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30.6.11

Resumo de posição

Tive que responder essa pergunta, e por isso peguei e recauchutei um texto antigo deste blog.

O racismo à brasileira tem suas peculiaridades que o diferenciam dos outros modelos de racismo conhecidos. Algumas pessoas o consideram apenas como uma questão de classes sociais e outros acreditam na existência de preconceito e discriminação racial em relação aos não brancos. Utilizando-se de argumentos em apoio, como você se posiciona diante dessa ambiguidade?



Quando se fala em racismo no Brasil, uma argumentação recorrente se baseia na idéia de que "é difícil definir quem é o quê no Brasil.” A ideia tem uma base real na comparação com os EUA,* em que o racismo é primariamente baseado na ascendência, mais binário e fácil de identificar portanto em contraste com o racismo brasileiro baseado (de novo, primariamente) na aparência física. Mesmo que não haja mais nos EUA leis, como havia antigamente**, definindo qual a proporção de sangue negro que faz de alguém negro, a definição ainda é simples, e um afro-descendente que queira dizer que é branco estará "passing," fingindo, ao contrário daqui, em que a mesma pessoa será branca de verdade. O problema dessa formulação é que ela tem uma meia-verdade embutida, e que é irrelevante mesmo naquelas ocasiões em que seria verdade.

A meia verdade: é difícil definir exatamente quem é o que no Brasil, dentro de uma fatia específica da população, que inclui parte dos "pardos" e parte dos "brancos. Não em geral. A Benedita da Silva é preta, e ninguém duvida disso. A Martha Suplicy é branca. O Vicentinho e a Marina Silva já são mais complicados. E notem, apesar de ser interessante em termos políticos e de conscientização rejeitar a classificação trinária do IBGE em favor de uma dualidade branco/negro, a situação dos "pretos" é, em todo o Brasil, muito pior do que a dos "pardos." Mesmo tirando todas as variáveis exóticas. Pretos vivem mais separados dos brancos, têm menos valor no "mercado" matrimonial, ganham menos, são mais revistados pela polícia... OK, fazendo a eterna comparação com os EUA, que mesmo os pretos ainda sofrem de discriminação matrimonial umas vinte vezes menor do que nos EUA, com a pior região metropolitana brasileira, o Vale do Itajaí,**** tendo a mesma segregação matrimonial que a melhor americana, Washington.

A irrelevância: uma distinção clara entre grupos humanos não é condição necessária nem suficiente para o preconceito, ao contrário da teoria senso-comunista de que o racismo advém da observação das diferenças. Não só o racismo em suas diversas encarnações, da cordial à apartada, como até a xenofobia, que é muito mais radical e rejeita o contato, prescinde da possibilidade de distinção clara. A guerra da Bósnia é um exemplo: na Bósnia-Herzegovina pré-dissolução, a população falava serbo-croata. Não existe distinção física nem de sotaque. Dos 60% que responderam alguma coisa ao invés de simplesmente "iugoslavo" ao Censo, 36% se casavam com gente do "outro grupo." O sentimento religioso não era nem é particularmente pronunciado. A segregação residencial estava abaixo de 25iv* E conseguiram, mesmo assim, entrar em uma guerra étnica.

Do mesmo modo, o racismo no Brasil nunca precisou de uma distinção clara para se perpetuar. Nunca houve barreiras definidas, e nunca houve entraves ao contato – desde que fosse iniciado pelo indivíduo que está acima na escala. O senhor de engenho podia permitir ao escravo do eito que tomasse uma pinga junto dele; o contrário nem pensar. O racismo brasileiro, se quiser assim, segue uma lógica individualista, "de mercado," que se opõe à lógica de castas do racismo americano ou sul-africano v*, mas não deixa de ser reafirmador de hierarquias por isso em momento algum. Ao invés de ser enfiado pela sociedade numa casta específica, o indivíduo tem uma certa quantidade de "capital racial," (d'après Bourdieu) que ele utiliza junto com "capital social," "capital educacional,' "capital monetário” e afins. A questão é que esse capital racial não tem nenhuma tendência maior à equalização ao longo do tempo do que os outros capitais; pelo contrário, a tendência do capital é centrípeta, é que aqueles que têm mais vão ganhando cada vez mais.

Claro que isso não impede que haja outras formas de preconceito no Brasil, e que elas infelizmente não disponham da mesma quantidade de inimigos que o racismo. Não só o preconceito social é aceito; preconceitos étnicos diversos também são, dos mais leves ("aquele turco safado", "japoneses (que podem ser de qualquer origem asiática) são bitolados," "parece coisa de judeu") ao mais comum e, por ser exclusivamente brasileiro, não identificado como preconceito étnico, que é o preconceito contra nordestinos. Que, evidentemente, não é um preconceito contra nordestinos em geral; nenhum Jereissati ou Magalhães jamais sofreu discriminação por ser nordestino. O preconceito contra os “baianos” paulistas e “paraíbas” cariocas é um preconceito contra os mestiços do sertão nordestino – que, aliás, distorcem, por muitos deles responderem “branco” ao IBGE, baseados em hierarquias locais, as próprias estatísticas raciais brasileiras – se mudássemos de categoria a eles, ou criássemos uma nova, as desigualdades raciais se tornariam ainda mais gritantes.

Até há pouquíssimo tempo atrás, o Brasil, oficialmente, era um país em que não havia racismo, como apregoado pelos relatórios brasileiros sobre racismo enviados à ONU. Essa mentira já foi denunciada no genérico, mas ainda não no particular, a ponto de se ter a situação em que racismo é crime inafiançável, mas os milhares de casos cotidianos - da pessoa preta que não pode usar o elevador social ao ministro do Supremo Tribunal Federal quase barrado pelos seguranças na própria possevi* - não geram condenações. É uma falácia falar de outros males brasileiros, ou mesmo de outros preconceitos, como argumento contra a luta anti-racista; uma coisa não exclui a outra - e, cinicamente, eliminar preconceitos de classe numa sociedade capitalista é um pouquinho difícil. O que gera um efeito interessante - a interação do racismo brasileiro com o preconceito de classe, ao mesmo tempo que minora a radicalidade desse racismo (mas não sua violência), o torna mais difícil de eliminar.




*A comparação é inevitável; no universo conceitual brasileiro, o etnocentrismo está mais centrado na metrópole do que cá na colônia.

**E ainda há para os índios.

***Sim, tanto pra uma quanto pra outra a quantidade de pretos (VdI) e negros (DC) na população geral já tendo sido levada em conta e eliminada.

IV* Para efeito de comparação, o mesmo índice, de dissimilaridade espacial, varia para negros (BR: pardos+pretos) entre 37(SP, RJ, PoA) e 48 (Salvador) no Brasil, e entre 75(NY) e 92(Chicago) nos EUA.

V* O racismo na Europa, apesar de se constituir basicamente em preconceito étnico, é ainda uma terceira história, embora tenha, na França desde as levas imigratórias da virada do século e na Grã-Bretanha desde a leva caribenha pós-descolonização, características que se assemelham mais na forma ao modelo americano, e no resultado ao modelo brasileiro.

VI* Depondo contra a teoria da exclusividade do preconceito social; afinal de contas, é um juiz, velho e bem vestido tentando entrar no Supremo, não um sujeito em trapos. Ou, ao inverso, disse uma tia-avó minha uma vez sobre o próprio filho, "ele entrou no aeroporto todo sujo e cheio de craca nas pernas. Ainda bem que ele é branquinho, senão tinham jogado ele no lixo."

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