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28.3.14

Shop till it drops


O imobilismo dos governos frente ao aquecimento global, criticado até por alguém tão insuspeito de esquerdismo quanto o ex-presidente da Colômbia Álvaro Uribe, que dizia que as convenções internacionais sobre o tema soltavam mais carbono do que poupavam, pode ser considerado estranho por alguém que considere o problema sério, e a maioria dos líderes globais atores racionais. Afinal, o aquecimento global é um problema irreversível, e capaz de trazer sérios danos para a humanidade, e isso não é, fora da política, mais algo tão controverso assim. Pode-se vislumbrar o quanto o aquecimento global antropogênico já passou de controvérsia científica a base de conhecimento aceita, mais do que pelos resultados dos painéis de investigação da ONU sobre o tema, pela preocupação que grupos arquiconservadores como as companhias de seguros demonstram. E no entanto os governos parecem continuar mais preocupados em assegurar suas próprias fontes de combustível fóssil do que em reduzir o uso global, ou em garantir que a redução global seja um fardo que caia antes nos outros do que em si. Mesmo quando, como é o caso da Rússia ou do Brasil, o espaço para redução das emissões de gases de efeito estufa (GHG) com pouco ou nenhum impacto na economia é imenso.

Parêntesis: Digo danos à humanidade, e não ao planeta, porque vamos ser sinceros: o planeta não está em perigo. A Terra é uma bola de seis sextilhões de toneladas de ferro, com 12,800km de diâmetro, e para destruí-la, só com um impacto várias ordens de grandeza maior do que a Lua de repente caindo em cima (bem, ok, tem outras possibilidades neste site). Mesmo se você quiser dizer "acabar com a vida na terra," aquela película de musgo que adere à fina pele de pedra na bolona de ferro, é altamente improvável que consigamos detonar essa. A extinção em massa antropogênica é forte, é quase equivalente ao evento K-T que acabou com os dinossauros, mas ainda empalidece quando comparada com a do final do Permiano; e mesmo essa não chegou nem perto de acabar com a vida observável em registros fósseis da terra. E a não observável - bactérias e archaea - é muito mais importante e resistente. Existem archaea vivendo a vários quilômetros de profundidade na crosta terrestre, em temperaturas superiores a 200ºC; você acha que uma mudança pequena na composição da atmosfera, ou na temperatura média da superfície, incomoda eles?

A tragédia dos comuns, anunciada

Sinceramente, mesmo acabar com a humanidade é improvável. E aí está , creio, uma das chaves para a explicação sobre a ineficácia das reuniões sobre aquecimento global, a pragmática: o aquecimento global não tem efeitos homogêneos, globais. Tem efeitos diferentes em cada lugar e pra cada pessoa, que dependem em boa parte dos recursos de que já se dispõe, como outros impactos espalhados, além da situação geográfica. Ainda que deixemos o planeta uns 12º mais quente, com mares ácidos de carbono, há uma boa possibilidade de que as entidades políticas atuais sobrevivam (fora Bangladesh, que afunda). Veremos muita guerra - aliás, elas talvez já tenham começado: há quem atribua aos efeitos do aquecimento global a guerra civil síria - mas boa parte delas sobrevivem; algumas, como Canadá e Rússia, até lucram com a abertura de áreas hoje ocupadas pelo permafrost à agricultura permanente. Com transmissão intergeneracional de riqueza intacta, ou seja, os que mais lucram hoje vão continuar lucrando amanhã. Baixas - serão, provavelmente, muitas - se concentrarão entre os mais pobres, especialmente os bangladeshis e outros que tiveram a desgraça de nascer, além de pobres, tropicais e costeiros (digamos, os habitantes da costa norte brasileira) ou em regiões áridas (digamos, os habitantes do nordeste).

Ajudando os governos no esforço de passar a bola adiante, culpando uns aos outros pela situação, está o fato de a avaliação da "culpa" individual pela emissão de GHG estar bem longe de ser algo simples ou fácil.  Por exemplo, enquanto normalmente se avalia os processos produtivos para estabelecer a emissão de cada país, a National Geographic resolveu avaliá-la pelo lado do consumo. Afinal, se a União Européia aumentou sua eficiência energética, isso foi em parte graças à terceirização da produção. Um europeu está "gastando" menos energia quando compra uma TV não porque a produção de monitores na Europa ficou muito mais eficiente, mas porque sua TV e seu carro podem vir da China e do Brasil, mas quem está tendo o benefício (uma TV nova) com esse gasto de energia é o europeu.

A distorção aí presente ajuda os governos europeus a apresentarem uma autoimagem como ecologicamente responsáveis que, paradoxalmente, faz com que os europeus se sintam pouco culpados pela situação da biosfera, como aponta a Economist. É uma estratégia mais tortuosa do que a dos políticos americanos ou canadenses, que simplesmente negam de pés juntos que haja qualquer problema, e talvez mais eficaz: assumindo-se que há problema e imputando, injustamente, esse problema primariamente aos terceiromundistas, pode-se impor acordos que deixam uma maior proporção do ônus de resolver o problema nas mãos do terceiro mundo. (Ajuda, também, a superestimar a possibilidade do ganho tecnológico, mas disso podemos falar mais abaixo.) Não se trata, aqui, de dizer que o peso do Brasil é menor que o da Bélgica, mas de apontar que a comparação é descabida: o que vale é o peso por cidadão, e a Bélgica é do tamanho do Rio Grande do Sul, não do Brasil. A idéia de se congelar as emissões chinesas enquanto as européias baixariam para dois terços do que são significaria congelar uma disparidade econômica entre a China e a Europa.

O problema de apontar essa hipocrisia, claro, é tomar cuidado para não se unir às vozes dos políticos dos tais países de terceiro mundo que, por sua vez, utilizam-se da hipocrisia européia como justificativa para fazer qualquer barbárie ambiental (e algumas barbáries sociais junto, que ninguém é de ferro). Nessa roda de empurra, todos sabem que o problema - quer creiam nele ou não - pode ser atribuído aos outros, e que, principalmente, quanto mais dinheiro se acumular antes da bomba explodir, melhor a posição relativa da sua pólis, e portanto sua capacidade de lidar com a mudança, e portanto o poder e riqueza dos estratos superiores aos quais um político pertence; a posição absoluta de miséria de seus concidadãos, quanto mais a dos cidadãos alheios, é uma consideração menor. Por conta dessa ciranda, as apostas já são de que vamos ultrapassar nosso "orçamento" de emissões de carbono máximas para um mundo reconhecível em mais de cinco vezes.

A traição aos letrados

No Brasil, em particular, mas um tanto em todo o mundo, a própria situação da "pólis" brasileira parece às vezes secundária para nossas elites, até mesmo a situação de longo prazo de seus próprios grupos; em parte devido à continuada percepção de questões ambientais como "sociais," isso é pertencentes ao âmbito da caridade e não do planejamento duro, econômico, prático. A questão ambiental é vista como a proteção da beleza cênica ou de pobres coitados ameaçados, e não como algo que possa influenciar questões realmente importantes, um preconceito comum que se aplica também a questões sociais e é perfeitamente capaz de ignorar petabytes de dados concretos. Nesse sentido, a questão ambiental demonstra mais do que outras como o termo "tecnocracia" merece uma qualificação: ela não é o governo do conhecimento, da techné em sentido amplo, mas acima de tudo o governo de uma técnica específica, que é o conhecimento burocrático, e que não é diretamente ligado à ciência moderna, ao contrário do apregoado. Não custa lembrar, afinal, que a tecnocracia nasce, na China T'Ang, com exames em que se avaliava o conhecimento pelo examinado de cânones ortodoxos, e nem a noblesse d'état deixou de existir. Ele pode até utilizar-se de instrumentos científicos - da estatística bayesiana à química metalúrgica - mas apenas instrumentalmente, e não como referendadores de tomadas de decisões. As anedotas atribuídas a Lina Bo Bardi ou Niemeyer, de que teriam desenhado prédios "impossíveis" e deixado aos engenheiros a tarefa de realizá-los mesmo assim, seriam corriqueiras para um tecnocrata.

Mais do que isso, o estranhamento entre os tecnocratas e o conhecimento científico dá espaço para a classificação de senso comum desses conhecimentos científicos ou paracientíficos entre os "sérios" e os "acessórios." Estes, a engenharia, a economia, os úteis para se lucrar; aqueles, todos os outros; e mesmo a engenharia e a economia só são considerados úteis enquanto não apontarem questões embaraçosas. É esse o verdadeiro significado da divisão, por exemplo, entre economistas ortodoxos e heterodoxos; "heterodoxo" poderia muito bem também ser chamado de "herege. Felizmente não se instalam autos-da-fé na Unicamp... A partir da divisão entre as ciências dignas de atenção principal e acessória, se estabelece escalas diferentes de esforço para lidar com cada uma por parte do governo, tanto em consideração quanto em recursos. Por isso o dinheiro para se lidar com aquecimento global ou outras questões ambientais é considerado muito se for uma fração do destinado a "incentivar a economia" ou construir e manter rodovias: trata-se de escalas diferentes. Ao mesmo tempo, a desvalorização da ciência "contra" convive com uma hipervalorização da ciência "a favor," com a crença numa solução salvadora simples - compartilhada, diga-se, pelas esquerdas altermundialistas. A diferença é a base dessa solução salvadora simples, se tecnológica ou social. Exemplo de solução salvadora simples de base tecnológica para um problema complexo: varrer os oceanos.  Exemplo de solução salvadora simples de base social: o crescimento zero (curiosamente, aplicado indistintamente a economias européias e africanas, apesar do abismo de diferença de nível de vida).

O problema é global, mas é tanto mais grave em países em que se somam o relativamente pequeno peso do setor científico (o Brasil, por exemplo, que tem menos graduados universitários que a Bolívia proporcionalmente, e menos pesquisadores do que a Argentina) e uma infecção particularmente grave do setor público pelo paradigma da "gestão" administrativa de faculdades de MBA. O pequeno número de pesquisadores permite que cada disciplina ou órgão de pesquisa e planejamento seja tanto mais insular e afenso ao diálogo - é o exemplo da EPE, que continua aliada ao setor empreiteiro-elétrico na grita por mais hidrelétricas com reservatório na Amazônia, inclusive utilizando-se da chantagem ambiental da energia nuclear, apesar de ser imprevisível e provavelmente pior a quantidade de água disponível no futuro, piorando as contas das tais usinas. Pior, apesar de as usinas poderem, ao incentivar o desmatamento, piorar a situação das usinas existentes. E a hipertrofia da "gestão" significa uma hipertrofia do tipo de pensamento que é pouco permeável a críticas.

