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27.1.10

Struldbrugg

Em tempos de febre de vampiros (se você olhar a página de programação de cinemas da Folha, Lua Nova ocupa uma coluna inteira), Deixe Ela Entrar (Laatt dem Rätte Komma In), que já fui assistir no cinema três vezes e cuja versão de papel comecei agora, não tem absolutamente nada a ver com a horda de outros mal distinguíveis uns dos outros. Ou melhor, tem a ver sim - do mesmo modo que Uma Modesta Proposta tem a ver com panfletos de economistas ortodoxos.

(Se você não gosta de saber a estória antes de assistir ou ler, melhor parar por agora. Para dar um espaço, segue uma foto de Isabelle Adjani e Klaus Kinski em Nosferatu.)



O filme segue as aventuras de um menininho que encontra uma menininha e descobre o amor. Só que a menininha é uma vampira. E não uma "vegetariana" como a galera de Crepúsculo ou o Pequeno Vampiro, nem uma criatura romântica, atormentada e cúl como o os da Anne Rice e derivados (Vampire, True Blood, etc). E ao longo do filme você vai descobrindo outros detalhes - por exemplo, que o velho que se muda pro condomínio junto com a menininha Eli é o último menininho que se apaixonou por ela, deixando no ar a impressão de que esse é o mesmo destino de nosso herói Oskar. Ou que quando ela diz que não é uma menina não quer dizer que não é humana, mas que é um eunuquinho mesmo. Coisinhas assim.

Tudo isso conduzido com extrema delicadeza, e sem transformar as personagens em caricaturas baratas, e é aí que reside a força do filme. Deixe Ela Entrar é uma estória de terror, e uma tragédia no sentido antigo da palavra, justamente porque você sente que, todo mundo fazendo o que deve ser feito, as coisas levarão a um resultado horrível. É ao mesmo tempo profundamente realista no tratamento da relação entre os dois - Eli sabe que vai usar e abandonar Oskar, ao mesmo tempo que se apaixona por ele, e por isso fica relutante.

E é esse realismo, essa seriedade e delicadeza, que fazem do filme uma excelente paródia tanto de narrativas recentes sobre vampiros quanto de estórias de amor infantil ou os Bildungsromanen que infestam as telas. Uma paródia escrachada, convenhamos, não leva nada a filmes que já são quase paródias involuntárias de si mesmos. Não pode, entretanto, se gabar de ser o primeiro a sacanear de maneira maestral os que anseiam pela vida eterna, afinal o mesmo autor da Modesta Proposta que mencionei acima escreveu isso aqui: (leiam também a versão pornô do Manara)

After this Preface he gave me a particular Account of the Struldbruggs among them. He said they commonly acted like Mortals, till about thirty Years old, after which by degrees they grew melancholy and dejected, encreasing in both till they came to four-score. This he learned from their own Confession; for otherwise there not being above two or three of that Species born in an Age, they were too few to form a general Observation by. When they came to four-score Years, which is reckoned the Extremity of living in this Country, they had not only all the Follies and Infirmities of other old Men, but many more which arose from the dreadful Prospect of never dying. They were not only Opinionative, Peevish, Covetous, Morose, Vain, Talkative, but uncapable of Friendship, and dead to all natural Affection, which never descended below their Grand-children. Envy and impotent Desires are their prevailing Passions. But those Objects against which their Envy principally directed, are the Vices of the younger sort, and the Deaths of the old. By reflecting on the former, they find themselves cut off from all possibility of Pleasure; and whenever they see a Funeral, they lament and repine that others have gone to a Harbour of Rest, to which they themselves never can hope to arrive. They have no Remembrance of anything but what they learned and observed in their Youth and middle Age, and even that is very imperfect. And for the Truth or Particulars of any Fact, it is safer to depend on common Traditions than upon their best Recollections. The least miserable among them appear to be those who turn to Dotage, and entirely lose their Memories; these meet with more Pity and Assistance, because they want many bad Qualities which abound in others.

If a Struldbrugg happen to marry one of his own kind, the Marriage is dissolved of course by the Courtesy of the Kingdom, as soon as the younger of the two come to be four-score. For the Law thinks it a reasonable Indulgence, that those who are condemned without any Fault of their own to a perpetual Continuance in the World, should not have their Misery doubled by the Load of a Wife.

