Pesquisar este blog

28.7.06

Você é feliz?

A BBC acaba de relatar um estudo pra tentar descobrir "onde as pessoas são mais felizes."

Não que eu confie em estudos desse tipo, homogeneizando as centenas de línguas principais e culturas do mundo, mas... o interessante é que, pra maior parte das explicações de felicidade que eu lembrei, incluindo as advogadas pela BBC, tem mais pontos fora da curva do que dentro dela.

A observação de que "os governos deveriam tornar as pessoas mais felizes, não mais ricas" tem tudo a ver com o post que tô procrastinando escrever há uma semana...

26.7.06

Panacéia com contra-indicação

Em tempos de eleição, tudo quanto é candidato, no Brasil e no mundo, gosta de soluções que sejam simples como comprar um brinquedo pro filho. Faz sentido; é uma promessa que se pode cumprir sem precisar pensar, enfrentar gente ou assumir riscos. E os fornecedores ainda ganham um incentivo pra apoiar a campanha. É a mesma mecânica que faz com que os EUA comprem bombardeiros sofisticados de elisão de tecnologia de detecção russa "contra o terror," e que faz com que se jogue dinheiro em prédios, prometa mais estradas ou o que seja. Consumir é muito fácil.

Uma das coqueluches desse modo de pensar é a informatização das escolas, que junta ele e a convicção de toda grande organização, pública ou não, de que o aumento da tecnologia é um bem-em-si. O Mercadante já até prometeu uma "secretaria do futuro" com esse único objetivo. Pois bem, há controvérsias sobre a utilidade de se equipar as escolas...

The UK’s Royal Economic Society finds no ground for the correlation that politicans make between IT use and education.
The authors, Thomas Fuchs and Ludger Woessmann of Munich University, used the PISA tests to measure the skills of 100,000 15 year-olds. When social factors were taken into account, PC literacy was no more valuable than ability to use a telephone or the internet, the study discovered.

“Holding other family characteristics constant, students perform significantly worse if they have computers at home,” the authors conclude. By contrast, children with access to 500 books in their homes performed better. The negative correlation, the researchers explain, is because children with computers neglect their homework more.

24.7.06

Sinceridade

A National Space and Aeronautics Administration - NASA - é provavelmente a instituição científica mais famosa e rica do mundo. Tem um orçamento anual superior ao do conjunto de instituições de pesquisa de alguns países; levou gente à Lua; lançou o Hubble, que transformou a noção do que seriam imagens de telescópio pra gente; e esticou a fronteira da humanosfera até algum ponto nas fronteiras do sistema solar, com a Voyager. Também é responsável por boa parte do que sabemos sobre o próprio planeta Terra, do buraco na camada de ozônio ao comportamento de correntes atmosféricas e marítimas; do Niño ao aquecimento global. Pois bem, essa parte pelo visto vai ser, ahn, "desenfatizada" de agora em diante. Desde o começo de 2006, sem nenhum alarde, a missão da agência deixou de começar com "entender e proteger nosso planeta natal."

******************

Há menos de uma década, a produção de aço da maior siderúrgica do mundo, a Nippon Steel, faria dela algo como o décimo maior produtor de aço mundial, se fosse um país, com uma participação máxima em qualquer dado mercado nacional importante menor do que 30%. Hoje, com a Mittal e a Arcelor se fundindo, mesmo sem quase nenhum crescimento na produção fora da China e Índia (onde Mittal e Arcelor não existem), a nova companhia produzirá a mesma quantidade de aço que EUA ou Japão. E deterá o quase-monopólio em dúzias de países.

*******************

O George Vidor, nO Globo de hoje, volta a fazer campanha pelas usinas nucleares. A onda de calor na França, porém, além de matar velhinhos fez lembrar outro probleminha delas: como qualquer térmica, only more so, elas precisam de quantidades imensas de água para resfriar os sistemas. Quando a temperatura da água no ambiente sobe, eventualmente as usinas têm que ser utilizadas à meia carga ou mesmo desligadas, porque a capacidade de refrigeração diminuiu. No Brasil, que é bem mais quente do que a França, alguém levou isso em conta?