A luz no fim do túnel é do trem de carga

Há quem aposte numa campanha popular - o "ultraje moral" - contra a indústria de petróleo, assim como funcionou a campanha contra o Apartheid. Descreio, apesar de acrescentar um exemplo mais próximo e importante, o da campanha contra o tráfico de escravos na Inglaterra, que atingia diretamente os lucros dos grandes negociantes domésticos, vistos como uma das bases da economia, ao contrário do Apartheid, que caiu de maduro e era política de um paiseco estrangeiro para a maioria dos que protestaram.  Não temos, ainda, nosso panfleto do navio Brooks. Talvez nunca o tenhamos, já que o imperativo de não causar aquecimento global não é tão simples quanto o de não escravizar teu semelhante ou não instituir um regime racista. Ter carro é causar aquecimento global? E viajar de avião? E ter um smartphone?

Mais ainda: o imperativo moral contra o sofrimento causado pela escravidão é relativamente simples. O aquecimento global é um dado científico complexo e de difícil compreensão para quem não tem uma educação razoável nas ciências da natureza; até mesmo aqueles que fazem campanha para mitigá-lo frequentemente se confundem sobre sua natureza e seus efeitos. Assim, volta e meia se utiliza de uma onda de calor ou catástrofe climática como "prova do aquecimento global" (um evento isolado não quer dizer nada, nunca). Assim, há quem atribua terremotos ao aquecimento global (não tem absolutamente nada a ver). E, assim, a indústria dos combustíveis fósseis, a mais rica e poderosa do mundo, mais do que qualquer governo, pode patrocinar a obfuscação que faz com que o aquecimento global possa parecer algo contestado entre cientistas, e não amplamente aceito. Às vezes o tiro sai pela culatra, como no estudo encomendado pelos irmãos Koch, mas em geral funciona a estratégia de obfuscação, com direito às pessoas  se perguntando se não há interesses financeiros "dos dois lados" (como se o Greenpeace e a Exxon fossem atores equivalentes).

Mesmo a idéia de que os governos "farão algo" em resposta a uma catástrofe definitivamente ligada ao aquecimento global antropogênico é, talvez, demasiado otimista. Ela assume que o "fazer algo" será algo pragmático, no sentido próprio da palavra e não naquele sentido que políticos geralmente utilizam. Pelo contrário, acho que o o "fazer algo" consistirá de megaprojetos, daqueles que envolvem megalucros para corporações igualmente mega, com consequências imprevistas e geralmente indesejadas, e talvez resultados pífios. Coisas como derramar milhões de toneladas de limalha de ferro no mar para estimular o fitoplâncton, ou instalar espelhos gigantes no espaço, ou criar vastos painéis de absorção química de carbonoTadinhos dos bangladeshis.

PS: se quiser saber em quanto você contribui para a destruição da metade de baixo da humanidade, aqui tem uma calculadora de pegada de carbono razoáverzinha.

PPS: sem dúvida, o aquecimento global antropogênico é apenas a mais urgente e imprevisível das catástrofes globais antropogênicas. Também tem a desertificação das terras, a acidificação, plastificação, e eutrofização dos oceanos, a extinção de diversidade natural e humana, a deposição de metais na atmohidrobiosfera, e outras menos cotadas.

30.11.12

Casando comidas

Não, não estou falando do feijão com arroz, muito menos do steak tartare com batata frita, mas de casar a produção dos alimentos, usando uma mesma área para todos. Um dos grandes problemas das monoculturas, em geral, é o quão suscetíveis elas são a pragas e doenças. Não existe uma única razão pela qual um mato vive feliz sem nenhuma aplicação de nada (bem, pelo menos até que uma espécie invasiva apareça), enquanto uma monocultura precisa de aplicações industriais de pesticidas para controlar pragas. Parte é por conta da homogeneidade genética; assim como o ser humano, as plantas e animais por ele domesticados são geneticamente pobres, principalmente os industriais. Parte, entretanto, é uma questão, digamos, semântica.

Assim, o problema da aplicação de pesticida não é que as pragas matariam necessariamente a cultura desejada, mas que não se quer que nada interfira com ela, proporcionando o máximo rendimento. Acima de tudo, controla-se o aparecimento de qualquer coisa que não seja o organismo sendo criado, porque "qualquer coisa" pode ser daninha, e é mais fácil eliminar qualquer coisa antes que ela cresça. O problema com isso é óbvio: como cada cultura, vegetal ou animal, ocupa um único nicho no ecossistema; com a monocultura mantém todos os outros nichos em aberto. Como a natureza, ao contrário da política brasileira, abomina o vácuo, a energia, e os poluentes, despendidos para manter esse monte de vácuos abertos é imenso - e sempre aparecem novas pragas para escapar da vigilância do agricultor.

A solução para o problema parece relativamente simples, mas é abominada pela agricultura industrial, até por significar, em geral, mais trabalho e menos possibilidade de mecanização: trata-se de preencher o máximo razoável de nichos ecológicos com espécies produtivas. Assim, desde priscas eras - OK, desde o século VIII, mais ou menos carpas são criadas em arrozais da China (e olhe que o arroz de campo molhado desenvolvido no sul da China é justamente o primeiro exemplo de monocultura, e talvez tenha sido o primeiro ou segundo grande vilão do aquecimento global, muito antes dos combustíveis fósseis); nas ésias, de Madagáscar ao Havaí, se cultiva coqueiro, bananeira, e abacaxi no mesmo espaço; o café é cultivado à sombra de árvores frutíferas; e por aí em diante. Para o sistema de grandes empresas, significa menor produtividade por hectare (às vezes, mas nem sempre), mas se você pensar do ponto de vista de produtividade líquida, contando a energia e o dinheiro despendidos pelo agricultor, invariavelmente é um sistema muito mais racional.

Assim, o projeto de consorciar tilápia e camarão mencionado na reportagem da Ciência Hoje não é particularmente revolucionário. O potencial de se utilizá-lo em larga escala, no entanto, é. Isso porque o Brasil tem, sabe-se lá por que motivo, uma Secretaria Especial da Pesca, visando a estimular a pesca e a aquicultura, apesar de nossos mares (que não são lá muito piscosos, com a exceção mal e mal de Santa Catarina e Pará) já sofrerem com a sobrepesca desde os anos 60. É como se tivéssemos uma Secretaria das Madeireiras, estimulando o desmatamento, já que a pesca não é senão caça de recursos naturais, como se ainda estivéssemos no paleolítico só que com navios fábrica, aviões batedores, redes literalmente quilométricas, e dinamite. Se se concentrasse unicamente na ainda incipiente aquicultura brasileira, e estimulasse projetos como esse, que além de economicamente práticos resultam em menos resíduos e poluição, a Secretaria da Pesca seria menos absurda.

OK, desde que não estimulasse a implantação, que já ocorre, de viveiros de camarão em áreas de mangue...

27.11.12

Fear of small numbers II - oclo, demo, eudaimonio

O historiador e panfletista americano Mike Davis, em sua coletânea "Elogio dos Bárbaros," narra o confronto entre um militante do Partido Democrata e um mineiro dos apalaches - isto é, um representante de uma classe (trabalhadora) e uma região (pobre e beneficiária do New Deal) que tradicionalmente representava a base sólida do partido - na qual o primeiro pergunta ao segundo "por que vocês nos abandonaram?" A resposta, algo óbvia, é "não fomos nós que abandonamos vocês, mas o contrário." O Partido Democrata se afastou das posições sociais-democratas rooseveltianas, baseando sua oposição aos republicanos (que por sua vez se mantém com todo o cabedal conservador unificado, desde a Southern Strategy) em questões morais-culturais e abraçando o neoliberalismo reaganita. Seus maiores esteios não são mais sindicatos e a classe trabalhadora, mas indústrias criativas e advogados, de um lado, e não-brancos, do outro; suas bandeiras principais são da guerra moral - direitos de minorias, acesso universal, meio ambiente - e não a representação dos trabalhadores contra o capital. Clinton, afinal, promoveu um processo de achatamento dos impostos

A estória, claro, é bem mais complicada do que o resuminho acima, e já o era mesmo antes de Obama resgatar, no mundo pós-Goldman Sachs, bandeiras como aumento de impostos e saúde universal. E, ao contrário do que Davis conclui em seu artigo, a distribuição de votos para Obama implica que os democratas não estão tão errados assim, em termos puramente pragmático-eleitorais. Mas ela reflete uma realidade problemática para a esquerda global, que não é óbvia, muito menos automática, mas é marcante: a disputa entre a defesa do bem-estar material do maior número de pessoas e a defesa daqueles particularmente oprimidos pelo sistema. As duas, que podem ser vistas como partes de um todo de resistência contra uma quiriarquia opressora, na prática são vistas, ao contrário, como afinididades eletivas e mesmo concorrentes.

É isso, e não algum pacto com o demônio, que faz com que seja possível a Dilma, seguindo os passos dos governos do socialismo real, planejar a destruição dos ambientes naturais e povos tradicionais da Amazônia, em nome do desenvolvimento. É uma falácia múltipla, sem dúvida, já que a conta que ela pressupõe é a de que não é possível promover desenvolvimento rápido sem comoção social de outra forma, e comoção social é (alguns poderíamos argumentar) exatamente do que precisamos; na conta de Dilma & Co o modo de vida da classe média, com consumo regular de duráveis*, incluindo carro, com casa própria, com viagens frequentes, não pode ser ameaçado e deve, ao contrário se expandir eventualmente a todos os cidadãos.

Não dá pra dizer simplesmente que essa não é uma visão de esquerda; ela é, afinal, o sonho stalinista, que se irmanava com seus irmãos do outro lado da cortina de ferro, discordando apenas nos meios pelos quais chegaríamos lá, e nem tanto assim, em muitos casos.** Se trata da adição de "prosperidade" à lista da revolução francesa de liberté egalité fraternité. Bem entendido, no caso do Stalin, com supressão da "liberdade." E a questão da prosperidade não pode ser respondida, numa situação brasileira, com a simples renúncia ao aumento da prosperidade coletiva, como nos países ricos. Uma igualdade universal nos EUA, com uma renda de 4.000R$ por mês de renda disponível pra cada um, talvez fosse razoável, mas uma igualdade universal a menos de 800R$ por mês per capita? Não significa não apenas não viajar, mas não ter acesso a serviços que consideramos básicos; e uma vindicação aparente da "esquerda tradicional proletária anti-mudernidades de minorias" dilmista estaria no fato de o Brasil ter sido o país com o maior ganho de bem-estar do mundo entre 2006 e 2011. 