As soon as they have compleated the Term of eighty Years, they are look'd on as dead in Law; their Heirs immediately succeed to their Estates, only a small Pittance is reserved for their Support, and the poor ones are maintained at the publick Charge. After that Period they are held incapable of any Employment of Trust or Profit, they cannot purchase Lands or take Leases, neither are they allowed to be Witnesses in any Cause, either Civil or Criminal, not even for the Decision of Meers and Bounds.

At Ninety they lose their Teeth and Hair, they have at that age no Distinction of Taste, but eat and drink whatever they can get, without Relish or Appetite. The Diseases they were subject to still continuing without encreasing or diminishing. In talking they forgot the common Appellation of Things, and the Names of Persons, even of those who are their nearest Friends and Relations. For the same Reason they never can amuse themselves with reading, because their Memory will not serve to carry them from the beginning of a Sentence to the end; and by this Defect they are deprived of the only entertainment whereof they might otherwise be capable.

The Language of this Country being always upon the Flux, the Struldbruggs of one Age do not understand those of another, neither are they able after two hundred Years to hold any Conversation (farther than by a few general Words) with their Neighbours the Mortals; and thus they lye under the Disadvantage of living like Foreigners in their own Country.

26.1.10

O grande terremoto de Lisboa

Hoje é o aniversário do primeiro terremoto a atingir Lisboa. O segundo foi chamado de "o" grande terremoto de Lisboa, em 1755, e curiosamente teve quase exatamente a mesma potência do terremoto de Port-au-Prince de 2010. O terremoto, e os tsunami e incêndio que se lhe seguiram, arrasaram quase completamente a cidade e boa parte do sul de Portugal. Talvez as pessoas que falam do terremoto como uma "oportunidade" para o Haiti tenham em mente o que significou o grande terremoto de Lisboa para Portugal; se for o caso, acho melhor tirar o cavalinho da chuva, já que não há liderança política nativa se destacando na reconstrução, como o fez o marquês de Pombal, que com o crédito oriundo disso virou praticamente o ditador do país (o rei por sua vez ficou tão abalado pelo terremoto que nem coragem para entrar em prédios nunca mais teve).

Também graças ao terremoto, e a Pombal, Lisboa se viu reconstruída em linhas retas iluministas, quase um século antes que isso acontecesse em Paris, e ao contrário do que aconteceu em Londres, onde graças à barafunda jurídica a reconstrução após o grande incêndio de 1666 seguiu o traçado das ruas medievais. (Em Lisboa, não houve muita barafunda jurídica simplesmente porque a maioria tanto dos registros contidos nos arquivos reais quanto dos donos de terrenos havia ido pro beleléu.) No desenvolvimento ulterior de Portugal e seu império, é só lembrar que sem o terremoto Pombal não teria capital político para expulsar os jesuítas, proibir as manufaturas na colônia, revogar os éditos de pureza de sangue, a proibição do uso de língua geral no Brasil, ou a mudança da capital pro Rio. (É, o hômi fez tudo isso.)

Finalmente, a devastação causada pelo terremoto, ainda mais ocorrido no dia de todos os santos, chocou profundamente a sociedade européia da época. Voltaire, em particular, dedicou um poema e o Cândido ao terremoto. O choque foi comparado por Adorno, Benjamim, Habermas Singer e outros intelectuais do pós-guerra aos efeitos do Holocausto sobre sua própria geração (ok, na verdade a maioria deles foi menos modesta e falou dos efeitos sobre "a história" ou "a mentalidade" européia.)

Alguém lembrará do terremoto de Port-au-Prince, daqui a 255 anos?

21.1.10

Bonzinho pero no mucho

O Canadá geralmente é considerado um país "do bem." A piada é que se os EUA fossem o jock bebum capitão do time de futebol americano na "Escolinha do professor Ban," o Canadá seria o irmão mais novo certinho dele.