14.7.06

De marré de si

Uma das coisas que eu não cheguei a mencionar, falando das cotas universitárias, é porque tenho tão pouca simpatia pelas cotas censitárias que todo mundo apóia. Afinal, se o problema é acabar com a desigualdade, privilegiar os mais pobres deveria ser nosso primeiro, principal, e talvez último critério, certo?

A questão é que renda não é um bom indicador de classe social, ou de "pobreza" num sentido amplo. Pode parecer um absurdo, mas é algo que você vai reparar se um dia for entrevistado por qualquer pesquisa de opinião sobre algum produto; eles não te perguntam apenas tua classe de renda, mas tua propriedade (imóvel e móvel), tua escolaridade e hábitos de consumo. Duas pessoas com renda igual podem viver em mundos diferentes em termos de condições materiais e sociais; um músico freelancer de família tradicional, mesmo ganhando a mesma coisa que um metalúrgico, tem uma reserva de contatos sociais, possibilidades financeiras e entendimento da cultura dominante e escolar (que não é inteiramente transmitida pela escola) imensamente maior. A filha dele tem muito mais chances de passar no vestibular do que a do metalúrgico. Do mesmo modo, um filho de pais universitários que têm renda baixa ainda novos não é igual ao filho de uma família analfabeta que, já maduros, têm renda um pouco maior em seu minifúndio. Por outro lado, estes, com a posse da terra e alguma autoprodução, estarão melhores do que uma costureira solteira de renda equivalente... Ademais, que renda deveria ser considerada? A per capita familiar? Em que período antes do vestibular?

A declaração infeliz do Lula de que existiam métodos científicos para determinar a raça de alguém merece ser esquecida, ou mostrada como besteira. Mas a idéia de que pobreza seja "óbvia" é tão nebulosa, no fundo, quanto a de que "raça" seja óbvio.

12.7.06

Syd Barrett morreu

E o mais estranho - nem o PCC nem a polícia de São Paulo são suspeitos da morte.

Já dos atentados na Índia, que lembram os da Espanha de 7/7 fora o fato de indiano não ter o mesmo cachet de espanhol (pela regra do NY Times, 1 europeu = 100 terceiromundistas), sei não...alguém já entrevistou o Marcola?

Falando nisso, o assessor pra segurança do candidato a governador José Serra é o Fleury.

Quanto tá a Ó-dê-á?

A inauguração de um escritório da Embrapa em Gana é mais um elemento de "ajuda externa" brasileira, como o foram antes os perdões das dívidas boliviana ou gabonense, e até parte do esforço de ocupação no Haiti. Ajuda externa não é necessariamente uma coisa boa, como o último elemento mencionado deixa claro; entre as grandes potências, boa parte da ajuda externa das grandes potências é de natureza bélica mesmo. Mas a ajuda tem, para as nações querendo chegar à burguesia, o mesmo significado que ir à ópera pruma família. Tá, ópera tá datado. Que comprar coleção de música pseudo-iconoclasta e som caro pro carro.

Quanto o Brasil gasta nesse bilhete de ópera? Ainda deve ser menos do que os 0,16% do PIB que os EUA gastam, que dirá dos quase 1% de alguns escandinavos, mas alguém tem alguma idéia de quanto é? Finalmente o MCT começou, ano passado, a mapear os dispêndios (públicos e privados) em ciência e tecnologia (sim, até ficar concluído esse estudo, o Brasil não tem nenhum relatório abrangente); não tava na hora do Itamaraty fazer o mesmo com a ajuda externa?