Da igualdade de todos como seres humanos resulta que os anseios coletivos, no seu agregado numérico, sejam legítimos, mesmo que para tal os anseios de poucos tenham que ser sacrificados, sejam estes poucos atuais opressores ou atuais oprimidos, e nesta última alternativa está a falácia presente quando o modelo dilmista e daqueles que, na situação corrente, falam em "muita terra pra pouco índio" e congêneres.*** Admitindo uma soma-zero entre índios e não-índios, está ausente o reconhecimento de que grandes fazendeiros, sejam eles latifundiários clássicos ou o novo e reluzente (de agrotóxico) agronegócio, concentram muito mais terra arável do que os índios, mesmo tomado o conjunto do Brasil, que inclui a mais remota Amazônia. Os pretensos anseios por equidade contidos na reclamação de "muita terra" pros índios só se sustentam se você ignorar, ou tomar por absolutamente legítima, qualquer desigualdade dentro do campo "não-índios." Em outras palavras, só faz sentido se você julgar as coisas em termos nacionais-chauvinistas-caindo-pro-racismo, e decretar que índios não são brasileiros. É o que faz Katia Abreu, em seus exercícios de antropologia. Se é brasileiro, se não é um bom selvagem isolado,  então não é índio. O exercício é mais sutil do que à primeira vista parece, porque ele não deixa saída para os índios. Se não é índio, mas brasileiro, não merece ter sua terra isolada da ação do "mercado" (com grilagem e fuzil). Se é índio, não é brasileiro, e aí os índios têm terra demais.

A estratégia de Kátia Sahlins, de invocar a comunidade nacional para justificar as desigualdades no meio desta, é denunciada, claro está, pela esquerda desde sempre. Ela, Katia, tem mais terra em seu nome do que os Guarani-Caiová, e são (digamos, incluindo a família Sahlins inteira) umas 30 pessoas, contra 45.000 guaranis-caiová. Mil vezes mais terra do que os "índios que têm muita terra." Se o problema é a distribuição equânime da terra entre todos os brasileiros, faria mais sentido começar por eliminar os casos de desigualdade mais forte; no Mato Grosso do Sul dos Guarani-Caiová, por exemplo, o índice de Gini da distribuição de terra (sem contar os índios, que têm menos de dois hectares cada) é de mais de 0,8 - pra comparar, o índice de desigualdade de renda brasileiro, altíssimo, é 0,51. Nem se trata apenas de brasileiros e pessoas físicas: as fazendinhas de Katia são muito menores do que aquelas possuídas por grupos estrangeiros como Carrefour, Archer Daniels Midland, Bunge, Cargill, Nestlé, Louis Dreyfus, e companhia. O capital já atingiu desde antes de ser capital o internacionalismo com que os proletários sonham, e suas balas são antes de tudo para os próprios soldados.

Contra o hipócrita nacionalismo das multinacionais, urgem duas posições, uma imediata e outra definitiva. A imediata é simples: apontar a falácia, perguntar se a CNA que fala em muita terra para pouco índio não é, também, a favor da reforma agrária, ou pelo menos de um simples aumento no ITR para valores próximos aos pagos por proprietários de terrenos urbanos. A mais definitiva requer, entretanto, uma resposta para a pergunta - "por que alguns merecem ter terras que outros não merecem" - que se sustente mesmo após um hipotético e utópico fim das desigualdades. Ela não é necessária apenas para esse feliz fim da história, mas como resposta presente, já que a reforma agrária tira o argumento da CNA, mas não é em si um argumento positivo para afirmar os direitos dos povos tradicionais. Não é uma questão desimportante: afinal, se todos são iguais numa democracia, por que uma exceção a essa regra se justifica?

Uma resposta comum entre aqueles que defendem as causas indígenas, aquela para o romantismo, ao falar, por exemplo, dos índios "cidadãos de um universo harmonioso," em contraposição a nós, os desarmoniosos, de quem deveríamos aprender a harmonia.  Não é, aí, o bom selvagem, mas uma construção mais complexa, que fala de modos de relação com a natureza, mas peca por assumir que a relação destrutiva "ocidental" com a natureza é uma queda do paraíso (apesar da crítica à noção ocidental de paraíso no texto referenciado de E. Viveiros de Castro), uma questão de virtude que teríamos a aprender. Utilitariamente, a visão não funciona. O modo de vida dos índios na Amazônia (e de outras populações florestais, seja na Papua Nova Guiné de hoje ou no Japão Jõmon) é tão "harmônico com a natureza" (categoria ela mesma ocidental, pelo menos em seu modo comparativo) quanto outras populações tradicionais não-florestais, como, por exemplo, um camponês medieval (nem são, camponês ou índio, apenas avatares ou epígonos de seus respectivos ecossistemas antroponaturais. Sem trocadilho com James Cameron). Se tudo que os índios tivessem para nos ensinar,  fosse uma diferença assim, resumível em meia dúzia de palavras ou incomunicável senão pelo lento aprendizado, não seria uma diferença tão interessante assim. E não teria tanta utilidade prática - ausente um suicídio em massa, as taxas de ocupação da terra ideais de um sistema econômico florestal-agricultura de coivara precisariam de ainda mais terra do que o atual sistema.

Os índios não têm direito a suas terras, eu diria, porque encerrariam em si algum recurso aproveitável, incorporável à nossa riqueza (no caso, espiritual), mas simplesmente pelo direito à diferença, que implica na manutenção da diversidade. A diversidade do planeta está caindo em ritmo assustador, em todas as frentes. Espécies na natureza, sim, todos sabem disso, mas também a diversidade humana cai rapidamente, e aquela que é um pouco humana e um pouco natural. Línguas são extintas, como seus povos, como variedades de plantas e animais domésticos (e epidomésticos). A mortandade em curso desde a Revolução Industrial é, já, das maiores de todos os tempos no planeta, em qualquer registro. E isso deixa o planeta mais pobre. O ser humano, que durante seus primeiros milhares de anos causou menos extinções do que criou coisas novas, agora vê isso deixar de ser verdade, mesmo com o fantástico incremento na novidade científica-técnica; os milhares de culturas e manifestações são incorporados em meia dúzia de campos, todos eles ordenáveis através de cadeias globais de dinheiro e prestígio (com direito a Taj Mahal em Dubai). A criação de uma cultura global é, dessa forma, um empobrecimento. E um empobrecimento que não se dá em bases igualitárias, lembremo-nos novamente: não são nós versus os outros, de outra cultura. Culturas são hierárquicas, e quanto maior mais hierárquica. Não que a cultura global seja assim tão totalitária; nascem subculturas dentro dela o tempo todo, e algumas até se recusam à posterior reincorporação. Mas dentro desse cenário de mortandade, é necessário, é o mínimo, reconhecer o direito de alguém, de um povo, a se recusar à incorporação, e essa recusa não significa o isolamento total, mas pautar o grau e o ritmo de ligação com a cultura totalizante.****

Não é uma questão de noblesse oblige, mas de direito humano, nos termos mais pragmáticos, porque a incorporação forçada, e por baixo (sempre por baixo) a uma sociedade desigual resulta, quase que fatalmente, em uma taxa altíssima de sofrimento . Negar aos índios o direito às suas terras tradicionais é matá-los, cotidianamente. Não é uma questão abstrata, é uma necessidade direta; quantos cadáveres vale uma tonelada de soja? Um farnel de algodão? Uma meda de milho? Em nome da integração de territórios à nação produtiva, quantos mortos serão válidos, quantos genocídios? Não deixa de ser historicamente coerente: afinal, se todos os impérios têm enorme conta de mortos, não lembro de outros monumentos como o das Bandeiras no Ibirapuera, em que o caçador de escravos heróico é representado no momento da captura de seres humanos, ao invés de ter esse lado de suas atividades escamoteado.

 E, mais pragmaticamente ainda, ignorando até os direitos humanos (afinal, diria o Grande Irmão, os direitos de poucos podem ser ignorados em prol do interesse de todos), a manutenção da diversidade, da alteridade, é uma preservação de informação e, portanto, de segurança no sistema. Existe a possibilidade do apocalipse monocultural, versão em qualquer outra esfera do ocorrido na Grande Fome da Irlanda, em que a monocultura da batata não revelou-se uma boa idéia quando apareceu uma doença da batata. (Não que tenha sido essa a única causa da fome - o capitalismo deu uma ajudinha.) Culturas diferentes, assim como seres vivos diferentes, são um reservatório de possibilidades, reservatórios de alteridades que significam a resposta para perguntas que ainda nem fizemos (ou, talvez, nem possamos fazer antes da observação). Não porque são mais sábios e nobres que nós, apesar de não terem ar condicionado nem iPad, mas simplesmente porque são diferentes. Os interesses da multidão também são servidos pela preservação dos que preferem continuar outros. Nos seus próprios termos.

E, evidentemente, porque um planeta mais diverso é muito mais interessante. O que, para explicar as coisas em termos que até os engenheiros gernsbackianos como Dilma e Co podem entender, será muito importante na economia do turismo e do entretenimento do século XXI. Mucho money. Mooooney.



*com obsolescência programada, evidentemente.

**a ditadura militar brasileira, enquanto torturava e matava comunistas e índios, estatizava setores inteiros da economia. Em 85, eram estatais a produção de aço, petróleo, produtos químicos, aviões, armas e eletricidade; os serviços de telefonia, operação portuária, operação aeroportuária, transporte aéreo, e transporte regional ferroviário; eram fortemente controlados pelo estado a produção de biocombustíveis, a produção naval, e a distribuição de alimentos. A presença estatal na economia brasileira se assemelhava à finlandesa. A diferença estava na distribuição da riqueza, mais do que no modelo econômico; a ditadura brasileira, por supuesto, não acreditava nem em liberdade, nem em fraternidade, nem em igualdade.

***trata-se de um vasto e bizarro campo de insatisfação com privilégios percebidos como auferidos por índios, pobres, prisioneiros, mulheres, gays e outrem - sem, entretanto, em momento algum pular para a crítica aos privilégios auferidos pelo Thor Batista.

****Claro que o direito à escolha do isolamento total também deve ser respeitado. Há diversos povos que optaram por ele, na Amazônia e alhures.