O que eu acho curioso é que o país mantém a reputação apesar de, em dois temas bastante significativos hoje em dia, o currículo dele ser atroz. Lembrei disso quando fui ler o site da organização suíça Public Eye, exortado pelo site www.amazonia.org.br a votar na Gas de France-Suez, dona da futura usina de Jirau. No tal site, o comitê olímpico internacional está entre os concorrentes ao título de empresa mais fdp, por ter escolhido Vancouver pra sediar os jogos de inverno deste ano, mesmo sabendo que isso causaria the displacement of a large part of the indigenous population around the venue, because the Games will be held on Indian lands whose title was never ceded. This has devastating consequences for man and environment: Vast areas of virgin landscapes and wild animal retreats were sacrificed for the expansion or construction of freeways, winter sports centers and other infrastructure. Homelessness in the Vancouver region, particularly among First Nations peoples, has tripled since the awarding of the Games.

No Canadá, isso é de praxe. As grandes hidrelétricas do Québec, que fazem com que "hydro" seja sinônimo de companhia elétrica no Canadá ocidental, são todas feitas em cima de cadáver de índio. Por outro lado, elas diminuem a pegada de carbono do Canadá, fazendo com que ele consiga não ser o pior gerador de gás carbônico per capita do mundo. Só o oitavo pior, atrás de EUA, Austrália, Luxemburgo, e quatro ditaduras petroleiras do Golfo Pérsico. Considerando-se o incentivo governamental à extração de petróleo das areias alcatroadas de Alberta, vai galgar degraus nessa corrida facim facim, aliás.

Nada disso significa negar que o país tem um bom sistema de educação, excelentes políticas sociais e de saúde, liberdade de imprensa e respeito aos direitos humanos (de não-índios) (a não ser que os EUA peçam por favor). Mas contrasta bastante com a imagem de bom moço.

Pra não ficar só falando mal do coitado do país, é muy fueda terem escolhido de Governadora Geral (chefe de estado, em nome da Rainha, sem poderes de verdade) uma imigrante haitiana, Michaëlle Jean, que nasceu em Port-au-Prince e foi pra lá aos 11 anos.

20.1.10

Le plus ça change

Dudinha Paes havia anunciado que, em contraposição ao faraônico projeto do César Maia de fazer um Guggenheim com a grife Jean Nouvel no Píer Mauá, a idéia dele seria mais modesta, fazer um parque ali.

Mais tarde, disse que iam parar o processo de execução do parque, já licitado e contratado, pra garantir a qualidade da coisa, arquitetônica e urbanística. Pensei, ingênuo, "legal, um concurso público prum parque ali."

Agora, óbvio, vem a notícia: o píer abrigará um museu projetado pelo Santiago Calatrava, escolhido por obra e graça de Dudinha e seus assessores.

Guggenheim dois, a revanche final está de volta.

Só pra constar - sou fã número um do Calatrava, e quase lá do Jean Nouvel. Aliás, o projeto do Jean Nouvel pro píer, já pago, era um desbunde, e poderia muito bem servir para um museu de ciências do tipo que a cidade está precisando e que a descrição do "museu do amanhã" não indica que ele será. Isso não justifica as obras faraônicas sem concurso e sem objetivo definido.

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No Sudão, um ditador e monstro genocida deve ganhar as eleições. Culpa, em boa parte, do fato de, como no Haiti, os dinheiros e ajuda direta prometidos para o país quando se negociou o fim das guerras intestinas ter se constituído inteiramente de vaporware.

Empresas de petróleo e armas, principalmente chinesas, agradecem. As petroleiras ocidentais preferem matar gente do outro lado do continente, na Nigéria, onde morreu um monte de gente em distúrbios pseudo-religiosos. A Nigéria, pra constar, está em crise política desde que, há mais de um mês, o seu presidente (o primeiro saído do Norte muçulmano), em peregrinação a Meca, sentiu dores no peito, e não mandou mais notícia, fora semana passada gravar uma reportagem pra BBC dizendo só que não estava morto e não sabia quando voltava. Tipo, zero notícia. Até aparecer na BBC, nem os ministros sabiam do hômi.