10.7.06

Apêndice ao post anterior

Quando digo que "No Brasil, não é essa a situação dos negros, que estão misturados cultural e fisicamente aos brancos pobres," estou reconhecendo a dificuldade de se definir, em termos que possam ser usados pelo Estado burocrático e impessoal, o que é um negro no Brasil. O racismo brasileiro não é étnico (o que não reflete uma aversão brasileira ao preconceito étnico - que o digam paraíbas, japas, turcos e índios). Não há, sem forçassão de barra, um falar negro, setores negros das cidades (apesar da preponderância de negros entre os pobres), uma história negra. Quando se fala de "arte negra," esta é confundida com "arte popular" (até pela esmagadora preponderância dos negros entre os pobres, dependendo da cidade e da época). Não se pode definir quem é negro através da ascendência ou de outras características "objetivas" que caracterizam programas de ação afirmativa para outros grupos (mulheres ou deficientes). A substituição dos termos "preto" e "pardo" do IBGE por "negro" é uma falácia; isso não é necessariamente o que as pessoas indagadas responderiam em questionários que substituíssem uma palavra pela outra. Aliás, curiosamente, "pretos-IBGE," minoria relativamente pequena na população brasileira, são mais comuns quando aumenta a escolaridade, reflexo de um grau maior de politização, tanto quanto do encontro mais frequente com o preconceito especificamente racista.

A falácia de quem é contra os sistemas de ação afirmativa por cor é confundir essa dificuldade (real) com uma impossibilidade. É uma dificuldade da relação do Estado, com os princípios que se acredita que o Estado deve seguir, com a realidade brasileira, que não segue as mesmas regras. Não confrontar essa dificuldade leva à perpetuação de uma faceta da realidade brasileira que todos concordamos injusta; "não há racismo no Brasil, apenas preconceito social associado à cor," como diz o Ali Kamel, é só piada, já que é essa a definição de racismo, a não ser que ele esteja circunscrevendo este à variedade étnica, o que é etno(do outro, americano)centrismo demais. E a ação afirmativa por renda, como as políticas universalistas, não constituem uma forma de lidar com o racismo.

Por outro lado, como eu já mencionei, a ação afirmativa na admissão universitária por cor afeta basicamente uma classe média-baixa (note-se que isso é algo a anos luz da autoproclamada "classe média" que acha que passar dificuldade é comprar menos CDs de jazz ou viajar menos ao exterior) negra emergente. Salvo raras exceções, o pobre brasileiro não terminou o segundo grau, para se beneficiar da universidade. Embora eu ache que sim, fazer com que haja mais negros entre nossas elites é um bem-em-si, isso leva a outro problema, observado na ação afirmativa americana: a deterioração da situação de outros grupos discriminados, antes relativamente em melhor posição do que os negros, que inclusive se reflete no aumento do preconceito contra eles.

Por isso, a minha sugestão pessoal, sem desaprovar as ações afirmativas por cor, é seguir uma idéia do Bushinho (é, ele mesmo). Ação afirmativa por origem geográfica, de favelados e moradores de zonas rurais principalmente, mas possivelmente, escalonada, para incluir todos os setores do IBGE significativamente abaixo da média. Na sociedade brasileira, muito menos plástica e muito mais hierarquizada do que a americana, mesmo quando as pessoas se mudam, é pra lugares com perfis sociais semelhantes; há uma cultura de bairro ativa; e o critério de pertencimento atende aos critérios de objetividade e imparcialidade. Ainda por cima dada a segregação espacial, que sendo menor que em outros países ainda é significativa, a ação afirmativa geográfica também serviria para aumentar o número de negros nas universidades. Não havendo "cultura negra" diferente, o "capital cultural" de negros e brancos favelados - o que não é a mesma coisa que pobres - tende a não apresentar diferenças significativas. Como diz o Canibal, na favela japonês também é preto. (Tá, a afirmação é boa mas ignora o preconceito que o japonês vai sofrer muito menos.)