26.10.12

Homens invisíveis

Um excelente artigo do Leonard Pitts desce o malho no vice-governador da Carolina do Sul, que num acesso de honestidade comparou os pobres a vira-latas, e fala de como falta voz e consciência de si aos pobres nos EUA. E estava lendo sobre a história ambiental da China, especificamente sobre a história do uso da água por lá, e descobri que até hoje o governo chinês resiste a se utilizar dos recursos hídricos tibetanos, apesar do Tibete sozinho ter um potencial hidrelétrico mais ou menos equivalente ao do Brasil inteiro, e um quase-nada de gente.

As duas coisas juntas me pensaram nas vantagens de se ser colônia de verdade sobre ser colônia de fato. Afinal, numa colônia de verdade, a dominação, e portanto a responsabilidade - chame de noblesse oblige, se quiser - ficam evidentes, enquanto no caso de locais em situação de exploração mas sem laços oficiais, abundam as declarações compungidas de que "esquecemos" a região. A China não quer enfiar as garras no Tibete porque sabe que, com o enorme movimento Free Tibet (principalmente derivado do carisma do Dalai Lama, e da atração que uma versão pasteurizada do budismo exerce em Hollywood), se fizesse isso seria atacada por fazê-lo no mundo inteiro, sem contar a resistência local. Pelo contrário, as transferências de riqueza se dão no sentido China-Tibete. Enquanto isso, no coração histórico da própria China, na região das Três Gargantas, faz uma megausina que inclusive é maior do que precisaria ser por razões de prestígio nacional. (Na área do lago, poderiam ser feitas, ao invés de uma usina de 18Gw, três de 7Gw, a custos ambientais, humanos e financeiros menores, mas aí nenhuma delas seria a maior do mundo.)

Enquanto isso, no Brasil não se tem nenhum problema em explorar regiões remotas no interesse das regiões dominantes. Pelo contrário, principalmente em São Paulo mas também no resto do Sul-Sudeste, pessoas têm a noção bizarra de que "sustentam" o Norte-Nordeste. E tome-lhe Belo Montes e Jiraus e Carajás, num esquema de exploração de recursos minerais bem colonial. Assim como, nos EUA, famosamente as pessoas superestimam em 4.000% o valor da ajuda externa doada pelo país, e acham que eles que transferem riqueza aos países subdesenvolvidos.

No ocaso do colonialismo, quando começou-se a desenvolver algum tipo de consciência, a transferência de riqueza ainda ia no sentido colônia-metrópole, mas em grau menor do que atualmente; do mesmo jeito, os estados de bem-estar derivaram, todos, de uma consciência de classe forte e da vontade da elite de apaziguar as massas famélicas. (Nesse sentido, o Brasil, com um estado de bem-estar aparecendo neste momento histórico, talvez seja uma exceção.)

Não é que der esmola atrapalhe a revolução, nem que se os franceses jogassem críquete com seus servos como nós não teria havido esse problema. Mas é que, sim, uma igualdade oficial e uma comunidade imaginária podem ser obstáculos para igualdade e comunidades reais. Talvez os governadores de Rondônia e do Pará não fossem tão amigáveis à construção de hidrelétricas se estas se destinassem a alimentar um país estrangeiro. (As subestações recebedoras de Belo Monte ficarão em Nova Iguaçu-RJ e Estreito-MG; as de Jirau e Santo Antônio em Araraquara-SP, e a de Itaipu em Mogi das Cruzes-SP.)

24.10.12

Os muitos genocídios guaranis-kaiowá

Os índios brasileiros vêm sendo vítimas de genocídio há - pelo menos - 400 anos. Digo 400, não 500, porque o primeiro grande ato de genocídio europeu nas américas, através da transmissão das doenças euro-afro-asiáticas, foi involuntário. O segundo, longe das terras tupiniquins, foi bem voluntário, a extinção dos taínos pela família Colombo. No século XIX, o romantismo levou a que muitas famílias da aristocracia brasileira ganhassem nomes aludindo a índios - é o caso de um certo ex-candidato a vice-presidente - mas essa simpatia era por índios mantidos num passado mítico, equivalentes nativos dos teutônicos que povoavam, na mesma época, as fantasias de Wagner. Os índios de verdade, vivos, continuaram a ser mortos em profusão; ainda havia matas e índios em boa parte da superfície dos estados do Sul e Sudeste até os anos 1930.

Essa ligação entre matas e índios ajudou, na crista da onda do ecologismo dos anos 80, a solidificar a noção dos direitos à terra dos índios e outras populações tradicionais, no Brasil e no mundo. Não diminuiu a pressão contra em nenhum momento, mas houve passos importantes, como a homologação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol, face a uma quase rebelião do governo do estado de Roraima, no Brasil, ou a conquista do imenso e gélido território de Nunavut pelos inuit. Foram ganhos em face de um genocídio cotidiano. Sim, cotidiano: o aumento das populações índigenas como um todo no Brasil na última década esconde em si um sem-número de grupos que foram sendo extintos, à custa de requintes de violência física e social. É um genocídio cotidiano, que gera bem pouca atenção e atende interesses de fazendeiros, mineradoras, empreiteiras, e governos. Em parte para testar essa visibilidade, está aí a hidrelétrica de Belo Monte, próxima da reserva indígena mais famosa do Brasil, que não me deixa mentir. Se o resultado tivesse sido protesto em massa, o resto do projeto de aménagement da Amazônia teria sido congelado; como foi a indiferença maciça, vai avançando. E o projeto amazônico, em que conluiam governo e agronegócio, é parte de uma contrainvestida maior, em que herdeiros da guerra fria de ambos os lados se unem contra o inimigo maior que é a natureza e os povos tradicionais, que não cabem nas utopias totalizantes. Depois podem discutir se a utopia de toga branca será capitalista ou socialista; urge que antes ela seja de engenheiros.

Neste momento, felizmente, uma instância específica desse genocídio - a morte dos guarani-kaiowá, cujas terras são invadidas por fazendeiros, assim como o são as terras de grupos próximos - ganhou bem mais visibilidade, basicamente graças a um feliz mal-entendido vagamente racista. Explico-me: o manifesto dos guaranis-kaiowás alertando para sua breve extinção, resultado natural de resistir até o fim, foi confundido, nas redes virtuais, principalmente a partir do artigo de Eliane Brum na Época que falava em "declaração de morte," como uma disposição para o suicídio coletivo como ato de protesto. O inaudito de um tal protesto chamou a atenção, e foi explicado pela diferença da "cultura índia" e reforçado pela realidade dos altos índices de suicídio na reserva (e em reservas tradicionais oprimidas mundo afora). Com uma pequena ajuda de quem viu no caso uma cause cèlebre antipetista, apesar da reserva ter sido homologada por Lula e proibida por Gilmar Mendes, com o processo parado, ou antes andando a passo de jabuti, no STF desde então.

Sim, felizmente. Se é verdade que Dilma não é atriz principal, como se lhe quer atribuir, deste drama específico, o é dos muitos dramas no entorno da Volta Grande do Xingu, e pretende ser de muitos outros ainda Amazônia afora. E muita gente de poder bem mais sólido que o dela também. Os muitos xingamentos no twitter, desta vez, podem não dar em nada, mas talvez sejam o embrião de alguma coisa.

5.10.12

O Xingu é aqui

Bem, aqui não, no Rio.

Em meio ao recrudescimento da conquista pela FIFA do Brasil, nesta semana vimos a mafiosa entidade suíça proibir o tabuleiro da baiana num raio de 2km do estádio Fonte Nova, em Salvador. O absurdo tem vários níveis. Proibir o produto local em prol do patrocinador massificado dentro do estádio já é absurdo, e desmente toda a parolagem piedosa de "sustentabilidade" e "legado social" que a FIFA roubou ao (um pouco menos mafioso) Comitê Olímpico Internacional. Na Alemanha, quando imposição semelhante foi feita em relação à cerveja, algumas das cidades conseguiram rebelar-se contra a possibilidade de ter que beber Heineken. Mas a FIFA foi além do estádio: proíbe que uma atividade tradicional e (até aqui) lícita aconteça nas ruas da cidade. Impõe sua lei a espaços que nada têm a ver com a copa (perdão, com a Copa do Mundo da FIFAtm), a gente que não se interessa por futebol. E - num momento em que a burrice, ao invés de servir de alternativa à malícia como explicação, se alia a esta - propõe um raio que só faz sentido num subúrbio americano para sua imposição. 2km da Fonte Nova inclui quase todo o Centro de Salvador, e todo o centro histórico, além de Comércio, Tororó, Lapinha... enfim, toda a região central da cidade. Quem estabeleceu o tamanho do raio de controle da FIFA das duas uma; ou mora num subúrbio de baixíssima densidade (não é só nos EUA que isso existe), ou não faz idéia do significado de 2km. Enfim, resumindo: não é tão hipérbole assim dizer que a FIFA quer, em 2014, proibir o tabuleiro da baiana.

Em Porto Alegre, o ataque à democracia foi menos radical, mas mais sangrento, e a FIFA pode até lavar as mãos do sangue literalmente derramado. Para defender o boneco representando o mascote da Copa 2014 – que chegou a ser derrubado -, foram deslocados cerca de 60 policiais militares do Pelotão de Operações Especiais (POE) do 9º Batalhão de Polícia Militar, além de tropas da Guarda Municipal. Os policiais jogaram bombas de gás lacrimogêneo, dispararam tiros com munição não-letal e partiram para cima dos manifestantes com seus cassetetes. Os relatos informam que sequer os jornalistas presentes foram poupados. Pelo menos três, que estavam devidamente identificados com seus crachás, foram agredidos: um fotógrafo do jornal Zero Hora, um repórter do Correio do Povo e um repórter da Rádio Guaíba.  A lavagem de mãos é óbvia, afinal não foi ninguém da FIFA que mandou a polícia bater no povo para defender um boneco inflável. Et pourtant, se alguém usa de força desmesurada para defender os seus interesses, você é culpado sim. A mesma FIFA que se arroga o poder de proibir a venda de comida na rua em todo o centro de Salvador poderia usar da mesma arrogância para passar um pito no governo que a defendeu com sangue, no mínimo. 