19.1.10

Pena de mueeeeeeeeeeerte

Não, não estou pedindo pena de morte pra ninguém. A citação a Los Tres Amigos é só pra notar como as privatizações e concessões, no Brasil, ganharam status de irreversibilidade absoluta. Assim, nem ficou pronto o laudo técnico do horror acontecido em Japeri, onde um trem da Supervia andou por cinco quilômetros, lotado de passageiros e com as portas abertas, e o Sérgio Cabral anunciou que descarta a idéia de intervenção. Fala que "melhor atendimento é um processo permanente." Sério? Só que os problemas da Supervia não são de demora no atendimento do telemarketing. São (este não foi o único, pra quem não se lembra dos funcionários chicoteando a população) problemas que põem em risco a vida da população. Sinceramente, a Supervia já estaria merecendo intervenção mesmo que não fosse concessão pública. Um shopping onde seguranças chicoteassem os clientes, ou um parque de diversões onde a montanha russa andasse sozinha sem as retrancas de segurança mereceriam intervenção governamental (no caso, após ordem judicial, que no caso da Supervia não é necessária.)

O mesmo ocorre com outras concessionárias de serviços públicos e/ou privatizadas. A Vale, como não canso de dizer aqui, usa na cara dura seu braço ferroviário pra detonar a concorrência. O Metrô Rio tem andado nas manchetes por problemas, além de descaracterizar o projeto original das estações do metrô. A ALL, ferrovia que tem os trilhos de SP pra baixo, descarrila dia sim outro também. Etc etc etc. E todas elas têm contratos que dizem que o governo pode, se esse tipo de coisa acontecer, retomar a concessão sem pagar idenização. Cláusulas que nunca são usadas, e hoje, foram descartadas antes mesmo de sair o laudo técnico.

Que tipo de relação é essa? Por que os contratos de concessão são absolutamente inquestionáveis, a não ser para "restaurar a viabilidade econômico-financeira" concedendo mais privilégios ou dinheiro público às concessionárias?

18.1.10

Vudu é pra jacu

As pessoas ficaram chocadas com o reverendo Pat Robertson, que num espetáculo de insensibilidade, logo após o terremoto disse que o Haiti mereceu o acontecido porque teria feito um pacto com o demo para expulsar os franceses. O âncora da NBC Keith Olberman inclusive soltou o verbo em cima do Pat Robertson e do comentarista Rush Limbaugh.

A besteira do reverendo tem sua origem no fato de (como já mencionado no post anterior) a revolução haitiana ter começado numa cerimônia vudu. Como vudu é coisa do demônio, logo... O que acho curioso, entretanto, é que muita gente concordaria instintivamente com o Pat Robertson sobre o vudu. No caso dele, qualquer religião que não seja o neopentecostalismo é coisa de Satã - ele já disse textualmente que Islã, Catolicismo, e Anglicanismo, pelo menos, o são. Mas a idéia do vudu como religião satânica é bem mais ampla do que entre os evangélicos.

Até o começo do século XX, essa visão do vudu como coisa do demo, ou então "selvagem" e terrível era estendida a todas as outras religiões afro-americanas. Mas nos anos 20, 30, as outras foram ganhando cartas de alforria, graças em parte ao trabalho de antropólogos e escritores que inclusive fizeram de algumas delas, como a Santería cubana e o Candomblé baiano, ícones da Kultur nacional e/ou regional.

Já o vudu, em parte por ser, graças à sua filial em Nova Orléans e à ocupação americana do Haiti em 1915-34, mais próximo dos EUA, teve a "sorte" de entrar para a mitologia americana como religião demoníaca. Parênteses: existe uma religião afro-americana nativa dos próprios EUA, o Obeah, mas no século XX ele já tinha se tornado algo vestigial, quase sem praticantes. O que faz sentido se você lembrar que o total de seres humanos embarcados para os EUA foi bem menor que o total do Haiti, para um país imensamente menor - o total do Caribe como um todo é de uns quatro milhões, número similar ao do Brasil, enquanto para os EUA foram uns 360.000 e só para o Haiti mais de 950.000.