Por isso também minha indagação sobre outras formas de ação afirmativa, que afetem um contingente maior de brasileiros. Se eu não sigo a falácia do universalismo, de "melhorem as escolas," por outro lado eu me indago sobre políticas de apoio a escolas e alunos negros desde o primário; em programas de combate ao racismo em sala de aula; de ações afirmativas para negros (ou geográficas) em contratações no serviço público e em empresas que recebem dinheiro público, em funções de baixa escolaridade.

Afirmando o quê?

O problema da ação afirmativa, aka cotas, no Brasil ganhou nas últimas semanas uma visibilidade que não tinha desde que as universidades começaram a implantar programas nesse sentido, há uns três anos. O motivo: com a iminência da votação no Congresso dos projetos de lei versando sobre o tema, grupos de intelectuais fizeram manifestos opostos, contra e a favor das cotas.

Os dois manifestos, infelizmente, como peças políticas que são, repetem falácias que os próprios abaixo-assinantes já denunciaram. Mas deixa isso pra depois. Primeiro: o que é Ação Afirmativa? Ação afirmativa é uma política de governo prevendo uma discriminação positiva direcionada a determinados grupos, com o objetivo de contrabalançar a discriminação negativa que eles sofrem. É, portanto, o equivalente em termos de capital social do que é feito com a renda quando se tem impostos de renda progressivo e programas de transferência de renda. A acusação de que a ação afirmativa é "discriminatória" é, portanto, inteiramente procedente; o que não procede é a acusação de "racismo," já que ela procura compensar um racismo reconhecido como existente na sociedade. O racismo não começa na invenção de "raças" neutras (a idéia de que ver essas raças como diferentes seria "natural" é uma racionalização do racismo, não algo que anteceda ele), mas na criação delas como parte de uma hierarquia social.

A ação afirmativa ser entendida como uma política "redistributiva de capital" no que tange ao "capital social" dos indivíduos, determinado por sua cor e ascendência, rebate a alegação de que o certo seria "melhorar" o ensino público pra todos. Uma tal melhora, ainda que factível (e muitos proponentes da ação afirmativa no Brasil estão entre os que mais lutam por ela, não o contrário, como alegado), beneficiaria igualmente a todos, preservando a desigualdade.

O nome "ação afirmativa" vem dos programas de ação afirmativa americanos, dirigidos principalmente aos negros, começando com a Grande Sociedade do Lyndon Johnson. O princípio, porém, é bastante mais antigo, tendo sido aplicado em impérios multinacionais como o Raj britânico e a União Soviética, no começo do século XX. No Brasil, o intervalo entre o reconhecimento oficial do racismo e o programa de ação afirmativa foi minúsculo, porque, apesar de iniciativas meritórias como a Lei Afonso Arinos, o governo brasileiro, oficialmente, só foi reconhecer o racismo como um problema sério durante o mandato do FHC. Até a conferência internacional na África do Sul sobre o assunto, quando os movimentos negros aproveitaram a exposição mundial pra meter a boca no trombone, os relatórios enviados ao programa anti-racismo da ONU pelo Itamaraty diziam que não havia racismo no Brasil em qualquer escala significativa.

O maior programa de ação afirmativa do mundo, hoje, é o indiano. Desde antes da independência, as castas inferiores, incluindo os dalits (intocáveis), têm tido preferência no emprego público; no ano passado, o escopo e intensidade do programa foi aumentado, com quase metade das vagas em universidades destinadas às castas inferiores e também à classificação OBC - outras castas atrasadas, um termo que designa gonds, dacoits e outras populações não-hindus, não-muçulmanas, consideradas "selvagens." Não sem protestos indignados da classe média súria, que diz que "o preconceito de castas não existe mais na Índia..."