Não que tudo que os governos brasileiros façam com a desculpa da Copa do Mundo da FIFAtm seja realmente culpa dela. No Rio de Janeiro, Sérgio Cabral alega que a derrubada do antigo museu do índio, ao lado do Maracanã, é exigência da entidade, que nega. O edifício de 150 anos, que já foi sede do Serviço de Proteção ao Índio, do Rondon, e deixou de ser museu em 1978 quando o museu do índio foi transferido para Botafogo, foi ocupado por um grupo de índios de verdade, de todo o Brasil, que procuram fazer ali um centro cultural indígena.  A idéia não foi considerada lucrativa pelo governo do estado, que prefere a área como estacionamento para o Maracanã - que o mesmo governo do estado já anunciou pretender privatizar, com um certo empresário dono de peruca como principal candidato a concessionário. Com shopping center associado, claro. 

Não deixa de ser irônico: a FIFA, useira e vezeira em sacrificar a democracia ao lucro, está sendo usada como desculpa para que Sérgio Cabral venda um shopping center a Eike Batista, acobertando uma demolição e uma expulsão que, de outro modo, seriam impalatáveis politicamente. E é uma amostra da integração nacional, nos moldes desenvolvimentistas: índios no remoto Xingu são expulsos para gerar a energia necessária para iluminar o shopping center a ser criado aonde índios costumavam viver, na antiga capital federal. 

(Sim, porque a energia de Belo Monte descerá por linhas DC para Furnas (MG) ou Tijuco (SP) diretamente. Não será gerada para a região Norte.)

Atualização: Assustado com a repercussão do causo, o governador da Bahia Jacques Wagner promete que não permitirá a proibição do Acarajé. A ver.

29.5.12

Verde, amarelo, azul e branco

A ONG SOS Mata Atlântica tem como símbolo uma bandeira do Brasil em que o verde - que representaria as matas - está pela metade comido. Não deixa de ser uma representação realista: é mais ou menos essa a proporção de cobertura vegetal desmatada no país. (Se representassem a cobertura desmatada da própria Mata Atlântica, o verde estaria restrito a um cantinho da bandeira, visto que desta só sobraram uns dois porcento.) Não deixa de ser interessante perguntar pelo que representam as outras cores da bandeira. O ouro, já se sabe, há muito se foi, fosse para pagar as dívidas de Portugal, fosse para pagar os faustos de Donas Beijas, Xicas da Silva, e congêneres. Também pode ser encontrado nas igrejas do Brasil e da Península Ibérica, e graças a estas nas casas da aristocracia tupiniquim, já que a talha tanto das igrejas demolidas quanto das que continuam de pé adorna apartamentos na Vieira Souto e mansões no Morumbi.

E o azul? Bem, o azul não vai lá muito bem. O mar brasileiro já é pobre por natureza, graças aos azares das correntes mundiais; as águas mornas de boa parte da costa, não compensadas em geral por nenhuma abundância de sedimento, significam uma escassez de vida marinha. Só há uma abundância de vida na costa de Santa Catarina, Pará, e Maranhão; ou mais rente à terra, nas áreas de mangues, que estão sob ataque da ocupação humana, tanto da urbana quanto da carcinocultura, ambas anistiadas no código desflorestal sancionado semana passada. Mesmo assim, o governo fez, para acomodar aliados, um bizarro ministério da Pesca, como se estimular uma exploração já no limite fosse uma boa idéia. Bizarramente, e apesar de esse "no limite" ser sabido, o ministério não tem uma estrutura de pesquisa digna do nome.

Tampouco pode-se dizer que, apesar de todas as praias e baías, as universidades do Brasil são lá muito bem equipadas em termos de pesquisa oceanográfica. A USP comemora a vinda de um novo navio, o Alpha Crucis, para substituir o antigo que já era o maior de qualquer universidade do Brasil. Ora, o Alpha Crucis tem um quatorze avos do tamanho do Almirante Irizar, maior navio de pesquisa oceanográfica da Argentina - que, lembremos, tem a mesma população e PIB do Estado de São Paulo. Tem mais: há dois outros navios oceanográficos argentinos maiores do que o Alpha Crucis.  Mas esperem, universidade não é tudo. Afinal, a Marinha do Brasil tem barcos maiores que o Alpha Crucis. O maior deles, o Almirante Maximiano, chega a um pouco mais de um terço do tamanho do Almirante Irizar...

O desconhecimento das condições do mar territorial brasileiro dá vazão ao descaso, que também se estende ao policiamento desse mar. Dizia o oceanógrafo David Zee, em introdução ao seu livro procurando arrecadar fundos para um aquário marinho na zona portuária do Rio: "o Carioca tem muita cultura de praia, mas pouca cultura de mar." Não é só o carioca.

PS Não sei muito bem o que representa o branco. Imagino que a cocaína que irmana frequentadores de baile funk na periferia e boates putsputs de filhos dazelite. Essa vai bem.

25.5.12

Projeto Hudson redux

Num post anterior, comentei aqui sobre o megalomaníaco projeto do Instituto Hudson, think tank americano que pretendia criar um mar interior na Amazônia represando o rio-mar em Óbidos, transformando em um mediterrâneo cheio de lavouras e cidades o ermo (wasteland - nos anos 60 ainda estava em curso a transição pela qual a palavra passou de significar área não aproveitada pela humanidade, incluindo qualquer mato, para querer dizer área desolada, sem vida). Pois bem, é curioso como a proposta do atual governo brasileiro para a região, mutatis mutandis e sem a megalomania descomunal, parece cada vez mais ser a do Instituto Hudson. Com vernizes, evidentemente, já que declarar tal coisa a peito aberto não é muito popular hoje em dia.

Vejamos a última comunicação do governo sobre o setor de energia elétrica: a de que estão canceladas as usinas nucleares propostas, e a base da expansão será a energia hídrica. Não se trata exatamente de um terceiro excluído; mesmo com geração eólica bem maior do que a prevista pelo governo, um Brasil com crescimento médio que seja não poderia dispensar outras usinas de algum tipo, e principalmente aquelas, como a hidrelétrica e a nuclear, que funcionam na base - o tempo todo e previsivelmente. Eólicas têm um limite de confiabilidade, que funciona com outras usinas para suprir a defasagem quando o vento não sopra. E energia solar ainda é caríssima, e mesmo com todos os aumentos de eficiência do mundo, o Brasil ainda precisa de muito mais metrô, trem, computador, e todas essas coisas que consomem energia elétrica.

Face a essas duas alternativas impalatáveis, o governo optou (como tem optado sempre, em qualquer ocasião) pela usina hidrelétrica, apesar de deixar aberta a porteira para a termelétrica a carvão do amigo Eike Batista, a pior opção possível em termos ambientais. Mas não precisam se preocupar, serão Usinas Plataformas, similares à operação de plataformas de petróleo em alto mar, e por isso não causarão danos ao meio ambiente, ou só causarão danos mínimos! A alegação é no mínimo bizarra, por uma série de motivos:

1 - Plataformas, em que pese sua popularidade, estão longe de "não causarem danos ao meio ambiente." Causam, e muito, desde a fase de prospecção, em que animais são mortos pelas ondas de choque, passando pela perfuração, em que vaza fluido de broca e há risco de acidentes catastróficos, até a operação, em que manchas de óleo próximas são comuns.

2 - Se não há milhares de operários numa plataforma no meio do mar, é por dois motivos simples: o mar é péssimo para se morar, e ótimo para arrastar cargas pesadas sobre ele. Ninguém vai implantar um canteiro de obras no meio do oceano, e ninguém vai arrastar por terra uma barragem hidrelétrica construída - como o são as plataformas - num estaleiro urbano.

3 - A alegação de que "não haverá estradas permanentes" não faz sentido. O problema é a própria construção, e não a operação, e ninguém imagina que se levará operários e cimento de helicóptero. Falar de "novas tecnologias de manutenção" é outra baboseira; de novo, o problema é a construção, como pode ser abundantemente visto na hidrelétrica de Belo Monte.

4 - A alegação de que a área ao redor, desmatada durante a construção, será reflorestada e "rigidamente controlada" pela União é, no mínimo, curiosa. Ora, se a União conseguisse fazer cumprir as atuais leis (ainda não foi sancionado o código desflorestal), desmatamento não seria problema nenhum, nem violência, nem doenças, nem nada. Se não consegue agora, qual a credibilidade que tem em dizer que conseguiria em torno dessas usinas plataforma?

5 - Mesmo que as tais usinas funcionassem como alegado, com feéricos dirigíveis gigantes largando a barragem do céu, a interrupção no fluxo do rio - e portanto de tanto peixes quanto sedimentos - por um enorme muro de concreto tem efeitos ecológicos importantes.  Se assemelha, é verdade, às plataformas no quesito "não dá pra ver na foto," o que imagino seja a maior preocupação... e olha que nem mencionei que, se a Dilma está preocupada, como alegou, com reservatório, essas usinas não vão ser, como Belo Monte, Jirau, e Santo Antônio, a fio d'água, mas criarão imensos lagos.

Ora, ninguém crê que Maurício Tolmasquin ou Dilma Rousseff sejam imbecis. Então por que estão vendendo um modelo de usina patentemente falso, e que vai, na verdade, intensificar o desmatamento e promover etnocídios? A resposta é óbvia: porque para eles, as mesmas ações tomam valor positivo, e se chamam integrar territórios e gentes à nação e à economia brasileiras, numa perpetuação dos ideais amazônicos da ditadura. Como o Instituto Hudson, que queria fazer great lakes brasileiros, o ideal deles é uma imensa Minnesotta, com umas florestinhas cênicas aqui e acolá sendo invadidas no verão pelos suburbanitas de Manaus e Porto Velho. Não é por nada que, neste momento, está no Congresso, além do código desflorestal, uma proposta de abrir territórios indígenas à mineração.

Atualização: o governo já está andando com as usinas do Tapajós. Que, lembrando, são mil vezes piores do que Belo Monte. Belo Monte, assim como as usinas do Madeira, está sendo construída numa área que já é parte do arco do desmatamento, já é largamente degradada, e aonde os conflitos da fronteira agrícola já são parte do cotidiano. As usinas do Tapajós vão levar essa realidade para áreas de floresta intocada.

Atualização 2: as empresas elétricas já encamparam de peito aberto a defesa dos reservatórios. Que, convenhamos, são mais lógicos mesmo; uma usina hídrica, com todos os seus impactos, só é superior a uma eólica por conta do reservatório. Usina hídrica a fio d'água, no mais das vezes, só dá lucro em condições amigas (governo participando do consórcio, dando o empréstimo, contratando a outra sócia como empreiteira, e pagando pela transmissão), como em Belo Monte. É o reservatório que permite à usina funcionar ao mesmo tempo como usina de carga-base e de reforço, evitando sobreoferta ou acionamento de térmicas (que é denunciado por jornais como "novela deixará eletricidade mais cara").

