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17.6.10

Espaçoso

Um dos problemas dos órgãos públicos, especialmente em áreas densamente povoadas, é encontrar terrenos a preços baratos para construir habitação popular. É o que leva à clássica enunciação do problema de decidir entre requalificar favelas (ou mesmo permitir a sua permanência em áreas problemáticas) ou levar as pessoas para áreas distantes e que necessitariam de infraestrutura cara. (Para além de, em muitos casos, não serem razoáveis para os moradores nem com essa infraestrutura.) Por isso, vão aí algumas sugestões.
 
1.  O estádio da Gávea, que não serve pra nada, está num terreno da prefeitura. Oficialmente, o Flamengo não pretende nunca mais usar ele pra abrigar partidas de futebol, então nem a alegação tênue de que futebol é interesse público se justifica. Ora, naquela área poderiam ser erigidos 1400 apartamentos - ou, se preferirem, toda a população do Laboriaux ou do Parque da Cidade. Aliás, os diversos clubes que pontilham a orla da Lagoa Rodrigo de Freitas também ou não pagam nada ou pagam uma merreca por ocuparem área do município; se metade passasse a pagar um aluguel justo e metade fosse embora e a área usada para habitação social, as favelas em volta ficariam bem esvaziadas. Do mesmo modo, quase todos os terrenos ao longo da Marginal Tietê são ocupados em regime de comodato, principalmente aqueles ocupados por clubes e associações.
 
2. A refinaria de Manguinhos não tem escala pra ser uma refinaria moderna. Nem pode vir a ter, no terreno exíguo de que dispõe; hoje em dia, os donos (que a compraram para receber créditos fiscais bem duvidosos concedidos pelo governo do Estado) ficam (fingindo que) procuram algo pra fazer com ela, de refinaria de biodiesel a termelétrica. Bem, o terreno é exíguo para uma refinaria, porque é um terreno de meio quilômetro quadrado, próximo ao Centro da cidade, sanduíchado entre linhas de trem, a Avenida Brasil, e a Linha Vermelha. Daria pra fazer em parte dele um parque e na outra parte mais de 10.000 apartamentos (contando a área para pracinhas, ruas internas, comércio no térreo, e um CIEP.)

3. Não dá pra deixar de repetir: o último dado que saiu registra que as forças armadas brasileiras têm 136Km2 de área nas capitais, excluída Brasília. Muito disso em áreas nobres e/ou bem servidas de infraestrutura. Vende-se a parte em áreas nobres, conserva-se o que seja necessário, e voilá: mais uns 60Km2 de área e dinheiro pra fazer a urbanização. Uns 2 milhões de apartamentos.

12.6.10

Círculos

O projeto de reforma do código florestal brasileiro elaborado pelo (ex)comunista Aldo Rebelo* podia ser chamado também de projeto de revogação do código florestal brasileiro. Tem mimos como perdão de crimes, além de eliminar restrições ambientais óbvias que vigoravam literalmente desde tempos coloniais, como a proibição de se desmatar cumes de morros, num país tropical caracterizado por fortes chuvas e solo frágil. As poucas restrições ao desmatamento que mantem, ele faculta aos estados remover. (Santa Catarina, em especial, já tentou fazer isso mesmo antes da nova lei, na cara dura inconstitucional.)

O curioso pra mim dessa sanha antiambiental dos ruralistas brasileiros é a cegueira dela. Os sojicultores que lutam pelo fim da proteção dos mananciais se dão conta de que isso vai fazer com que eles tenham que pagar caro pela água que hoje rega de graça a soja deles? Os pecuaristas que lutam pelo direito de acabar com o pantanal se dão conta de que não dá pra criar gado em grande densidade num deserto? Os únicos contribuintes para o projeto do Aldo Rebelo que fazem sentido são as papeleiras que querem receber dinheiro do governo para "reflorestar" com eucalipto áreas desmatadas.

É até curioso que as elites brasileiras tenham tão pouco apreço pela natureza em todos os níveis. Me dei conta de outra iteração desse desapreço quando olhava um mapa de São Paulo outro dia. Não é apenas a falta de parques e praças na cidade, apesar de essa ser assustadora. É que ela, como a maioria das cidades brasileiras, não possui um cinturão verde. É até curioso, se você pensar que parte da retórica justificando o multibilionário e ambientalmente problemático rodoanel falava que as cidades "desenvolvidas" possuíam rodoanel.** Ora, as cidades "desenvolvidas" também têm um verdeanel, e não só não se falou de fazer um para Sampa como ainda se destruiu, com a construção do rodoanel, boa parte de uma das duas franjas verdes da cidade. (A área de proteção das represas, ao sul, que se mistura com os parques da Serra do Mar. Ao norte, menor e mais ameaçada, a cidade tem a serra da Cantareira.)