No Brasil, a ação afirmativa torna-se mais complicada do que a maioria, porque o objeto de discriminação não é um grupo claramente definido, mas pessoas, de acordo com relações complexas. A ação afirmativa na maior parte do mundo é "étnica." Ela ajuda pessoas que fazem parte do mesmo grupo ao qual seus pais, em geral, pertenciam, com uma cultura própria em algum nível, geralmente segregadas em algum grau. No Brasil, não é essa a situação dos negros, que estão misturados cultural e fisicamente aos brancos pobres. Isso não é um problema apenas para a definição de candidatos válidos à A.A., como falado tantas vezes (e rebatido com a sugestão de que se crie um comitê de avaliação de PMs e porteiros), mas também para a própria justificativa da política. Até que ponto as diferenças entre negros e brancos vindos da mesma origem (que na prática se resumem ao racismo sofrido) justificam uma política dirigida aos primeiros? Se não, qual seria o melhor critério? Quais os efeitos que essa política pode ter sobre o próprio racismo brasileiro?

É neste último ponto que se baseia a oposição de muitos antropólogos que assinaram o manifesto do anti-. Para eles, a introdução de categorias raciais na legislação significaria a alteração do racismo brasileiro, que sem deixar de ser violento é relacional e negociável, para um racismo de tipo americano, étnico e segregado. É pelo mesmo motivo que parte do movimento negro é a favor: para eles, esse tipo de racismo significa o reconhecimento de uma realidade, e apresenta maiores possibilidades de enfrentamento e ação. Por isso, inclusive, usam a expressão "negro," ao invés de "preto" e "pardo," o que é no mínimo problemático no estado atual. Bem, as expressões do IBGE também são; o ideal seria ou bem uma pergunta aberta, ou bem algo como Preto, Negro, Mulato, Moreno, Claro, Branco, Escuro.

Existem diversas formas de programas de ação afirmativa. Aquela que passou a dar nome a todas no Brasil, as cotas, foi considerada inconstitucional nos EUA, e consiste em reservar determinado número de vagas em um processo de seleção. Outras formas comuns são programas de apoio direcionado (eg os cursinhos para "afrodescendentes") e pontos de classificação (eg o candidato favorecido tem direito a 20 pontos a mais no vestibular), além de cotas informais ("recrutadores, tentem arrumar uns neguim aí no meio"). Cada sistema tem suas vantagens e desvantagens, about which more later. Apesar de distorcerem resultados pretensamente meritocráticos, nenhuma delas é, como alegado, uma abdicação da meritocracia. Isso porque é razoável supor que alguém que conseguiu tirar 70 numa prova, apesar de sofrer com o racismo da professora, com a falta de tempo pro estudo, de livros, de cultura familiar transmitindo valores culturais e até informação propriamente dita, e com uma escola mal equipada, seja pelo menos tão competente quanto alguém que tirou 95 com acesso a todas essas coisas mais cursinho de elite.

O exemplo é, admito, um pouco forçado. Isso porque o alvo principal da ação afirmativa não é o miserável, mas uma classe média-baixa negra emergente. No Brasil, quem chega ao final do segundo grau já chegou bem mais longe do que a maioria dos cidadãos, que dirá dos cidadãos pretos e pardos. E isso não é desculpa pra "Elite branca" (C)Cláudio Lembo ser contra a ação afirmativa. Se a idéia não é eliminar a elite, levelling o Brasil, fazer com que a elite seja, como a população em geral, "miscigenada e colorida" deveria ser exatamente o objetivo.

6.7.06

Undécima arte

Em "Ascensão e queda das vanguardas novecentistas," Hobsbawm conclui, afinal, que todo aquele som e fúria produzido pelas vanguardas que pretendiam reinventar a arte havia significado nada. A verdadeira arte do século XX, se desenvolvendo em estúdios poeirentos mundo afora, passava longe dos artistas, era o cinema. Sempre é bom lembrar, o que o Hobsbawm não faz muito bem, que, paradoxalmente, a época de ouro de Hollywood também foi uma época em que (relativamente) sua importância no cinema mundial era restrita; países como o México, o Japão, a Alemanha e a França ainda produziam muito cinema comercial naquela época.