26.4.12

Contando as árvores na floresta

Proporção de votos "não" (ruralistas) por partido na votação do novo código florestal:
DEM: 24/26 (tem dois DEMos anti-ruralistas? Milagre!)
PCdoB: 6/12 (cadê a unidade partidária, centralismo democrático?)
PDT: 17/24
PHS: 1/1
PMDB: 71/74 (depois dizem que o partido é desunido)
PMN: 1/1
PP: 27/35 (uia, mais anti-ruralistas que o PDT)
PPS: 3/9
PR: 24/26, mais o Garotinho se abstendo
PRB: 0/10 (o centralismo democrático do Bispo Macedo funciona)
PRP: 1/1
PSB: 9/25
PSC: 12/14 (um sim e uma abstenção, igual o PR)
PSD: 36/43 (Kátia Abreu já avisou que vai mandar uns jagunços na casa desses 7)
PSDB: 26/48
PSL: 0/1
PSoL: 0/3
PT: 1/80 (quem é Vander Loubet?)
PTB: 14/15
PTC: 0/1
PTdoB: 2/3
PV: 0/9 (pelosmeno, né?)

Conclusão: de partido grande contra o desflorestamento, só o PT. Bispo 4Macedo teve quase tantos votos anti-desmatamento quanto a verdadeira esquerda e o movimento verde juntos (10 vs. 12). O PMDB "essencial à base do governo" votou em bloco contra o que supostamente seria a posição do governo. PSDB e PCdoB ficaram divididos, respectivamente quase e exatamente meio a meio. PDT foi latamente desmatador, PSB e PPS latamente conservacionistas.
E nóis sifu, porque isso aí é voto o bastante para derrubar um improvável veto presidencial sem suar. O veto é apreciado por uma sessão conjunta das duas casas (deputados e senadores valem a mesma coisa), em que metade mais um dos congressistas votem a favor da derrubada. Metade mais um são 513 deputados + 81 senadores =  594 / 2  = 297 - 274 = 23

São necessários 23 senadores votando pelos ruralistas para derrubar um veto presidencial. Mantendo-se as proporções da câmera por partido mesmo arrendondando pra baixo, teria-se

DEM: 3/4
PCdoB: 1/2
PDT: 3/5
PMDB: 18/19
PP: 4/5
PR: 5/6
PRB: 0/1
PSB: 1/4
PSC: 1/1
PSD: 1/2
PSDB: 5/10
PSol: 0/1
PT: 0/13
PTB: 4/5
PV: 0/1
Demóstenes Torres: 0/1 (não existe bancada Demóstenes Torres na Câmara)

Notem que quando eu disse "arredondando pra baixo," eu quis dizer que se a proporção na Câmara foi 71/74, como isso não dá 100%, vou tirar um senador. Ou seja, no caso de PMDB, PSD, DEM, e PTB, adicionei um senador em cada. OK, o do PMDB seja o Requião.
Conclusão: mesmo sendo otimista, são 46 senadores anti-mato. 23 a mais do que o necessário para derrubar um veto. #vetadilma só para que ainda se possa ter um tingo de respeito por ela, mas não vai adiantar de nada.

3.4.12

Shining city on the hill

A hidrelétrica de Belo Monte, neste blog, é quase um Leitmotif. Apesar disso, acho que cabe esta nota, quase um mea culpa: é que, da última vez que tinha escrito sobre o assunto, tinha dado a Inês como morta, alegando que agora a construção da hidrelétrica, com a concomitante destruição da Volta Grande do Xingu, já era inevitável. Pois bem, os fatos se encarregaram de demonstrar que, se a construção da hidrelétrica e seus danos socioambientais eram inevitáveis, continua essencial denunciar o modo como essa construção se dá. Mais ainda, Belo Monte é quase um microcosmo, mais concentrado, das mazelas do Brasil. Assim, em Altamira, temos:

polícia se misturando ilegalmente a segurança privada em prol de empresas
imprensa fazendo vista grossa para atrocidades cometidas em prol de coisas que eles apóiam
autoridades locais fazendo qualquer coisa em nome do "desenvolvimento" que na verdade é...
expropriação do capital natural acumulado, com pouquíssimo da produção revertendo em ganhos locais


E por aí além. Mas outra notícia - bem menos impactante, bem menor, bem menos grave do que Belo Monte - me impressionou. Lida hoje, ou seja, com algum atraso. Ela é assim:

A orla de Bertioga corre o risco de perder uma das cada vez mais raras faixas de praia ainda não urbanizadas da Baixada Santista. Um novo condomínio que ocupará uma área de 3,5 milhões de metros quadrados - mais do que o dobro do Parque do Ibirapuera, na capital - está em processo de licenciamento ambiental. Caso seja aprovado, cerca de 660 mil m² de mata de restinga deverão ser desmatados para abrigar casas, prédios, hotéis e centros comerciais.



O Buriqui Costa Nativa pertence à empresa Brasfanta - dona de marcas alimentícias famosas, como o adoçante Doce Menor e o suco Sufresh - e foi apelidado por ambientalistas de "Nova Riviera de São Lourenço", por ficar a poucos quilômetros do tradicional condomínio de Bertioga lançado em 1979. Seu projeto, porém, é ainda mais ousado. A população fixa planejada é de 25 mil pessoas, mais do que o dobro da Riviera. Na alta temporada, o empreendimento deverá atrair até 56 mil pessoas, população maior do que a de todo o município de Bertioga atualmente.



O atual Código Florestal protege a mata de restinga, mas uma lei estadual prevê a possibilidade de se urbanizar lotes com esse tipo de vegetação desde que se preserve no mínimo 70% da área. É essa a justificativa da Brasfanta para pedir a aprovação do empreendimento, pois o projeto apresentado ao Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) destina 80% para a preservação ambiental. O Plano Diretor de Bertioga também não proíbe a urbanização ali e permite prédios de até 15 andares na área.



Ambientalistas ouvidos pelo jornal O Estado de S. Paulo, porém, são contra a concessão da licença. "Além do desmatamento, um condomínio desses atrai população no seu entorno, o que vai causar ainda mais impacto na região. É um projeto que vai mais do que dobrar a população do município", diz Carlos Bocuhy, ex-conselheiro do Consema. Bertioga é a cidade que mais cresce na Baixada - o salto populacional foi de 54% entre 2000 e 2010 - e a previsão é de que o crescimento continue, graças à exploração de petróleo.



Outra preocupação dos ambientalistas é o fato de a Baixada Santista ser uma das regiões que menos tratam esgoto - em Bertioga, apenas 59% dos detritos são coletados e o restante é despejado no mar. "Atraindo mais pessoas, o entorno do condomínio poderá agravar esse problema", diz Bocuhy. Além disso, o impacto viário deverá ser expressivo: 12,2 mil novas vagas de garagem.



A Brasfanta, por meio de nota, afirmou que a expectativa de moradores está superestimada e, mesmo assim, haveria uma concentração baixa para uma área urbana. A empresa disse também que a área a ser preservada vai garantir a conservação vegetal e de biodiversidade e o empreendimento ainda vai oferecer uma estrutura urbana sustentável para a população.


Por que ela me impressionou? Porque, justaposta à sobre Belo Monte, ela deixa claro que no Brasil formas de opressão de primeiro e terceiro mundo coexistem lado a lado. Não é tão lindo quanto se o condomínio e a marina estivessem lá em Altamira, mas é uma evidência de que temos tanto o desmatamento da colônia quanto o da suburbana metrópole, o pré e o pós industrial. Assim como temos a escravidão rural das fronteiras agrícolas e a escravidão urbana dos imigrantes "ilegais." Assim como temos obesidade e fome, crimes da abundância e crimes da carestia. Questões de direito à privacidade na Internet e de direito a não ter a casa invadida sem mandato. Direitos humanos tolhidos pela nova sociedade de controle e pelos velhos esculachos da polícia. Eu disse que Altamira é um microcosmo do Brasil? Pois o Brasil parece um microcosmo do mundo.

22.3.12

Wolves at the door

O lobo é dos animais mais próximos, em seu comportamento social e nicho ecológico, do homem. Até por isso, foi o primeiro bicho a ser domesticado por nossos antepassados paleolíticos, há tanto tempo atrás que naquela época a Hebe era virgem. (Entre 7.000 e 35.000 anos atrás, pra ser exato.) Apesar, ou talvez por causa disso, nosso relacionamento com os lobos que permaneceram do outro lado da cerca sempre foi violenta como o são as brigas de família. Lobos comem a Chapeuzinho Vermelho, servem de montaria a Orcs, derrubam casas de porquinhos, comem o sol, a lua, e os deuses... há exceções, claro. As lobas parecem gostar de criar humaninhos, de Rômulo e Remo a Mowgli. Entre os povos da estepe asiática (aonde talvez tenha ocorrido a primeira domesticação) o lobo é um ancestral honrado; entre os russos, talvez por influência dos ex-patrões mongóis, o lobo é mais uma figura de trapaceiro, à João Malasartes, do que uma fera terrível. Mesmo quando é uma fera, entretanto, ele é geralmente mais loquaz, mais razoável, bem falante do que outros animais antropófagos, como o urso, o tigre, ou o crocodilo.

Fora da mitologia, as coisas são mais simples: animais perigosos deviam ser mortos. Assim é que os lobos foram extintos da Inglaterra ainda no século XV, e na Europa como um todo sobrevivem apenas em cadeias montanhosas remotas; o lobo perdeu mais território do que a maioria dos animais jamais teve. Não havia espaço para um predador cooperativo, eficiente, e faminto num campo aonde seres humanos trabalhavam. Entretanto, conforme o homem deixou de ser cercado pelo mundo e passou a cercá-lo, conforme a natureza foi se transformando em parque, em alguns lugares o bicho foi sendo reintroduzido. Hoje, pode-se encontrar lobos novamente na Escócia ou nos EUA ciscanadenses.

