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2.2.15

Dilma, o Alckmin de amanhã?

A seca que assola o Sudeste do Brasil pode - provavelmente será - a primeira de muitas, num país mal posicionado para enfrentá-las ou mitigá-las. Nesse sentido, a debâcle da Cantareira pode ser uma prefiguração do que espera o Brasil inteiro...

Este post precisa de duas ressalvas enormes.

Primeiro, a relação inequívoca que faz a atual seca ser culpa do desmatamento amazônico, atribuída ao pesquisador Antônio Nobre por uma imprensa sôfrega de espalhar as responsabilidades pela Cantareira, não é feita no relatório dele, até porque não poderia mesmo, nem na sua apresentação ao público. Atribuir um caso específico de fenômeno climático a um processo de alteração global é impossível, mesmo num trabalho de divulgação, de propaganda, que não se pretende ao rigor de trabalhos mais técnicos. O número de variáveis, em diferentes processos, muitos deles estocásticos, é grande demais; o que os modelos descrevem é o progresso geral, não cada ponto específico. O que o relatório fala, o que é quase certo, é que teremos mais secas assim no futuro que tivemos no passado. O que outros relatórios, os do IPCC, dizem é que teremos mais secas assim no futuro do que tivemos no passado, no sudeste brasileiro, por conta do aquecimento global. E os dois não se somam, se multiplicam (e pra piorar, ao contrário do Antônio Nobre que pretende soar um alerta, o IPCC é ridiculamente conservador nas suas estimativas; é provável que a coisa seja pior). Sinceramente, isso é muito mais importante para a discussão do que as causas da atual seca: as causas das futuras secas, que ainda podemos mitigar. Para a atual, a Inês já é morta,
Secas do rosto as rosas, e perdida
  A branca e viva cor, co'a doce vida.

Segundo, é óbvio que, apesar do título, Dilma não é a única responsável pelo que ocorre no meio ambiente no Brasil. Pelo contrário, pelo menos parte da estagnação ou reversão de 2013 (revertida por sua vez em 2014, indicando antes uma estabilidade) na queda de desmatamento ocorrida no período 2004-2010 é atribuível ao código florestal, cuja aprovação, em que o PT foi o único partido grande a votar contra, foi celebrada como derrota da presidenta. E, como podemos ver no gráfico abaixo, o desmatamento caiu sob o PT, e muito. Mesmo com o aumento pós-código florestal, ele ainda é uma fração do que era antes, que dirá da tendência apontada até 2004. (De novo, o PT não é tampouco o único responsável por essa queda, apesar de no caso ser o principal.) Se as coisas estão ruins, imagine como estariam com uma década de desmatamento aos níveis de 2004, ou pior ao dobro desses níveis?


Ressalvas feitas, a questão é: o Brasil, assim como as primeiras civilizações no Oriente Médio, no norte da China, no Paquistão, é uma civilização hidráulica. Enquanto a maioria dos países no mundo puxa sua energia elétrica de usinas térmicas, aqui são as hidrelétricas as principais. Nosso maior produto de exportação são os frutos da terra, o que também é chamado de exportação de água. Nossos rios, pelo menos nos planaltos e morros cisamazônicos, são hoje quase todos escadinhas de represas. E como essas primeiras civilizações, cercadas de desertos e se aninhando junto ao Indo, ao Huang Ho, ao Nilo ou o ao Tigre-Eufrates, é uma civilização hidráulica em que a água não abunda. A declaração, a princípio, parece um despautério. É só ver no Google Maps o contraste entre o Brasil verdejante e as áreas no entorno desses rios; o Nilo, em particular, é uma tripa verde em meio ao deserto, a fronteira tão nítida que poderia ter sido talhada a faca; não é por acaso que do deserto vêm os deuses terríveis dessas civilizações, os Apshai e as Lamias e Set o terrível, o estrangeiro de cabelo vermelho e cabeça de hiena, que fez em pedaços Osíris, deus morto da ressurreição do grão. Mas porém todavia entretanto, algumas diferenças nas civilizações em questão fazem com que essa seja uma declaração até conservadora. Tebas a gloriosa, cidade das mil portas, não tinha a população da Vila Mariana ou Copacabana. São Paulo fica, não no curso médio do Tietê, mas em suas cabeceiras, assim como outras metrópoles brasileiras. A água no Brasil depende do delicado equilíbrio dos rios voadores para continuar caindo do céu. E a maior parte da energia que supre a civilização industrial brasileira vem de barragens. Manter e aumentar a disponibilidade de água, longe de ser frescura de ambientalista, deveria ser das prioridades principais de qualquer governante. Temos pouca água, teremos menos no futuro.

