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27.4.12

A grama do passado é sempre mais verde

Uma coisa que me assusta no discurso de algumas pessoas que, como eu, estão entre decepcionadas e indignadas com o governo Dilma é a atitude catastrofista, como se Dilma representasse uma ameaça aberrante à civilização brasileira. "Nunca antes na história desse país" uma presidenta teria sido tão ruim assim. Ora, Dilma não é a presidenta que eu queria, sequer a que eu esperava, mas vamos pôr os pingos nos is: representa um retrocesso em relação ao governo Lula em muitos pontos, em outros nem isso. Dilma é horrível justamente quando é a continuidade do pensamento da elite econômica e política brasileira, não uma ameaça ao status quo virtuoso. A idéia de que é um retrocesso em relação ao governo FHC ou, mais ainda, aos anteriores é risível. Dilma afaga evangélicos? FHC vetou lei que permitia aborto em situações de risco de vida da mulher em hospitais públicos para agradá-los. (O veto foi derrubado.) Tenta se distanciar do kit anti-homofobia? O PSDB ataca o PT por conta do "kit gay." Não foi a nenhum evento oficial LGBT? Nem nenhum presidente fora Lula jamais foi.   (E olhe que o PSDB é dos mais esclarecidos no Brasil, tem até seus log cabin republicans, digo Diversidade Tucana.)

João Paulo Cappobianco, no Valor de hoje explica que "Temos o Ministério do Meio Ambiente com o menor perfil da história. Sempre tivemos operadores, ministros com alta capacidade de articulação com a sociedade e dentro do governo." Ele parece se esquecer que o ministro do meio ambiente do FH se chamava Zequinha Sarney. E tentou comprar animais apreendidos numa blitz do Ibama. Dilma patrocina Belo Monte? O índice de desmatamento (e associadas atrocidades contra índigenas, quilombolas, e ribeirinhos) hoje é menos de um terço do que era há dez anos atrás.

Dilma afaga o Gerdau? Mas não está planejando privatizar a Petrobrás e entregá-la a ele.

Etc. Etc. Etc.

Dilma é uma bosta, sem sombra de dúvida. Mas não é uma bosta invadindo uma privada japonesa high-tech cheia de água de rosas.

26.4.12

2+2=?


No post anterior sobrehttp://sambadoaviao.blogspot.com/2010/03/rabeira.html> imposto de renda, comentei que em outros países as alíquotas de imposto de renda haviam caído, conquanto ainda fossem em geral bem maiores do que no Brasil. Pois bem, a Economist nos fez a gentileza de mostrar essa queda em forma gráfica. (A alíquota máxima brasileira é de 27,5%, um pouco abaixo do México.)
Ah sim, curiosamente, a evolução tem uma correlação inversa fortíssima com a evolução do índice de Gini dos mesmos países. Que coisa.

Contando as árvores na floresta

Proporção de votos "não" (ruralistas) por partido na votação do novo código florestal:
DEM: 24/26 (tem dois DEMos anti-ruralistas? Milagre!)
PCdoB: 6/12 (cadê a unidade partidária, centralismo democrático?)
PDT: 17/24
PHS: 1/1
PMDB: 71/74 (depois dizem que o partido é desunido)
PMN: 1/1
PP: 27/35 (uia, mais anti-ruralistas que o PDT)
PPS: 3/9
PR: 24/26, mais o Garotinho se abstendo
PRB: 0/10 (o centralismo democrático do Bispo Macedo funciona)
PRP: 1/1
PSB: 9/25
PSC: 12/14 (um sim e uma abstenção, igual o PR)
PSD: 36/43 (Kátia Abreu já avisou que vai mandar uns jagunços na casa desses 7)
PSDB: 26/48
PSL: 0/1
PSoL: 0/3
PT: 1/80 (quem é Vander Loubet?)
PTB: 14/15
PTC: 0/1
PTdoB: 2/3
PV: 0/9 (pelosmeno, né?)