Influenciados por essa representação mitológica, muita gente ainda tentou traçar as origens da diferença (fictícia) entre o Haiti e os cultos afro "bonzinhos." Nesse esforço, coopera o fato de os loas haitianos serem (como em algumas variantes da Umbanda) divididos em duas nações, Rada (oriundos da África) e Petro (nativos do Haiti). As nações podem ser vistas como loas separados ou como aspectos de cada loa (embora alguns, como a petro Marinette Bwa Sech não tenham correspondente na outra nação), e o fato de a nação terrível ser tida como crioula representaria, para os estudiosos que tentaram vestir a carapuça no vudu, como "evidência" de que o vudu teria se brutalizado no Haiti, devido à história de sangueiras do país (Leclerc, na tentativa napoleônica de debelar a revolução, matou um terço da população, e guerras civis foram uma constante desde então.)

Fechando com chave de ouro a má reputação do vudu, numa época em que começava-se a ter mais respeito por religiões pagãs até nos EUA, o pai-de-santo e médico François Duvalier, Papa Doc subiu ao poder no Haiti e se, por um lado, encampou o reconhecimento oficial do vudu como religião nacional, por outro lado abusou de sua reputação de pai-de-santo do mal, com direito a apelidar ele mesmo suas milícias políticas de tonton-macoutes, bichos papões. É em parte graças a ele que só hoje em dia o vudu finalmente começa a se livrar (fora dos círculos evangélicos) da reputação de coisa do capeta.

Pra fechar, sem nada a ver com o vudu, o vídeo do Arcade Fire falando do Haiti.

15.1.10

Braços secos

Muita gente tem comentado sobre como o Haiti tem "azar" na história. País mais pobre das Américas, etc etc. Eu mesmo comentei isso quando ouvi do terremoto pela primeira vez. Pois bem, só pra constar: o Haiti não é o país mais pobre das Américas por azar, por incúria dos nativos, ou por um acaso inexplicável. É o país mais pobre das Américas porque tem sido, sistematicamente, alvo das atenções das grandes potências européias e dos EUA, que roubaram tudo que não estava pregado no chão. E olhe lá.

A história do Haiti começa em 1804. Enquanto as revoluções burguesas da mesma época nos EUA e França tiveram participação popular mas foram dirigidas pela burguesia (e, nos EUA, a pequena aristocracia local), no Haiti a pequena burguesia foi a reboque, e a aristocracia foi pra fogueira. A revolução começou no Bois Caiman (capão dos jacarés), onde o houngan (pai de santo) Dutty Boukman organizou uma grande cerimônia vudu para selar o compromisso da revolta e pedir apoio espiritual; a filha de santo que, possuída pela loa Erzuli Dantor (o aspecto Petro, terrível, da loa Erzuli, cujo aspecto Rada, benévolo, é a deusa do amor) sacrificou um porco negro na cerimônia se transformou depois, segundo a lenda, na loa terrível Marinette Bwa Sech, padroeira das revoltas e dos lobisomens, cujos cavalos são marcados para a morte pela violência. O próprio Dutty foi morto pelas autoridades francesas; outros levaram a revolução adiante até que o Haiti se tornou o primeiro país livre das Américas, derrotando para isso o general Leclerc, cunhado de Napoleão Bonaparte, e 35.000 granadeiros daqueles que deixavam os exércitos da Europa tremendo que nem vara verde.

A revolução haitiana povoou as mentes das elites americanas por todo o século XIX. Debates nos parlamentos dos vários países que se separaram da Europa mas mantinham escravos faziam referências frequentes a elas; tal ou qual medida era sempre apoiada porque "evitaria um Haiti" ou atacada porque "levaria ao Haiti." O próprio Haiti, entretanto, veria, além das lutas internas entre negros e mulatos, uma derrama de seus cofres a pagar em idenizações à França pela própria independência; a contrapartida era o reconhecimento pela França e por outros países, sem o que a economia do país, baseada na agroexportação, não funcionaria. (OS EUA foram os únicos a não reconhecer a independência mesmo depois do pagamento à França.)

Além da imensa dívida à frança (21 bilhões de euros, em valores de hoje), o Haiti foi alvo de extorsões diversas ao longo do século XIX. Funcionava assim: alemão (ou americano, francês, britânico) era acusado de algum crime no Haiti e preso. Governo do cidadão se indignava com o fato de negros prenderem um homem de bem. Mandava uma ou duas canhoneiras bloquearem o porto de Port-au-Prince até que o cidadão fosse libertado e fosse paga uma bela "idenização." Nessas extorsões foram outros 9 bilhões, em valores de hoje.