Nem todo mundo, evidentemente, compartilha da visão do mundo como um parque; fazendeiros das áreas em que foram reintroduzidos os lobos não são, em geral, lá muito simpáticos à idéia. Um dos problemas enfrentados na reintrodução se torna, portanto, o convencimento desse povo. Mas tem gente em escritórios mais remotos que pretende matar lobos por motivos racionais, se não muito simpáticos, e um tanto dadaístas. Assim, o governo canadense está matando lobos em prol do meio ambiente. Ou melhor, dos rebanhos de renas. A lógica é a seguinte: a extração de petróleo de areias alcatroadas, além de ser dez vezes pior para o efeito estufa do que a versão comum, provoca uma enorme degradação do ambiente ao redor. São rios secos, montanhas de enxofre, planícies de terra arrasada. Um cenário apocalíptico, no qual os rebanhos de renas não podem encontrar muita comida. Com seu habitat reduzido, os rebanhos sofrem uma pressão negativa; para "salvá-los," ao invés de minimizar os danos do petróleo (o que, ok, não é muito viável), retira outra pressão negativa. IE os lobos.

Nos EUA a coisa é mais, digamos, tradicional. Assim como nos tempos paleolíticos, os lobos são mortos porque competem com os caçadores humanos. Registre-se que nenhum dos dois casos representa ameaça à existência do lobo como espécie, que é classificada pela IUCN como "preocupação mínima." Só são vagamente degradantes - especialmente porque são praticados justamente pelos respectivos departamentos do meio ambiente, distorcendo a visão que levou à criação desses departamentos e ministérios.

9.12.11

Trifecta

Num curto espaço de tempo, o governo Dilma soltou, diretamente ou por conivência com o congresso, três coliformes de vulto: o novo código florestal, a neutralização da lei antihomofobia, e o programa nacional contra o crack. O primeiro acaba com garantias contra o desmatamento que até estados feudais tinham, o segundo não tem muito efeito mas significa uma capitulação aos preconceituosos pseudo-religiosos (algum deputado da "bancada católica" votou contra o código florestal, como recomendado pela igreja?), o terceiro é a reabertura dos manicômios, para se isolar os doidos dos olhares de gente de bem(ns).

Não, não estou arrependido de ter votado na Dilma. Porque votei mesmo foi contra o Serra, e ele pregava todas as três coisas na campanha. Ombro a ombro com Silas Malafaia, Kátia Abreu, e Jair Bolsonaro. Mas que dá raiva, dá. A desculpa sempre é a necessidade de preservar o capital político para votações importantes, mas que votações importantes seriam essas? Até o Obama, que também usa essa desculpa, passou o seu plano de saúde pelo Congresso, mas não vejo nada além do ramerrame banal de orçamento, DRU, e outras cotianidades ser tentado pelo governo Dilma. Sem jogar (mesmo admitindo a possibilidade de derrota) por nenhuma bandeira, o PT dá razão à acusação de que sua única função no poder é manter-se no poder.

Do código florestal já falei bastante. Mas para explicar as outras duas indignações:

Não há nada de concreto no evisceramento do PLC 122 que me preocupe. Pelo contrário, A) mesmo neutralizado pela cláusula que permite a homofobia religiosa, ele continua sendo mais estrito do que a realidade hoje, e B) eu não acho que a criminalização do preconceito seja uma forma eficaz de lutar contra ele. Estamos comemorando os sessenta anos da lei Afonso Arinos, que proíbe o racismo, e continuamos tendo elevadores de branco, o crime de dirigir enquanto preto, cabelos ruins, e uma diferença salarial entre pretos e brancos maior do que a americana. Mas se nãoé um problema concreto, é uma sinalização - como tantas outras - de capitulação à bancada evangélica. O que os evangélicos mandarem, que não seja contra a CNA ou a Fiesp, o governo fará. E a esse povo, como aos ruralistas, o poder subiu a cabeça. Cada vitória deixa eles mais radicais, ao ponto de daqui a pouco o MEC ter que ensinar criacionismo nas escolas. (Seria irônico o primeiro museu de ciências de grande porte do Brasil ser criacionista... ok, tô exagerando.)

Sobre o plano de combate ao crack: ele não é mais do que o higienismo de tirar os indesejáveis das ruas. Internação compulsória não ajuda em nada os malucos (e toxicômanos são uma categoria de maluco), só atrapalha. Por isso que o Brasil, entre outros países, eliminou os manicômios ao longo dos anos 90, culminando na lei Paulo Delgado, de 2001. Por isso que a verdadeira função desse plano não é ajudar os craqueiros, mas sim retirá-los das vistas alheias. O neo-amigo Kassab agradece a ajuda para seu plano de valorização imobiliária da região da Luz. E o complemento do plano é uma intensificação da guerra às drogas, num momento em que até o presidente da Colômbia (um dos marechais dessa guerra no mundo, portanto) está questionando ela.

Anfã.

5.12.11

Motosserras a postos

O governo federal anuncia que, apesar de muito pior do que o atual, o novo código florestal (aprovado no Senado por vergonhosos 59 votos a 6) pelo menos será, ao contrário do atual, cumprido, porque vão investir em fiscalização. Há rumores de que uma senhora em Taubaté acreditou, ainda a serem investigados. Os ruralistas, que comemoraram efusivamente o novo código, não acreditaram nem um pouco, e alguns deles já ressuscitaram neste ano uma prática que não se via desde 2003: o corte raso com correntão. Explico: enquanto os desmatamentos realizados desde 2003, quando começou a haver alguma, ainda que incipiente, fiscalização foram velados, coisa que só aparece quando é um fato consumado, alguns fazendeiros no Pará e Mato Grosso estão desmatando pelo método de se amarrar uma corrente de navio entre dois tratores e sair pondo a mata abaixo. Mais descarado impossível. E um tal descaramento só pode ter uma origem: a certeza da anistia.

A certeza se justifica pelo comportamento do Executivo, revelando uma das poucas mudanças políticas reais entre o segundo governo Lula e o governo Dilma. O governo foi contra a primeira versão do código desflorestal, aprovada pela Câmara, dizem-nos, mas foi contra naquelas, tanto que o seu relator, Aldo Rebelo, continua sendo um dos líderes governistas. Da nova versão, só 99% a favor do desmatamento, foi a favor. Não custa lembrar que Marina Silva pulou fora do ministério do meio ambiente justamente por conta dos atritos com a então ministra da Casa Civil. (Não custa, também, reclamar da Marina Silva que, com sua atitude olímpica no segundo turno, pode ter preservado seu capital eleitoral udenista, mas abdicou de influência em prol do meio ambiente. Fosse apoiando Serra ou Dilma, essa seria bem maior.) Diga-se, pra ser justo, que nem todos os senadores governistas votaram a favor desse aborto. Pra ser exato, Lindinho e Requião foram contra, além de Randolfe Rodrigues e Marinor Mendes, do PSOL, e Paulo Davim, do PV. (E, bizarramente, de Fernando Collor.)

Não é que a Dilma seja o Blairo Maggi. Mas nem precisa; quando a maior e mais coesa bancada do Senado, além do poder econômico, estão a favor de algo, ser neutro já é o bastante para a catástrofe se anunciar. Não custa lembrar que o desmatamento anual sob o FH, que também não era o Blairo Maggi, e tenho certeza de que tem em privado até maiores convicções ambientais do que a Dilma, era mais de quatro vezes maior do que hoje em dia. E o que é pior: assim como os ingleses que eram contra a Guerra do Iraque, que não tinham alternativa porque o partido de oposição era mais a favor da guerra ainda, o PSDEMB é muito mais a favor do desmatamento ainda. Afinal, se apenas dois senadores governistas tiveram coragem de se opor ao governo, nenhum da oposição de direita se opôs.

21.11.11

Bela Cordilheira

A força que ganhou o tema "Belo Monte" depois da adesão de estrelas da Globo à campanha contra a construção da usina comprova, talvez, que a era dos virais da internet ainda não suplantou a dos velhos mídias. Belo Monte, de problema de ecochato e gringo, virou cause cèlebre nacional. E eu, que sou do contra e falava mal da represa desde muito antes, e em especial do silêncio dos candidatos presidenciais, Marina incluída sobre a questão, vou ser do contra de novo: agora a Inês é morta, os cavalos escaparam pela porteira, o leite derramou. Os maiores problemas socioambientais derivados de hidrelétricas na Amazônia não são os causados pelo lago*, mas aqueles derivados do fluxo habitacional temporário e da interrupção do curso do rio, partindo em dois um ecossistema integrado (muitos peixes, eg, se reproduzem nas cabeceiras de um rio, mas vivem sua vida adulta no curso principal, ou mesmo no mar).

O segundo fator continua sendo preocupante em Belo Monte, sem dúvida, mas escadinhas de peixe, como a que existirá, amenizam ele bastante. Não é fácil quantificar se Belo Monte vai ser mais danosa aos peixes do Xingu do que um parque eólico equivalente seria às aves marítimas do Nordeste. O primeiro, que é o pior deles, é que essa imensa massa humana (em Belo Monte, fala-se de 100.000 pessoas - mais do que a população atual de Altamira - ou de Corumbá, ou de outros cinco mil municípios brasileiros - é transiente e desocupada. A usina não precisa durante sua construção de todos aqueles que são atraídos pela notícia dela, e depois da construção, de quase ninguém. E aí você tem dezenas de milhares de pessoas sem ocupação nem como voltar pra casa, cuja única alternativa é a agricultura de subsistência no que um dia foi floresta. O que, é claro, gera poluição e desmatamento, e conflitos com os índios e ribeirinhos.

Ora pois, a essas alturas o povo já se mudou pra Altamira. Cancelar a obra não faria tanta diferença assim. Belo Monte não será um problema ambiental, já foi um problema ambiental. Por isso é que eu não me importo mais tanto assim com ela. Por outro lado, e infelizmente sem nenhuma atenção global (será que vão fazer vídeo depois de feito o estrago?), o novo, e retrógrado, código florestal caminha para ser aprovado no Congresso. O novo código, não custa lembrar, causaria o desmatamento de uma área literalmente 500 vezes maior que a do lago de Belo Monte, na projeção mais otimista. Centenas de vezes maior, mesmo incluindo o desmatamento induzido. Sem vídeo da Globo avisando que a parolagem ambientalista de que a legislação ambiental brasileira é rigorosa é uma mentira deslavada, e que o contrário é verdade - na maioria dos países, o desmatamento permitido é zero, não 20 a 80% de uma propriedade.

*a não ser que se cometa a burrice de deixar a floresta lá para ser alagada, caso em que a usina emite metano em proporção pior, para o efeito estufa, do que se fosse uma usina de carvão do mesmo tamanho.

