Quando digo que "No Brasil, não é essa a situação dos negros, que estão misturados cultural e fisicamente aos brancos pobres," estou reconhecendo a dificuldade de se definir, em termos que possam ser usados pelo Estado burocrático e impessoal, o que é um negro no Brasil. O racismo brasileiro não é étnico (o que não reflete uma aversão brasileira ao preconceito étnico - que o digam paraíbas, japas, turcos e índios). Não há, sem forçassão de barra, um falar negro, setores negros das cidades (apesar da preponderância de negros entre os pobres), uma história negra. Quando se fala de "arte negra," esta é confundida com "arte popular" (até pela esmagadora preponderância dos negros entre os pobres, dependendo da cidade e da época). Não se pode definir quem é negro através da ascendência ou de outras características "objetivas" que caracterizam programas de ação afirmativa para outros grupos (mulheres ou deficientes). A substituição dos termos "preto" e "pardo" do IBGE por "negro" é uma falácia; isso não é necessariamente o que as pessoas indagadas responderiam em questionários que substituíssem uma palavra pela outra. Aliás, curiosamente, "pretos-IBGE," minoria relativamente pequena na população brasileira, são mais comuns quando aumenta a escolaridade, reflexo de um grau maior de politização, tanto quanto do encontro mais frequente com o preconceito especificamente racista.
A falácia de quem é contra os sistemas de ação afirmativa por cor é confundir essa dificuldade (real) com uma impossibilidade. É uma dificuldade da relação do Estado, com os princípios que se acredita que o Estado deve seguir, com a realidade brasileira, que não segue as mesmas regras. Não confrontar essa dificuldade leva à perpetuação de uma faceta da realidade brasileira que todos concordamos injusta; "não há racismo no Brasil, apenas preconceito social associado à cor," como diz o Ali Kamel, é só piada, já que é essa a definição de racismo, a não ser que ele esteja circunscrevendo este à variedade étnica, o que é etno(do outro, americano)centrismo demais. E a ação afirmativa por renda, como as políticas universalistas, não constituem uma forma de lidar com o racismo.
Por outro lado, como eu já mencionei, a ação afirmativa na admissão universitária por cor afeta basicamente uma classe média-baixa (note-se que isso é algo a anos luz da autoproclamada "classe média" que acha que passar dificuldade é comprar menos CDs de jazz ou viajar menos ao exterior) negra emergente. Salvo raras exceções, o pobre brasileiro não terminou o segundo grau, para se beneficiar da universidade. Embora eu ache que sim, fazer com que haja mais negros entre nossas elites é um bem-em-si, isso leva a outro problema, observado na ação afirmativa americana: a deterioração da situação de outros grupos discriminados, antes relativamente em melhor posição do que os negros, que inclusive se reflete no aumento do preconceito contra eles.
Por isso, a minha sugestão pessoal, sem desaprovar as ações afirmativas por cor, é seguir uma idéia do Bushinho (é, ele mesmo). Ação afirmativa por origem geográfica, de favelados e moradores de zonas rurais principalmente, mas possivelmente, escalonada, para incluir todos os setores do IBGE significativamente abaixo da média. Na sociedade brasileira, muito menos plástica e muito mais hierarquizada do que a americana, mesmo quando as pessoas se mudam, é pra lugares com perfis sociais semelhantes; há uma cultura de bairro ativa; e o critério de pertencimento atende aos critérios de objetividade e imparcialidade. Ainda por cima dada a segregação espacial, que sendo menor que em outros países ainda é significativa, a ação afirmativa geográfica também serviria para aumentar o número de negros nas universidades. Não havendo "cultura negra" diferente, o "capital cultural" de negros e brancos favelados - o que não é a mesma coisa que pobres - tende a não apresentar diferenças significativas. Como diz o Canibal, na favela japonês também é preto. (Tá, a afirmação é boa mas ignora o preconceito que o japonês vai sofrer muito menos.)
Por isso também minha indagação sobre outras formas de ação afirmativa, que afetem um contingente maior de brasileiros. Se eu não sigo a falácia do universalismo, de "melhorem as escolas," por outro lado eu me indago sobre políticas de apoio a escolas e alunos negros desde o primário; em programas de combate ao racismo em sala de aula; de ações afirmativas para negros (ou geográficas) em contratações no serviço público e em empresas que recebem dinheiro público, em funções de baixa escolaridade.
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