Hoje, se a declaração de irrelevância de Duchamps e Rothkos ainda soa chocante pra quem lida com arte, ninguém discute se o cinema é arte. Et pourtant, quando se fala em novos desenvolvimentos pra arte, de arte interativa, de novas possibilidades, ainda há quem pense num Bill Viola, no recém-defunto Nam June Paik, em alguma espécie de novo parangolé. Enquanto isso, em estúdios poeirentos mundo afora, os joguinhos de computador já passaram a marca dos 30 milhões de dólares na produção, e trezentas pessoas nos créditos.* Tudo quanto é crítico de cinema babou, à época, pela animação do longa "Final Fantasy: the Spirits Within" - pois bem, a animação dos joguinhos de mesmo nome é muito melhor que a do filme. (Os roteiros são a mesma bosta.)

Assim como os filmes no começo do século XX, os joguinhos do XXI já se dividiram em "comerciais" e "não comerciais." Há muitos joguinhos feitos por aí que pretendem explicitamente romper com a lógica dos gêneros estabelecidos de joguinho, especialmente com a obsessão porradística de muitos deles. Também há, já, produtos comerciais bastante sofisticados como obras narrativas, apesar de se ater a esses gêneros. Alguns deles até vendem! O RPG "Torment," em que apesar de entrar em brigas você tem a importância delas diminuída por simplesmente não poder morrer, com alusões filosóficas e a linguagem dos personagens baseada no rhyming cant dos malandros londrinos sob o rei Jorge, vendeu tanto quanto os outros da mesma "linha," baseada no D&D e dirigida a um mercado de massa de adolescentes (algo como 406º lugar na lista da Amazon hoje, sete anos depois).

O desgarramento da simples possibilidade técnica, claro, contrasta com a necessidade das grandes empresas que combinam produção de conteúdo e de meios, de imprimir um ritmo de crescimento ele mesmo crescente ao mercado. É mais fácil lidar com um relatório que diz que novos sistemas nos quais se investiu têm mais pixels, ciclos ou o que for do que com avaliações subjetivas; é mais fácil integrar o que não tem conteúdo com conteúdos estabelecidos; organizações de grande porte são, afinal, quase inerentemente conservadoras.

Mas tudo isso não quer dizer que os joguinhos como arte não evoluam, claro. O cinema também teve seus cinemascopes e companhia. Uma barreira maior é que, em contraste com o entusiasmo pelo cinema das vanguardas do começo do XX, a classe artística contemporânea é bem mais academicista e calcificada, o que faz com que não tenha incentivos (com exceções) a abraçar o meio; além disso, os joguinhos amadureceram muito rápido como diversão de crianças. Mesmo que hoje a maioria dos que os jogam sejam adultos, a impressão permanece. A maior respeitabilidade dedicada ao meio interativo parece ser na forma de websites, principalmente os relacionados a alguma outra forma de arte.

Talvez a distinção esteja no caráter privado do joguinho? A videoarte e a animação para vídeo nunca conseguiram status comparável ao cinema. A arte, para ser levada a sério, tem de ser coletiva? (O livro, no começo, também era. :p)

*Parte do aumento nos custos é culpa de, num caminho contrário ao trilhado pelo cinema com as câmeras, e agora os cinemas, digitais, os custos "técnicos" de joguinhos novos estarem aumentando; assim, para ser compatível com um Sony Playstation 3 um jogo gastará dez vezes mais do que gastava pra funcionar com o PS2, com um retorno incremental, se tanto, em qualidade.

5.7.06

RIP Lavoisier

Às vezes, só às vezes, eu acho que tecnocratas, sejam eles de governos ou corporações privadas, realmente cometem alguns dos abusos que cometem, não por descaso ou má-fé, mas simplesmente por acreditar que, como no preto-no-branco das tabelas, território e espaço não existem, e todas as coisas são fungíveis como o dinheiro.

Exemplo disso é que o Governo Federal, ao mesmo tempo que diz que quer "revitalizar" o porto do Rio (não confundir com a "revitalização" da área portuária, que é outra coisa) está tirando, essa semana, vários pedaços dele.

