137.000 a menos no Brasil inteiro, 131.000 a menos em SP.




*****************

O fim dos subsídios agrícolas, anunciado num acordo para "salvar" a reunião da OMC - o único grupo de lobby do mundo que também julga governos - ainda vai criar muitos sem-terra mundo afora. Vai, também ajudar a acabar de vez com o cerrado, e boa parte da Floresta Amazônica e de outros ecossistemas tropicais.


*****************

Fazer o Brasil ser condenado pela ONU, com a possibilidade de sofrer sanções ao estilo da África do Sul do Apartheid, não vai prejudicar as chances eleitorais do Alckmin. Bandido bom é bandido morto, e a solução para o crime no Brasil é diminuir a idade da maioridade penal. Deixa pra lá que, ao contrário da imagem popular, apenas uma proporção ínfima dos crimes graves seja cometida por menores.

*****************


Colin Powell é candidato.

14.12.05

Declarações pra se comemorar

Uma de verdade: enquanto se discute sobre a transposição do São Francisco, o programa de cisternas do governo federal, que é muito mais importante do que ela no sentido de assegurar um suprimento de água para o semiárido (ênfase no semi), vai acabar o ano tendo passado da marca de cem mil cisternas, cada uma capaz de garantir água pruma família de seis durante a estação seca. Muito aquém da meta de um milhão até 2006, pelo visto, mas pode ser que chegue a 300.000, o que já quer dizer quase dois milhões de pessoas livres da seca.


Outra de fantasia: o governo federal prometeu construir um trem de alta velocidade entre o Rio e São Paulo. Por enquanto, é tão fantasia que as estações-terminais propostas são a Central e a Luz, que já estão abarrotadas, e a velocidade anunciada é de trem de planície. Apesar de já existir um estudo do Ministério dos Transportes, patrocinado pelo governo alemão (em troca de uma vantagem pra Siemens na hora de se comprar os trens), para um corredor Rio-SP-Campinas de alta velocidade. Com términos na Leopoldina e numa estação nova a se construir na Barra Funda.

12.12.05

Chorando de barriga cheia

Quando se fala em marketing, são comuns duas posições quase opostas. Uma atribui ao marketing em si - portanto ao discurso deliberado - o poder de criar noções; a outra reza que o bom marketing diz o que o alvo quer ouvir. As duas noções só se tornam erros se absorvidas e repetidas como o resumo da atividade. O convencimento ajuda a influenciar as pessoas dentro de um campo de possibilidades; e esse campo de possibilidades não é pautado tanto pelo que se quer ouvir quanto pelo que se considera plausível - as duas coisas só são sinônimas no caso de seguidores de Olavo de Carvalho e outros eloi avant la lettre.

E desse modo as forças armadas brasileiras, no seu carpir eterno, conseguiram estabelecer um consenso nacional. Estão à míngua, coitadas, oprimidas pelo medo ou revanchismo dos governos civis. Fora a explicação politizada, a reclamação é uma constante dos exércitos em todo o mundo. De certa forma, é comum a toda burocracia - nenhuma delas tem os fundos para fazer tudo aquilo que se propõe, e no caso dos exércitos houve de fato uma diminuição no gasto militar dos últimos anos. Até o Pentágono, sentado sobre uma montanha de dinheiro maior do que o PIB da Espanha, queria mais.

No caso das forças armadas brasileiras, a choradeira tem um pequeno probleminha: os "investimentos" (a imprensa brasileira tomou gosto, não sei influenciada por que ou quem, por um maniqueísmo entre investimentos virtuosos e gastos correntes maléficos), no sentido puro das FA brasileiras durante o período FH foram superiores - principalmente em termos de capacidade de defesa efetiva, ou seja, excluindo sandices como a corrida nuclear, ganha pela Argentina - aos feitos durante a ditadura. Mesmo descontando os milhões de dólares roubados pelo PSDB, o SIVAM representou um investimento inicial de 1.4bn, e investimentos anuais de centenas de milhões - equivalente, uma vez que você considere a diferença de 15x entre o PIB brasileiro e o americano, ao tão (mal)falado programa de defesa balística do Bush, para comparar dois sistemas de bases de rastreamento e aparato auxiliar. O também bilionário - e controverso - programa Calha Norte foi reativado pelo FH e intensificado pelo Lula. A Marinha ganhou um porta-aviões operacional, e promessas à ela e à força aérea de comprar caças de combate novos - promessa descumprida por conta da troca de governo, mas em compensação Lula aumentou o soldo.