Os cinturões verdes têm uma origem pouco cheirosa, literalmente: originalmente, a expressão significava a área ao redor de um núcleo urbano que era fertilizada pelos dejetos deste. O cocô (de gente e animais de tração) e lixo orgânico, que eram quase a totalidade do lixo antes da era industrial, viravam excelente adubo, possibilitando a formação de um cinturão que por sua vez supria quase inteiramente as necessidades alimentares da maioria das cidades localizadas em climas minimamente razoáveis. (A forma específica desses cinturões variava muito, dos vergéis do Al Andalus aos trigais bizantinos, aos jardins flutuantes (literalmente) de Tenochtitlán.)

Dessa importância para o abastecimento surgiu, metamorfoseando-se em importância paisagística e cultural, a idéia de fazer cinturões verdes, áreas non aedificandi, ao redor das crescentes metrópoles industriais do século XX. Os subúrbios mais remotos da cidade estão, assim, separados por uma área verde, protegendo a cidade em vários sentidos. Na América do Norte, a idéia começou a ser divulgada mais tarde, e alcançou em muitos casos um patamar superior, com os ideais da City Beautiful precedentes se combinando, formando quase uma roda verde.

Cinturões verdes têm sua cota de críticas - afinal, todos os subúrbios a ser construídos fora deles ficarão, por definição, uns 10, 20km mais distantes, o que é caro em termos de infrastrutura e especialmente danoso quando se tem um padrão urbanístico de sprawl anglo-saxão. Além disso, como a área de proteção de mananciais da Billings bem demonstra, políticos apreciam a facilidade de construir estradas e outros trambolhos de infra em cima deles, sem precisar de desapropriações complicadas. Mas, bem, uma dessas críticas se aplica menos por aqui, e a outra se refere, não ao cinturão em si, mas a gente que o destrói.

Oficialmente, São Paulo até tem um cinturão verde. Olhando a foto ou mesmo o mapa oficial, é difícil de entender quem achou que isso era um círculo. E essa foto é de 1996, que também é a data da última ação relatada no site do cinturão verde de SP. Hoje em dia, o "anel" já foi degradado e - parece até piada - é em parte dele que vai ser enfiado o novo aterro sanitário da capital. Pra ser mais exato, pertinho de onde pretendem construir a parte leste do rodoanel.

Em escala nacional, tem um movimento que se autodenominou cinturão verde europeu, que tenta aproveitar as áreas verdes surgidas por acaso da história ao longo da Cortina de Ferro, numa situação parecida, se menos absurda, com a da Zona Desmilitarizada coreana, que já foi Lugar Estranho do Mundo por aqui.


*Agora convertido em defensor de agrocorporações e latifundiário, com laivos de nacionalismo do tipo esposado pelos milicos, como a seguinte declaração demonstra: "Querem interditar a infraestrutura, tutelar os índios e trazer boas novas da defesa da natureza com financiamento farto, como braços paramilitares de interesses internacionais".
**Com direito a um press release do governo no qual se exclamava que Moscou tinha "cinco rodoanéis já" - incluindo na lista até a rua que circunda os muros do Kremlin. Por essa classificação, São Paulo já tem uns três.

4.6.10

A palavra é sweatshop

A Apple passou, semana passada, a Microsoft, em termos de valor de mercado. Uma reversão espetacular da situação a que muita gente estava acostumada, possibilitada pela diversificação que levou a empresa a investir em mercados distantes dos desktops, como os iPods, iPhones, e agora iPads. Infelizmente para a companhia, a notícia veio junto com uma onda de suicídios entre os operários que fabricam os gadgets bonitinhos, mudernos e descolados dela, nas fábricas gigantes da taiwanesa Foxconn na China continental. Muitos applemaníacos, que tendem a se considerar vagamente de esquerda, provavelmente ficaram chocados ao ler o anúncio de Jobs de que a Apple aumentará o salário médio na fábica para 171 dólares por mês. Isso mesmo, meio salário mínimo por mês. Por jornada de trabalho de 54 horas semanais.

Na verdade, não é novidade nenhuma. A Apple, apesar de ser vista como alternativa pelos seus usuários e design, e por ser considerada a Davi contra Bill Goliath Gates, sempre foi das empresas americanas com os piores desempenhos em termos de responsabilidade social; Steve Jobs é conhecido por estar a um passo de Ebenezer Scrooge.

Mais assustadoramente, o trabalho semiescravo (ou escravo mesmo, como na zona industrial de Kaesong, que diga-se de passagem não foi fechada apesar de teoricamente os dois países estarem à beira de uma guerra apocalíptica) é essencial a todo e qualquer bem de consumo de alto valor agregado humano e baixo custo. É muito provável que a roupa que você está vestindo tenha sido feita por um escravo. Boliviano em São Paulo, centroamericano em Nova Iorque, africano ou iugoslavo em Milão, marroquino em Barcelona, chinês em qualquer lugar do mundo. A grande produção horticultural dos países centrais, como o carvão vegetal do aço brasileiro, o carvão que move a indústria chinesa, ou quase qualquer coisa ainda tem trabalho semiescravo.

Pense no Haiti - ele é no mundo inteiro.