Na ponta do Caju, parte do que hoje é pátio de contêineres do porto vai acabar, com a reativação do estaleiro pra fabricar os navios da Petrobrás. E ambos estão ameaçados pelo decreto que cria, ali, um "terminal pesqueiro." O hospital a ser feito no antigo prédio do JB (ô tristeza, tá, hospital é uma coisa legal, mas eu queria era que o JB ainda tivesse lá) comeu outro pátio, que vai virar estacionamento. O pedaço do cais mais antigo, entre a Praça Mauá e a Rodoviária, já está designado pra revitalização da área portuária, então também será subtraído...vão revitalizar que porto, sobrando disso tudo? As traineiras vão estacionar por cima ou por baixo dos cargueiros?

Bem, vai ver o negócio é matar de vez, pra justificar o SUPERPORTO (assim, com maiúsculas) de Sepetiba. Esse é tão importante que aposto que, como a vizinha siderúrgica da Krupp-Thyessen, não vai precisar nem de relatório ambiental pra receber a licença prévia da Feema e do Ibama.

4.7.06

Pão de tapioca

Aparentemente, tem mais chances de aprovação do que se pensava o projeto do Aldo Rebelo, de acrescentar fécula de mandioca à farinha de trigo (à usada na panificação). Isso é, toda a farinha de trigo comercializada para padarias e fábricas de pão (são mais de 50.000 padarias, responsáveis por mais de dois terços do consumo brasileiro de farinha de trigo), terá, obrigatoriamente, 10% de fécula de mandioca, por peso, misturada. Depois de passar por uma comissão especial (sic), a lei, claro, adicionou outras farinhas, como arroz, caju e milho. Vai conceder subsídios e incentivos fiscais aos moinhos por conta da adição, claro.

O presidente do congresso defende o projeto, que teria a intenção de baratear o pão e, de forma mais imediata, ajudar os plantadores de mandioca de seu estado, dizendo que é "que nem a mistura de álcool na gasolina." Ahem.

1) Se o nobilíssimo deputado consome combustível, sinto muito. Eu como, o que é algo bem diferente. Mas munido dessa informação, peço desde já que seu mordomo passe a alimentar o nobilíssimo com papa de nenê todo dia.

2) Mesmo no caso do álcool e gasolina, os carros tiveram de ser adaptados para que a gasolina brasileira, conhecida lá fora como E20 ou E25 (etanol a tantos por cento), fosse introduzida em seus tanques. O Aldo pretende adaptar a gente?

3) Trigo e féculas não são a mesma coisa. Quer dizer, não é simplesmente o gosto que muda, é que o trigo serve pra fazer pão porque ele tem glútem; tem uma proteína elástica que é alterada pelo fermento e quando é batido, o que faz com que ele forme aquela massa com as bolhinhas mais firme do que um bolo. Ainda dá pra fazer pão com proporções de amido (féculas, farinha de milho, etc) bem maiores do que 10%; um pão saloio tem 16% de farinha de milho, um pão de milho pode ter até 2o e poucos por cento. Mas não é o mesmo pão. Muda a textura, muda o sabor, muda tudo. Vamos ter pãezinhos de mandioca ao invés de pãezinhos franceses. E esses outros pães vão, em alguns casos, se tornar impossíveis. Se você já tem 10% de mandioca na farinha de trigo, adicionar um quinto de fubá pra fazer um pãozinho de milho num babá borocoxoxo, não num pão, com menos de três quartos de farinha de trigo na mistura.

4) Vai baratear p... nenhuma. Não há produção de mandioca o bastante; o preço dela vai aumentar. E, no Brasil, se aumentar bastante os minifúndios de mandioca de Alagoas, que o Aldo quer beneficiar, vão é ser atropelados pelos latifúndios do agronegócio, auxiliados pelos subsídios e incentivos previstos na lei.