Depois da segunda guerra mundial, as extorsões saíram de moda. As lutas entre negros e mulatos (estes compondo a maior parte da elite econômica) continuaram, entretanto. Além disso, em 1915, os EUA invadiram e ocuparam o país, a pedidos da HASCO, agrocorp açucareira que temia uma alta nos impostos. O banco central do Haiti, com suas reservas, foi entregue ao National City Bank of New York, que antes da ocupação já havia comprado uma participação no BC, mas depois dela anexou tudo e passou a se esquecer de pagar juros sobre os valores depositados. Foram instauradas no Haiti as leis raciais "jim crow" do sul dos EUA, parte de uma constituição (escrita pelo FDR) outorgada e aprovada por 98.75% dos eleitores haitianos. (Arrã.) Um dos marines no Haiti, Smedley Butler, depois descreveu suas próprias ações assim:

"I spent 33 years and four months in active military service and during that period I spent most of my time as a high class thug for Big Business, for Wall Street and the bankers. In short, I was a racketeer, a gangster for capitalism. I helped make Mexico and especially Tampico safe for American oil interests in 1914. I helped make Haiti and Cuba a decent place for the National City Bank boys to collect revenues in. I helped in the raping of half a dozen Central American republics for the benefit of Wall Street. I helped purify Nicaragua for the International Banking House of Brown Brothers in 1902-1912. I brought light to the Dominican Republic for the American sugar interests in 1916. I helped make Honduras right for the American fruit companies in 1903. In China in 1927 I helped see to it that Standard Oil went on its way unmolested. Looking back on it, I might have given Al Capone a few hints. The best he could do was to operate his racket in three districts. I operated on three continents."

Em 1934, os americanos pararam de administrar o país diretamente, e passaram a apenas patrocinar diversos ditadores, como no resto do hemisfério ocidental, entre eles o infame Papa Doc Duvalier, que apesar da reputação foi melhor do que a média, em parte porque conseguiu usar o reconhecimento oficial da religião vudu como fonte de legitimação popular própria, e assim resistir a parte das pressões americanas ("legitimação popular" que passava também pelo terror, tanto dos poderes vudu atribuídos ao ditador quanto pelos seus esbirros, os tontons macoutes, bem entendido). O padrão, com os EUA interferindo o tempo todo em políticas de camarilha, segue até hoje - sendo que a última deposição presidencial, na qual o presidente foi empacotado e levado por marines para a República Centro-Africana, continua mal explicada.

Azar o caramba. A história do Haiti é de opressão alheia, mesmo. Marinette dos braços secos merece mais rezas pelo país do que Ayida Wedo, loa da boa sorte e da riqueza.

Só pra lembrar:

site de doação do Médecins sans Frontières

site de doação do Programa Alimentar Mundial da ONU

14.1.10

Hood Robin

Rola uma briga, no momento, por conta da autorização dada pela prefeitura do Rio para que ergam, entre os Arcos da Lapa e a Catedral, um prédio de 44 andares. Da briga, estou fora; a idéia de que arranha-céus "descaracterizam" a Lapa é meio estranha, já que parte do charme do centro do Rio é justamente o contraste entre o moderno e o antigo. De qualquer ponto do largo da Lapa dá pra ver os espigões da Chile.

O que me choca, entretanto, é o Eduardo Paes falando que a autorização foi concedida porque ajudará a "revitalizar" a área. Defendi a revitalização da zona portuária porque, ao contrário da maioria das áreas "revitalizadas" mundo afora, ela está mesmo morta, com uma população pequena e decrescente, e menos ainda empregos. Mas a palavra revitalização, geralmente, quer dizer mesmo gentrificação, ou, em outras palavras, expulsar os pobres para dar lugar aos ricos, com ajuda do governo e muita especulação imobiliária. E é difícil imaginar um exemplo mais claro disso do que na declaração da Duda. Alguém consegue ir na Lapa numa noite de sexta e dizer que àquilo falta vida?