Temos menos água porque a geografia do Brasil é tal que, sem a Amazônia e seus efeitos peculiares no clima, a maior parte do país seria semiárido ou (bem menos provavelmente) até desértico. As montanhas íngremes da Serra do Mar bloqueiam a vinda de umidade marinha para o planalto; as chuvas copiosas que caem sobre o vale do Paraná vão escasseando à medida que se sobe para o norte, justamente por serem copiosas no início; a própria Amazônia se situa próxima do grande cinturão global de desertos. A questão é que a grande floresta tropical respira, transpira, evapora água; uma quantidade imensa de água, superior ao próprio volume do rio-mar. Com isso, a chuva que vem do oceano, ao invés de se gastar, como na subida do Paraná, vai é se retroalimentando, até escorregar pelos vales dos grandes afluentes da margem direita, e com isso chegar ao planalto. (Mais chuva ainda bate nos Andes, fazendo da floresta peruana dos lugares mais úmidos, e biodiversos, do planeta.)

E, apesar do mapa abaixo em que boa parte do Brasil tem estresse hídrico fraco (a manchinha vermelha adivinhem aonde é), isso não reflete a realidade das grandes cidades brasileiras que, pelos caprichos da história, não ficam em sua maioria junto a grandes cursos d'água, mas bem pelo contrário, nas cabeceiras dos rios, em que eles ainda são pouco mais que riachos, ou em baixadas litorâneas estreitas, cujos rios são igualmente pequenos. O Tietê em São Paulo mal saiu de sua infância encachoeirada antes de ser canalizado; o Anhangabaú, junto ao
qual foi construída a vila, hoje desapareceu, como desapareceu o primo Carioca (este fica sob a rua das Laranjeiras). Estão enterrados sob as avenidas, são apenas galerias pluviais a mais. Do mesmo modo, estão nas cabeceiras, equilibradas sobre as montanhas (mesmo - a altura média das grandes cidades brasileiras do interior é maior do que a das grandes cidades suíças, japonesas, ou checas) logo aonde começa a expedição de descida da Serra do Mar, além de São Paulo, Curitiba,  Campina Grande, Garanhuns, Caruaru... E nas pequenas baixadas litorâneas estão quase o resto todo - Florianópolis, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, João Pessoa...  e sempre temos as cidades erguidas como capitais no planalto, como Belo Horizonte, Goiânia, ou Brasília; nenhuma dessas cidades tem água disponível próxima em grandes quantidades. Vitória, relativamente próxima da foz do rio Doce, as capitais alagoana e sergipana, próximas do São Francisco, Porto Alegre junto ao Guaíba, são exceções à regra. A falta de grandes rios por perto não era  problema quando essas cidades nasceram, com as chuvas abundantes; os riachos e ribeirões bastavam. Hoje, não se pode dizer a mesma coisa, com milhões e milhões de pessoas a circular por metrópoles, sem nem falar das exigências da indústria. Na megalópole do Sudeste, que se estende de Campinas a São Gonçalo, o alto Tietê e os alto e médio Paraíba alimentam mais de quarenta milhões de bocas, fazendo com que a disponibilidade de água por habitante seja comparável à do semiárido ou até pior. Outras precisariam de canalizações ainda maiores para buscar água de rios caudalosos - e para uma definição ampla de caudalosos. O Paraíba já caminha para, como o Colorado nos EUA ou o Huang Ho na China, chegar ao mar só em ano bissexto, ou por benemerência ocasional de seus gestores. Pra piorar as coisas quase à tempestade perfeita, o ciclo natural tridecenal da chuva na Serra da Mantiqueira acaba de se inverter - isso é, teremos três décadas secas, depois das três décadas úmidas que tivemos entre 1979 e 2013 (a rigor, a seca chegou até um pouco atrasada). E essas são as chuvas que abastecem São Paulo e, em menor escala, o Rio e Belo Horizonte. Mesmo sem a acumulação formidável de maustratos, portanto, a Cantareira teria menos água para nos oferecer nos próximos trinta anos.




Ao invés disso, a sinalização é de governos - em todos os níveis - fazendo a coisa piorar. Depois do breve interlúdio em que os índices de desmatamento caíram não só na Amazônia mas também no sempre ignorado (às vezes até explicitamente sacrificado) Cerrado, o futuro é de menos mata, e portanto menos água. Só na "nova fronteira" do Cerrado nordestino, ou Mapitoba, a previsão é de um milhão de hectares de nova área agrícola na década de 10.  O novo código florestal causa uma área de desmatamento do tamanho das Ilhas Britânicas só na Amazônia; mais diretamente em relação aos cursos d'água, ele reduziu a faixa de proteção da floresta ao longo deles, a mata ripária. A bancada ruralista parece bêbada com o próprio poder, cega pelo ódio a quem lhe queira impor limites, porque isso tudo significa o fim da própria agricultura de exportação num horizonte de tempo que não chega a ser secular. Não é que ignorem as descobertas científicas, tanto as recentes, caso dos rios voadores amazônicos, quanto as mais velhas que matusalém, como a importância da floresta ripária para a preservação dos cursos d'água (havia leis protegendo matas ciliares com esse objetivo, pelo menos, desde o império romano, que já via os efeitos da devastação na árida orla do Mediterrâneo); nem é a água o único benefício de se manter matas entremeadas às culturas - o consumo necessário de pesticidas, por exemplo, chaga em que o Brasil é campeão mundial, pode ser reduzido substancialmente pela presença de um matinho próximo, em que predadores naturais das pragas da lavoura podem se multiplicar. Pelo contrário, utilizam-nas, sempre que possível; longe da imagem tradicional do latifundiário, coroné da guarda nacional, o agronegócio brasileiro é hoje um negócio, capitalizado (com a ajudinha centibilionária do Banco do Brasil), moderno, que utiliza tecnologia de ponta. A questão é de ocupação de espaço, ideológica apenas como reação à ameaça percebida mesmo; esmagar o inimigo que ousa limitar seu poder. OK, nesse sentido ela se parece com o coroné. E a bancada ruralista é fortíssima, maior que qualquer partido; tem 120 parlamentares hoje, e deve ter 158 a partir do ano que vem. Mais coesa, também, que a maioria dos partidos; ao contrário das demais bancadas que nem sobre os seus temas de base votam sempre alinhadas, a bancada ruralista inclusive negocia com partidos e governo.

