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3.6.11

Democracia racial

Uma das coisas que mais se ouve, em discussões acerca do racismo, é gente negando que tenha qualquer privilégio por ser branco, ou dizendo "eu nem me considero branco, sou da raça humana." É um sentimento muito nobre, mas quando é usado para negar o racismo esbarra na questão óbvia: é completamente impossível para um não-branco nem se considerar [negro/japa/índio/judeu/etc], porque vão lembrá-lo disso o tempo todo. São todos (ok, um tanto menos o japonês e o judeu) coloridos. Têm raça. Enquanto isso, o default-branco pode constituir a própria identidade a partir das bases que quiser; não teve uma imposta a ele. Aliás, um default-branco que também não inclui as pessoas que sejam brancas mas nordestinas e/ou faveladas.

E isso afeta as pessoas desde a infância, inclusive se refletindo no desempenho educacional. Até porque o Brasil é um país extremamente preconceituoso. Num post bem lá atrás comentei por alto sobre como o preconceito no Brasil não se restringe aos negros, mas é difícil deixar de sublinhar isso: ao contrário da autoimagem de que o país seria particularmente tolerante, o preconceito, em todos os matizes, é uma constante da sociedade brasileira. Manifestações de preconceito que seriam consideradas inaceitáveis em outros países são, aqui, lugar-comum. Quantas piadas de japonês com pau pequeno, turco e judeu ganancioso, negro bebum, bicha alucinada ou coisas parecidas ainda existem na TV?

A tolerância que foi, em alguns momentos, evidenciada no Brasil foi basicamente em relação aos imigrantes europeus e árabes brancos, e em menor medida aos japoneses, durante a época da imigração em massa, e as razões dessa tolerância, longe de serem uma certa bonomia do caráter nacional, estão justamente ligadas ao racismo. Os imigrantes sofreram preconceito, mas esse preconceito foi temperado pela crença na sua superioridade racial em relação à população nativa, negra ou misturada. Sobra até para os argentinos (de novo, com farto estímulo dos mídias de massa) que, estes, em geral têm uma atitude bem mais positiva para com o Brasil do que vice-versa. Sim, mesmo os portenhos.

Um exemplo de como a atitude tolerante para com imigrantes (e, hoje, turistas) brancos não se estende a qualquer um é a situação dos imigrantes bolivianos, cognominados aqui em São Paulo "roxinhos," e que já são parte significativa da população em alguns distritos.* Não é apenas que muitos deles sejam trabalhadores semiescravos; mesmo os que não são enfrentam uma alta carga de preconceito diário. Crianças bolivianas em escolas públicas comem o pão que o diabo amassou. O preconceito brasileiro, é verdade, difere do presente em alguns outros lugares porque quase nunca se confunde com xenofobia; com raras, apesar de cada dia mais numerosas, exceções não se pretende "expulsar esses caras daqui." Ele é, antes, hierárquico, como tudo numa sociedade tão profundamente hierárquica. Que eles não saiam da cozinha, que saibam do seu lugar, cada macaco no seu galho.

Até por isso, seria interessante revisar, não apenas a xenofóbica lei de imigração getulista, mas também as diretrizes do MEC quanto ao ensino da cultura indígena. Estas ainda não foram editadas, mas pelo que tudo indica se focarão (como o fazem as diretrizes para o estudo da África e do negro no Brasil) especificamente nas etnias que historicamente fizeram parte do Brasil. Expandir isso para pelo menos o conjunto da América do Sul, além de ajudar a combater esse preconceito sofrido por bolivianos, paraguaios, e chilenos (e outros imigrantes de origem ameríndia que venham a se tornar significativos), seria um passo em direção a uma visão de mundo escolar menos voltada para o próprio umbigo. O Brasil é um país, pelo que se vê nos bancos escolares, tão girth by sea quanto a Austrália.

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