Tanto na comparação com outros ministérios brasileiros quanto na comparação com outros ministérios da defesa na Europa e Américas, as forças armadas brasileiras aumentaram na última década, não encolheram. É verdade, encolheram como proporção do PIB brasileiro - segundo o SIPRI, os gastos militares brasileiros oscilaram em torno de 3% do PIB durante a década de 80, em torno de 1,9% durante a de 90, de 1,6% durante o governo Lula. Mas boa parte desse encolhimento pode ser creditado ao abandono da bomba atômica, e depois do corte fundo do Collor - de 3,3 em 89 pra 1,4 em 91 - a tendência tem sido estável. E sempre associada ao comportamento da economia brasileira - se tem crise, sensatamente baixa-se o gasto militar. Enquanto isso, na Argentina o gasto, que já era menor que o brasileiro, mesmo proporcionalmente, tem apresentado uma queda leve mas consistente ao longo da década. O México, que enfrenta uma rebelião, não variou o gasto, mas em compensação ele não passa de zero-vírgula-cinco por cento do PIB - um terço do gasto brasileiro. O Canadá, terceira potência militar das Américas, também caiu consistentemente ao longo da década, de 2,0 pra 1,2. Até os EUA gastavam a mesma coisa em dólares, uma proporção muito menor do PIB, em 2004 que em 88.

Mas faz sentido a explicação de que elas estariam à míngua. E realmente elas não estão perfeitamente aparelhadas para sua missão - nem se você imaginar que sabem qual é essa missão, porque pra defesa territorial ou patrulhamento costeiro o uso de um porta-aviões é questionável, pra dizer o mínimo. Se bem que nem os milicos, deixando de lado a propaganda, levam a sério a possibilidade de o Brasil entrar em guerra. Se levassem, a esquadra de guerra não estaria no Rio e os draga-minas em Salvador.

11.12.05

Tomara que seja factóide

Hugo Chávez gosta de factóides. Nem poderia ser de outro jeito um cara que tem que administrar a dicotomia entre ser bête noire do grande satã e dono da segunda maior rede de postos de gasolina dos EUA. Por isso, dá pra ter alguma esperança de que o gasoduto apresentado como Grande Obra durante a adesão da Venezuela ao Mercosul seja só um factóide mesmo. Ainda mais que, por mais fundos que sejam os bolsos da PDVSA, 30 bilhões de dólares (fazendo a conta-padrão pra grandes obras de infraestrutura sobre o preço anunciado) num projeto de viabilidade econômica duvidosa, ligando duas regiões produtoras ao longo de milhares de quilômetros sem consumidores, acho que só o governo americano banca, e olhe lá.

E tem que rezar pra ser só factóide. O gasoduto anunciado iria cortar a Gran Sabana, a Amazônia e o Pantanal ao meio. Três regiões a perigo, concentrando boa parte dos índios que sobraram na América do Sul, fora da área do índio-campesino andina. As obras auxiliares de infra que seria razoável associar a ele abririam, segundo estudo do Imazon, mais de 265.000Km2 de floresta à exploração pecuária, por baixo - o equivalente a dez anos de desmatamento recorde, uma área maior do que o Reino Unido. Na conta mais "otimista," com controle da aftosa e pavimentação das rodovias brasileiras, quase um milhão de quilômetros quadrados, mais do que a área da própria Venezuela.

Se é pra anunciar grandes obras simbólicas, sou mais uma "Smithsonian do Mercosul." Imagina o que não ia dar pra fazer de museu e universidade com essa grana? Se puser em Asunción, transformava o Paraguai de economia do contrabando em centro tecnológico e cultural.

9.12.05

O espetáculo do crescimento de verdade

...é o da paranóia carioca. Tudo bem, brasileira, mas especialmente carioca. Incentivado pelos "especuladores" de sempre. A ALERJ acaba de aprovar lei prevendo a instalação de detectores de metais em ônibus e estações de trem, metrô e barcas, com multa de 10.000 UFIRs por dia por detector "faltando" pras empresas que não obedecerem. Enquanto essa praga é imposta com tanta veemência, a lei que prevê que míseros 10% dos ônibus sejam adaptados para deficientes físicos continua sendo tão respeitada quanto o teto de 12% para os juros da constituição. Desde que parei de morar na rota do 472, não vejo um ônibus adaptado há anos.

Pensando bem, faz todo o sentido. Cadeiras de rodas iam acionar o detector de metais.

8.12.05

Jornalistas e Matemática

PQP

Escrevendo para O Globo sobre a nova fórmula do Banco Mundial para contar a riqueza nacional, José Meirelles Passos consegue fazer uma confusão entre PIB e renda per capita de envergonhar aluno de geografia da oitava série primária.

Vamos lá, Zezinho: PER CAPITA significa dividido entre todos os habitantes do país. Em nenhuma conta de renda per capita o Brasil foi algum dia "o mais rico da América Latina" ou "a décima primeira maior economia do planeta."