16.9.11

Dano colateral

Muita gente, eu incluído, chama o novo código florestal, elaborado pelo "comunista" Aldo Rebelo e pela bancada ruralista, de "código desflorestal," como se a bancada ruralista fosse uma versão do TEA americano, cegamente ideológica e antiambientalista. Besteira. A bancada ruralista é 100% pragmática, não é o Xico Graziano (ex-secretário do meio ambiente de São Paulo, na gestão Serra, e antiambientalista de verdade). Um exemplo disso é a provisão que manda que todas as áreas de APP de represas hidrelétricas sejam desapropriadas e prontamente adquiridas pela concessionária. A medida é obviamente uma boa idéia do ponto de vista ambiental, porque significa mais segurança contra o desmatamento numa APP; mas ela está lá, na verdade, porque as concessionárias hoje "mandam" em áreas pertencentes a fazendeiros (fiscalizando para que a lei seja cumprida, em interesse próprio de preservação do lago), e com essa lei, que é retroativa, passariam a ter que pagar por isso. A estimativa de transferência de dinheiro entre os setores elétrico e agropecuário é de uns 30 bilhões pra cima.

A constatação, bem entendido, não deve ser considerada encorajadora por ninguém. Se apenas de histeria conservadora se tratasse, os interesses econômicos das grandes empresas poderiam pôr um freio no desmatamento induzido pelo código florestal novo, ou mesmo pesar contra ele no Congresso. Já que o desmatamento é interesse econômico real, só resta contra ele o Estado mesmo. Não precisa rir - além do desmatamento cadente na Amazônia desde 2005, o desmatamento no Cerrado caiu este ano. E por isso mesmo o novo código florestal é tão importante.

9.6.11

O tamanho do rombo

O IPEA fez as contas, e a área de mato perdida com o novo código (des)florestal é pouquinha coisa. Algo como uma área maior do que os estados de Sergipe, Alagoas, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraíba e Rio Grande do Norte juntos. Ou, se preferir, maior do que as Ilhas Britânicas. Bobagem.

E, claro, esse é o cenário otimista do estudo. No pessimista, some-se ao conjunto de estados Pernambuco e Santa Catarina. Vamos lá: pegue o mapa do Brasil e corte fora os estados mencionados todos para ver quanto de área florestada sumiria com o código florestal. Ou, para usar uma área contígua, São Paulo, Rio, e Paraná. (Em termos internacionais, é mais do que a Suécia ou o Iraque.)

Mas pera, piora.

No bioma Amazônico, estão 60% dessa área não recuperada. Em termos relativos, no entanto, a Caatinga e a Mata Atlântica seriam os biomas mais prejudicados. Nessas regiões, o percentual de reserva legal que não seria recuperada, em comparação ao total da área desmatada, seria superior a 50%. “É um percentual muito grande se considerarmos que a Mata Atlântica, por exemplo, é um hotspot da biodiversidade brasileira”, argumentou Ana Paula Moreira da Silva, autora da pesquisa.

26.5.11

Parece piada, e é

O PC do B explica, em seu jornal Vermelho, que o Código Florestal novo é parte de uma declaração de guerra à oligarquia rural. Ao tentar explicar por que a oligarquia rural em peso votou a favor dessa "declaração de guerra" a si mesma, produziu um parágrafo do qual Ionesco morreria de inveja.

O engajamento a favor do novo Código Florestal de entidades corporativas dos latifundiários, ideologicamente de direita, com forte influência política e posições destacadas nos grandes partidos das classes dominantes, nada tem a ver com aliança de interesses, opiniões, orientações e estratégias com as forças políticas progressistas que apoiaram o novo Código. Tais entidades, assim como políticos herdeiros da famigerada UDR, continuam sendo figadais inimigos dos camponeses, dos trabalhadores agrícolas em geral e do povo brasileiro.




PS depois da votação do código do desmatamento, qualquer um que se declare preocupado com o meio ambiente e vote no PC do B, no PSDB, no DEM, ou no PMDB estará sendo ou hipócrita ou lesado. Exatamente três tucanos e um PMDBista votaram contra o código, e nenhum demo ou comunista.

19.5.11

De emboscada antes dos vinte

No momento em que os ruralistas flexionam seus músculos, impondo uma derrota cada dia mais acachapante ao governo no Congresso e desmatando antes até de ser passada a anistia que se autoconcedem, não custa lembrar de quem, além das árvores, são suas vítimas.

Em primeiro lugar, são seres humanos, principalmente trabalhadores e sem terra. Ainda hoje no Brasil se morre muito de uma morte bem Severina, apesar do foco das preocupações com a violência ter se deslocado para a periferia das grandes cidades. Aliás, que a fronteira agrícola é também uma fronteira da violência pode ser visto nas estatísticas de homicídio nacionais. É só comparar os mapas da produção de presuntos, de carne, e de soja.

Em segundo lugar, são os próprios negócios a longo prazo desse bando de imbecis. Se o campo brasileiro, e principalmente aquele situado na fronteira agrícola no Cerrado e na Amazônia, é singularmente produtivo, não é apenas pela incidência do sol, muito menos por algum efeito místico, mas justamente porque ainda há mato em volta para cumprir um sem-número de funções ambientais que de outro modo teriam que ser pagas pelos próprios fazendeiros. Para se ter uma noção do quanto os fazendeiros recebem de graça das florestas que eles querem destruir, o negócio de polinização assistida nos EUA (que não podem mais contar com a polinização natural) movimenta mais de 16bn por ano. Imaginem o impacto de um custo de 16bn por ano no agronegócio brasileiro. Ou a irrigação distante, quando os rios sem floresta ripária secarem? Ou o aumento de até 60% nos gastos com controle de pragas?

Truculentos e míopes. E ganhando. Na versão eduardiana de Ricardo Terceiro, o partido deste usa de símbolo à fascista uma cabeça de javali; é de se pensar se seria um símbolo apropriado para a bancada ruralista.


PS Me intrigou muito a "denúncia" surgida assim de repente de que Palocci teria enriquecido como consultor após a passagem pela fazenda. Afinal, é uma não-notícia quase em estado bruto; é algo que se sabe que todos os ex-ministros fazem, e é algo que já era sabido de todos os jornalistas. Nem é, apesar de eticamente questionável, ilegal. Até que me dei conta de que Palocci em particular, e o governo em geral, estão neste momento num embate contra a bancada ruralista...

17.5.11

À sorrelfa

Aldo Rebelo parece sofrer de jobinite. Jobinite, assim chamada em homenagem ao excelso ministro da defesa Nelson Jobim, é a moléstia de quem, como Jobim fez com a Constituição Federal em 1988, altera o texto de um projeto de lei após este ser acordado, de modo a fazer com que o texto efetivamente votado pelos parlamentares seja diferente daquele que eles pensam estar votando. Que isso seja sequer possível é, reconheço, surreal, uma excrescência do ritualismo por um lado e da tolerância com políticos por outro; para os pares de Jobim e Aldo Rebelo, isso será quando muito um pecadilho, e não algo que lhes roube para todo o sempre de qualquer credibilidade.

O surto de jobinite do deputado comunista(sic) se deu, claro, na relação do novo Código Florestal, na qual um monte de pegadinhas foram inseridas após o acordo realizado entre diversos partidos. O curioso dessas pegadinhas é que elas se estendem até a pontos que, em teoria, não afetariam em nada o agronegócio, apoiador de Aldo. Assim, foi retirada a proteção a manguezais e veredas; veredas tudo bem, mas que fazendeiro pretende plantar soja num manguezal? Essa encampação leva a sujerir que o antiambientalismo, e não apenas o da bancada ruralista, ganhou novas proporções, para além da irritação quando se impede alguém de dilapidar o patrimônio ambiental brasileiro e ganhar dinheiro pra si; passou a ser uma questão ideológica, movida por um animus quase evangélico.

Curiosamente, ao contrário da maioria de tais questões ideologicamente carregadas, o antiambientalismo não ficou nem à parte da dicotomia direita/esquerda nem encampado por um lado apenas do debate; ao invés disso, o que se tem é uma ampla maioria dos que se percebem como de direita - mas também uma parcela muito significativa dos que se consideram de esquerda, como o Paulo Henrique Amorim.

10.5.11

Estados por encomenda

A Câmara de Deputados aprovou a realização de plebiscitos para decidir se vão ser criados dois novos estados a partir do Pará, os estados de Tapajós e Carajás. Hormis os nomes parecidos, os dois estados têm outra característica em comum: sua criação (com todo o respeito pelas pessoas das duas regiões que gostam da idéia) atende a interesses nem tão confessáveis nem tão locais.

O estado de Carajás, por exemplo, poderia logo situar como sua capital o Rio de Janeiro, mais especificamente o prédio que já foi conhecido como "Noivinha do MEC" e situado na Avenida Graça Aranha, nº 26. É onde funciona a sede da ex-estatal Vale ex-do Rio Doce, a maior interessada num estado todinho só pra ela. E boa parte do interesse específico da empresa nesse desmembramento pode se dever ao fato de que, um tanto atrasado, o Pará, com Minas, nos últimos anos tem começado a fazer pressão pelo pagamento do valor justo de royalties sobre a mineração. É que o estado, hoje em dia, em troca dos grandes passivos sociais e ambientais gerados pela mineração, ganha um quase nada. O problema não é apenas a alíquota (apesar desta ser uma das mais baixas do mundo), é que o royalty sobre a mineração no Brasil é faturado sobre uma figura confusa chamada "faturamento líquido," que na prática faz com que a Vale, com um valor bruto da produção mineral de um quarto da Petrobrás, pague menos de um centésimo do que esta paga em royalties. Isso mesmo, menos de um centésimo. (No relatório lincado acima, de 2006 e sem as participações especiais devidas à alta do petróleo, falam em um oitenta e oito avos.)

Do mesmo modo, o estado de Tapajós poderia ter seu palácio de governo na Marginal Tietê, onde fica a sede da JBS, ex-Friboi, que à custa de muito dinheiro público via BNDES se tornou a maior produtora de carne dos EUA e da Austrália, além do Brasil. É que o estado do Pará é amistoso com fazendeiros desmatadores, mas não chega a ser tão ridiculamente amistoso quanto o Mato Grosso, e isso é ainda mais importante num momento em que está para ser aprovado um novo código florestal, que tira responsabilidades por coibir desmatamento do poder federal e as entrega aos estados.

Se os nomes dos estados fossem mais honestos, seria até interessante. "Com a palavra, o nobilíssimo senador por Vale-Inco, rebatendo o argumento de sua excelência o governador de JBS Friboi."