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Quando furacões assolaram o Haiti, foram prometidos 300 milhões em ajuda. Não pingou um centavo. A ver se dessa vez sai alguma coisa. Só pra constar - o valor pago pelo Haiti à França de 1804 a 1879, corrigido e sem juros, tá por volta de E21bn. O valor pago em diversas extorsões (é, extorsões na cara dura) feitas à França, Reino Unido, EUA e Alemanha dá uns outros E9bn. É só devolver parte do roubado, não precisa fazer caridade não.

13.1.10

Encasquetamentos

Por que o TAV não é maglev? Não, sério. Explico: o maior problema do TAV Rio-SP é a Serra do Mar; o trem vai ter que fazer umas curvonas pra galgar a serra, em parte porque o gradiente máximo de descida dele é um metro a cada vinte. Ora, Maglevs não têm gradiente máximo, fora o do conforto dos passageiros. Se fizer cadeiras autocompensantes, ou enfiar a galera em arreios de montanha russa, você pode fazer um maglev subir reto pra cima sem problema. Além disso, a vibração é menor, então um túnel subterrâneo em área urbana sai muito mais barato, e túneis subterrâneos em áreas urbanas são o outro pedaço grande dos custo e prazo da obra. E, finalmente, com um maglev o percurso Carandiru-Leopoldina duraria 1h ao invés de 1h30. Mas a consultoria inglesa simplesmente ignorou a possibilidade de se usar maglev.

E aqui vai a opinião de um expert concordando comigo.


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O Haiti definitivamente tem uma caveira, não de burro mas de tiranossauro enterrada em algum lugar de Port-au-Prince. Agora seria uma excelente hora pro Brasil mostrar a que veio e, ao invés do esforço meia-bomba que são a MINUSTAH e ações conexas, se empenhar no lugar. O Serra e o Cabral não tão se jactando de que tão cheios da grana? Corta a grana federal do Rodoanel e do Arco Rodoviário, manda pra lá, já é igual ao PIB daquele país.

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O editorialista da Veja tá puxando como fonte pra sua oposição o TERNUMA. Não li (nem daria pra ter lido, é um cartapácio sem tamanho) o PNDH, mas mesmo que não soubesse o que tem dentro, aprovaria só de ver quem é contra. (O que tem dentro é, basicamente, uns 2/3 da minha wish list política, aparentemente.)

12.1.10

Um dia sem africanos

Na Itália, a cidadezinha de Rosarno realizou o sonho dourado de todo tiozinho reaça europeu e expulsou todos os imigrantes africanos. Junto com, não duvido nada, um ou outro negro que não tivesse nada a ver com o papo, ou alguma menina que tenha exagerado no bronzeador solar.

É particularmente irônico que isso tenha acontecido numa cidade do sul da Itália; afinal, o mais importante partido explicitamente preconceituoso da Europa, a Liga Norte, foi fundada para manter do lado de fora não apenas os pretos e eslávicos da Itália, mas também o pessoal do Mezzogiorno longe do Norte. É um pouco como se a primeira cidade brasileira a expulsar todos os bolivianos (e qualquer um com olhinhos puxados) fosse uma situada na Bahia ou na Paraíba.

Também é uma evidência de como a Itália tem cada vez mais assumido a liderança no campeonato europeu de intolerância, apesar da disputa acirrada (principalmente com a Suíça). Mais do que isso, mostra como a Itália tá virando um miasma da tirania da classe média, um cyberpunk lodoso que faz a gente revisar o lugar comum que vê apenas estados paupérrimos e violentos como "failed states." A Itália, cada vez mais, caminha pra ser um "failed state" com velhos rancorosos e armadilhas de turista. Pena, tão nova...

7.1.10

Exemplo a ser seguido

Uma liderança entre os agricultores australianos está em greve de fome por conta da lei aprovada impedindo o desmatamento. Com essa lei a Austrália, como o Brasil, pretende compensar na rubrica "uso da terra" uma quantidade crescente de emissões em todos os outros setores. Ressalve-se que enquanto a intensidade de carbono brasileira é bem baixa por cabeça, e relativamente baixa por dólar de PIB, a Australiana disputa com o Canadá o título de pior do mundo no primeiro quesito, e é das piores no segundo.