7.12.05

Povos do Livro na era da Pesquisa de Opinião



Observações:

Algumas das diferenças podem ser atribuídas a padrões de resposta genéricos para as diferentes culturas nacionais, de interpretação do entrevistado do que sejam as cinco categorias (muito positivo a muito negativo) do questionário. Assim, os EUA tem menos gente contra e menos gente a favor da mesma religião que os europeus. Mesmo com essa ressalva, os números de "contra," principalmente contra muçulmanos na Alemanha e Holanda, são assustadores. Previsivelmente, anti-semitas grassam na Alemanha, Rússia, Polônia e Espanha.

Infelizmente, a pesquisa não decupa os anti-semitas franceses ou canadenses, mas dá pra chutar a origem de parte deles baseado nos números dos países islâmicos - até o Marrocos e a Indonésia, em pólos opostos do mundo islâmico, e ambos distantes em todos os sentidos da situação palestina, são alarmantes. Não que falte anti-semita "tradicional" no Canadá ou na França.

O resto da pesquisa, com muito mais coisa interessante, tá aqui.

6.12.05

Das Eisenoctopus

Enquanto foi estatal, a Vale do Rio Doce nunca se constituiu em monopólio. Estava até meio removida da estrutura produtiva nacional: era basicamente uma produtora de minério para exportação, com uma estrutura logística dedicada. Uma estrutura logística dedicada sem tamanho, diga-se - os terminais da Vale em Vitória e São Luís são ambos maiores do que o porto de Santos, pelo critério de toneladas de carga movida, e o conjunto Vitória-Minas/Porto de Tubarão (Vitória) já transportava boa parte do minério de terceiros para exportação.

Foi privatizada em um só lote (o que, por conta da falta de capital disponível no Brasil para comprar uma empresa desse tamanho, significou "privatizada de graça"), e desde então tem agido como seria natural uma empresa com a geração de caixa que tem agir: comprando as concorrentes, tanto na área de mineração quanto na de logística. A Vale, hoje, é quase monopolista na exportação de minério de ferro, e somou às suas estradas de ferro a FCA e uma participação de 40% na MRS (a segunda, menor, é também mais importante, porque liga, em bitola larga, os principais centros industriais do Brasil). Isso permite, entre otras cositas más, que ela jogue pesado com as mineradoras que sobraram e siderúrgicas, o que fez com que o preço do minério de ferro brasileiro se aproximasse do preço internacional.

Agora, a empresa considera mais um passo no caminho do monopólio logístico, a compra da Brasil Ferrovias.

4.12.05

À moda antiga

Num documentário da Sandra Kogut, em que ela narra a própria busca por passaporte e nacionalidade magiares, uma coisa que chama a atenção é o antisemitismo que aparece na Hungria. Um antisemitismo à moda antiga, bem Old Country, sem nenhuma relação com Israel ou política. Quase pitoresco, nos dias que correm.

Coisa estranha: tanto os defeitos (como o anti-semitismo) quanto as qualidades (a leitura, ou a ida a concertos) da humanidade do entreguerras foram preservados pelo comunismo. É estranho, estranhíssimo, que um movimento que, logo após a revolução, incluía aqueles que pregavam por uma nova humanidade, que se propunha mudar tudo, virou ao invés disso um formol dos povos. O comunismo trocou Malevitches e Tretiakóvs, Maiakóvskis e Bulgakovs, pelo academicismo, trocou o antinomismo por um oficialismo de deixar assustado Felipe II. Com direito à perseguição de homossexuais, judeus, ciganos, tártaros, povos nômades, etc etc etc, mas o essencial dessa perseguição é menos o horror dela do que a falta de imaginação. Stálin foi mais um Czar, a China "comunista" paga ao Zhang Yimou pra resgatar a imagem do Primeiro Imperador.

E não, eu não consigo achar que esse formol dos povos, que nos dá a oportunidade de - mais ou menos - viajar ao passado indo a Cuba ou à Europa Oriental, fosse predestinado.

Última observação - é estranho que o cyberpunk não tenha nascido em países comunistas. Tem tudo a ver. Se bem que referências a samizdata e visões de Magnitogorsk abundam na literatura - um filho de espírito não precisa ser filho do solo.

3.12.05

O fardo do homem branco

A República Francesa, sob a liderança do facho Sarkozy, não quer que falem mal dela.

E o que mais me assusta é que, no embate entre um Sarkozy assumindo o lado nazi e um Villepin tentando sair da canalhice habitual para posar de Estadista da República - um papel bem mais aceito na França de Richelieu e Talleyrand do que em outros lugares - o Sarkozy ganhou a parada. Sem pudores de aliciar eleitor da FN.

******

Voltando ao assunto específico dos pieds-noirs, taí mais uma demonstração de que a história não se presta a uma narrativa com bonzinhos e malvados. Afinal, os milicos argelinos - que alimentaram o fundamentalismo na base da botinada - promoveram a sua própria limpeza étnica. Assim como, na Europa Oriental, milhões de alemães foram mortos ou expulsos depois da II Guerra (e, na Polônia, o governo local tentou completar o serviço de Hitler com judeus e ciganos). Etc etc etc.