Se a bancada ruralista garante a proteção aos particulares que desmatam, o governo avança para a Amazônia fazendo mais barragens, a ferro e fogo, e as estradas abertas, os operários carreados para as obras, abrem novos clarões na Amazônia, sem nem contar a inacreditável ajeitadinha nas reservas de proteção ambiental do Tapajós. De novo, para isso a ideologia parece contar mais do que a lógica. Afinal, se há um consenso científico prevendo clima mais seco, situação agravada com a construção da hidrelétria, essa situação vai afetar a própria produção de energia da hidrelétrica. A solução gernsbackiana já é apontada pelo setor elétrico: parar com essa estória de hidrelétrica a fio d'água, sem reservatório, e voltar a inundar grandes lagos para regular a vazão dos rios amazônicos e armazenar energia; uma das desculpas é uma preocupação com o aquecimento global que soa oca quando sabemos que hidrelétricas tropicais têm o potencial - especialmente quando o desmate não é bem feito, como ocorreu recentemente no Mato Grosso - de, ao contrário, liberar tanto gás carbônico quanto usinas térmicas a carvão. Ainda pensamos localmente e agimos globalmente, invertendo o aforisma; ainda pensamos, em outras palavras, como se o Brasil fosse uma terra de infinita abundância. Não é.  É uma terra em que um exótico e frágil mecanismo mantém uma quantidade de água razoável. Razoável, apenas; no Brasil cisamazônico, lar de 90% da população e um terço das águas, nunca foi tão abundante quanto parecia. O Brasil é a São Paulo de amanhã porque corre o risco real de se ver sem água e sem solução. É tanto mais curiosa essa despreocupação quanto o Brasil agrário sonhado pelo Congresso e o Brasil industrial sonhado pelo Executivo necessitam, ambos, de vastas quantidades de água - a carestia em São Paulo já está afetando até, por tabela, a indústria da Suécia. Não é apenas gente, essa coisa sem importância, que vai morrer de sede; o PIB também. O reflorestamento é urgente, e está tão longe de ser coisa de ecoativista hippie na fefeléchi que já é praticado até pelo governo chinês (com resultados dúbios, é verdade).

Alckmin quebrou a Cantareira. Pode ser que ainda assistamos, antes de morrer, à quebra do Paraná. A responsabilidade será mais difusa, é verdade, com vários atores e não um só, o que ajuda cada um a fingir que não tem nada a ver com isso. Sem muita pressão da sociedade, quem vai ganhar politicamente será a bancada ruralista - logo antes de perder, junto com todo mundo, num apocalipse que deixará o dust bowl americano parecendo bolinho. Cupcake, vá lá. Não que essa catástrofe venha de uma vez; o que vai acontecer, o que já está acontecendo, é uma mudança gradual dos padrões. Já estamos pra terceira seca entre as cinco maiores do século, nos últimos 15 anos. (E para uma possível catástrofe urbana sem precedentes na maior cidade do país, apesar disso não ser bem culpa só da seca.) Mesmo com todas as soluções de engenharia possíveis tendo sido tomadas - linhas de transmissão, construção de térmicas complementares, integração do sistema - o ONS já fala em blecautes programados na madrugada durante este verão; em São Paulo, já se fala, como nos desertos, em reaproveitamento de esgoto (espero que tratem antes - hoje o efluente das ETEs da Sabesp é secundário, impróprio até para uso industrial; o tratamento a nível de consumo, por outro lado, custaria mais ou menos a mesma coisa ou menos que o plano atual de puxar água de novos mananciais, nas bacias do Paraíba e do Ribeira). Assim como o sapo que pula ao ser jogado no caldeirão fervente, mas deixa-se ferver mansamente quando vão aumentando a temperatura, nós humanos não somos bons em responder a processos graduais. É da boca de um personagem que pertence ao dust bowl que  saem as palavras que, no futuro, poderão ser ditas sobre a preservação da floresta, e portanto da água, no continente sul-americano:

Of all the words of mice and men, the saddest are 'it might have been.'