Achei particularmente divertido este trecho de um discurso em apoio ao fazendeiro, feito por um político do partido nacional (conservador):



Nesta semana, o líder do partido Nacional no Senado, de oposição, Barnaby Joyce, apoiou Spencer em manifestação em Canberra, que atraiu centenas de agricultores. "Literalmente, as pessoas acordaram certo dia e os bens que possuíam no dia anterior não eram mais delas", disse Joyce.

"Sim, eles têm de pagar os impostos [pelo bem], eles têm de pagar o seguro público [...] mas não é mais seu bem. O governo tornou-se ladrão de um bem e quando isso acontece há uma palavra que define a situação. Essa palavra é comunismo", afirmou Joyce.


Espero sinceramente que a bancada ruralista inteira, Kátia Abreu à frente, siga o exemplo de Peter Spencer. Até o fim.

6.1.10

Lugares estranhos do mundo X - as catacumbas

Não, não se trata das Catacumbas em Roma, nas quais reza a lenda se criou o cristianismo, nem sequer de outros cemitérios habitados, como a imensa necrópole-favela cairota. (Apesar de, sem sombra de dúvida, esta merecer entrar na lista.) A questão é que em Paris, enquanto turistas se apinham nas catacumbas oficiais, propriamente ditas da cidade, há um outro mundo chamado pelos locais de "as catacumbas," a ser exploradas com direito a festas subterrâneas; é o mundo de galerias abandonadas de todo tipo - de minas, de abrigos, de transportes...há todo um mundo subterrâneo sob Paris, e sob muitas outras cidades, digno da "Lankhmar below" de Fritz Leiber, uma cidade subterrânea de ratos que conspiravam para tomar dos humanos a "Lankhmar above."

Alguns subterrâneos não são muito exploráveis - em Detroit, a mina de sal sob a cidade só pode ser alcançada via um elevador num fosso de trezentos metros de profundidade. Outros são uma extensão viva da cidade acima deles - em muitas cidades do norte dos EUA, Canadá e Rússia, túneis subterrâneos interligam os edifícios, pra fugir do clima do lado de fora.

A idéia, claro, é estranha pra brasileiros, já que, além de estarmos ainda na infância dos túneis do metrô, o solo sob a maioria das cidades brasileiras é difícil pra caceutis de se cavar, e geralmente inundado. Aliás, sobrados pré-industriais brasileiros geralmente não têm sequer o porão inteiramente subterrâneo - ande por qualquer rua de um centro histórico, e você verá as janelas dos porões até um metro de altura, com a escadinha levando à porta "térrea." Mas já existem alguns subterrâneos esquecidos até por aqui. Em São Paulo, o centro da cidade é fértil em passagens pra pedestres esquecidas; um pouco longe do centro, na esquinda da Consolação com a Paulista, uma delas foi "lembrada" e convertida em sebo. No Rio de Janeiro, duas estações da linha um do metrô foram escavadas e nunca terminadas, uma sob o morro de São João e outra na rua Uruguai. Fora as galerias pluviais, que, especialmente na orla Ipanema-Leblon, servem de abrigo pra crianças de rua - um abrigo, convenhamos, quase tão estranho quanto os túmulos cairotas.

5.1.10

O que vale é a apresentação

Pra começar o ano falando mal:

A manchete da Folha explica que "em apenas três dias, chove 20% do previsto para o mês em SP." A média de dias chuvosos no mês é de quinze dias. Três dias são 20% de quinze. Ou, em outras palavras, "três dias de chuva normal em SP."

A do Globo fala que "ONG Contas Abertas mostra que apenas 10% do PAC funciona." Esquece de explicar que a ONG em questão é do ex-secretário do Arruda que inclusive anda flertando com o xilindró.

O repórter da Globo, na TV, escancara "o assustador é ver isso acontecendo com gente que tem uma condição material melhor." (Sobre a tragédia de Angra.)

Na Folha, "astrônomo acha estrela mais quente que o Sol." A notícia de verdade é que acharam uma estrela originadora de nebulosa, que é realmente mais quente que o Sol - como umas 60-70% de todas as estrelas.

No lead da Folha: "encontrado túmulo de general chinês do século 2." Na matéria "...o general Cao Cao, do século 3 DC..." Em defesa da Folha, Cao Cao nasceu num século e morreu noutro. Contra ela, o sujeito até era general, mas era também rei...