O almirante negro, João Cândido Felisberto, já não tem mais por único monumento "as pedras pisadas do cais." Pelo contrário, é hoje homenageado por um navio da frota da Petrobrás e por uma estátua na praça XV, ambos desvelados com a presença do presidente da República, sucessor ao fio dos anos daquele Hermes da Fonseca que mandou que se jogasse cal viva nos marinheiros, depois de renegar sua promessa aos amotinados de que ao largarem as armas seriam tratados dignamente. E aí está o problema: a narrativa na qual é celebrado o Almirante Negro* é uma narrativa contracultural, de resistência ao sistema dominante - como funcionam as coisas quando essa narrativa é celebrada pelo próprio sistema dominante. Será que João Cândido, post mortem, "traiu o movimento, véi"? Não que seja o único nem o maior, nesse caso : a 4km dali, uma enorme reprodução de um busto do Benim celebra o quilombola Zumbi dos Palmares. Cuja morte é feriado.
As coisas são mais simples, evidentemente, quando se trata de revoluções, em que a nova ordem celebra seus heróis em contraposição aos da velha ordem. Mesmo quando resgata estes posteriormente, trata-se do passado heróico da nação, e não de uma luta contracultural que, em muitos casos, como no do almirante negro, ainda está sendo travada. Ele é o símbolo de uma luta contra o racismo e o preconceito social que ainda vigoram, fortemente, no país, afinal de contas. Como pode ser comemorado o herói de uma luta que ainda não terminou? Não é estranho alguém que tem Hermes da Fonseca na galeria de predecessores comemorar o homem que Hermes da Fonseca torturou? (Não que essa continuidade não seja ela mesma uma construção algo recherché, já que não houve continuidade institucional, como no modelo americano, mas uma, dois, três, quatro, cinco constituições desde então.
É uma versão simbólica do próprio problema dos partidos trabalhistas e social-democratas quando chegam ao poder de forma menos do que completa. Como continuar criticando um establishment do qual se faz parte? Mas no caso, é potencializada pelo fato de o próprio ato de celebrar "heróis de nossa história," em monumentos de bronze ou pedra ou concreto, de tempo cíclico ou de verbo oficial, ser tão irremediavelmente ligado à cultura do poder, e especialmente àquela burguesa.
*Falo da narrativa, explicitamente, e não do próprio, que apesar de liderar a revolta contra a tortura na Marinha ficaria horrorizado com parte das apropriações de sua imagem feitas, era integralista e conservador em geral.
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