Conclusão: de partido grande contra o desflorestamento, só o PT. Bispo 4Macedo teve quase tantos votos anti-desmatamento quanto a verdadeira esquerda e o movimento verde juntos (10 vs. 12). O PMDB "essencial à base do governo" votou em bloco contra o que supostamente seria a posição do governo. PSDB e PCdoB ficaram divididos, respectivamente quase e exatamente meio a meio. PDT foi latamente desmatador, PSB e PPS latamente conservacionistas.
E nóis sifu, porque isso aí é voto o bastante para derrubar um improvável veto presidencial sem suar. O veto é apreciado por uma sessão conjunta das duas casas (deputados e senadores valem a mesma coisa), em que metade mais um dos congressistas votem a favor da derrubada. Metade mais um são 513 deputados + 81 senadores =  594 / 2  = 297 - 274 = 23

São necessários 23 senadores votando pelos ruralistas para derrubar um veto presidencial. Mantendo-se as proporções da câmera por partido mesmo arrendondando pra baixo, teria-se

DEM: 3/4
PCdoB: 1/2
PDT: 3/5
PMDB: 18/19
PP: 4/5
PR: 5/6
PRB: 0/1
PSB: 1/4
PSC: 1/1
PSD: 1/2
PSDB: 5/10
PSol: 0/1
PT: 0/13
PTB: 4/5
PV: 0/1
Demóstenes Torres: 0/1 (não existe bancada Demóstenes Torres na Câmara)

Notem que quando eu disse "arredondando pra baixo," eu quis dizer que se a proporção na Câmara foi 71/74, como isso não dá 100%, vou tirar um senador. Ou seja, no caso de PMDB, PSD, DEM, e PTB, adicionei um senador em cada. OK, o do PMDB seja o Requião.
Conclusão: mesmo sendo otimista, são 46 senadores anti-mato. 23 a mais do que o necessário para derrubar um veto. #vetadilma só para que ainda se possa ter um tingo de respeito por ela, mas não vai adiantar de nada.

25.4.12

Back to the Black Future

Neste momento, o STF julga a constitucionalidade dos diversos sistemas de ação afirmativa (coletivamente nomeados "cotas," apesar de parte deles usarem outros mecanismos) ora em vigor nas universidades públicas brasileiras. Os argumentos usados pela advogada da parte contrária, o partido "Democratas" - não dá pra deixar de pôr as aspas, num partido que foi base de sustentação da ditadura militar - são curiosos porque parecem um pouco deslocados no tempo. São exatamente os mesmos argumentos utilizados desde 2004. Não é apenas uma questão de falta de criatividade para criar uma agenda positiva ou novos argumentos contra as cotas - e olha que até eu tentei ajudar. É que muitos dos argumentos dos "Democratas" se baseiam na hipótese de cotas raciais serem implantadas, bouleversant nosso status quo.

Deixemos à parte a defesa desse status quo ser em si falha - nesse sentido, não consigo encontrar argumento melhor do que o tratamento estatístico dado ao racismo brasileiro por Edward Telles, em seu livro Racismo à Brasileira. E o DEM não poderia encontrar símbolo melhor da cegueira necessária para fazer essa defesa do que ao apanhar uma advogada loira para representá-lo - fosse nos EUA, até o partido nazista teria arrumado uma advogada negra. Negra, gorda, e com sotaque do sul.

A questão é que todas as hipóteses quanto à implantação de cotas se tornam um tantinho ultrapassadas quando as tais cotas já foram implantadas e estão sendo aplicadas por sete anos. É um pouco como dizer "se passares dessa linha morrerás" para alguém que já está pulando para um lado e outro da solheira do templo faz sete anos. As cotas não são uma hipótese, são uma realidade. Podemos estudar os efeitos que elas realmente tiveram, e não elocubrar sobre seus efeitos a partir de nossos fumos filosóficos, ou do que gostaríamos que fossem nossos fumos filosóficos e são um amontoado de senso comum míope e preconceituoso.

E adivinha quais são esses efeitos reais? Primeiro, que realmente as cotas raciais não são uma cura instantânea para o racismo, e geralmente nem são inteiramente preenchidas. Ponto para os Demos. Mas todos os outros resultados os desmentem. Não recrudesceu o racismo em geral (a não ser que você paute a existência de racismo apenas pelo número de pessoas que dele reclamam ao invés de resignar-se). Longe de os cotistas atrapalharem as aulas na universidade branca,  "segundo a Uerj, o índice de abandono entre os cotistas é menor que entre os não cotistas. O índice de reprovação entre os dois grupos é maior entre os não cotistas em todo o período." Nenhum profissional formado graças às cotas relata preconceito contra ele baseado nelas (até porque não tem escrito no diploma "admitido graças a cotas raciais"), e são poucos os profissionais negros que atribuem o preconceito que sofrem às cotas (como se "médico negão" não causasse suspeitas antes de 2004).

Quando você insiste num argumento ultrapassado pelos fatos, corre o risco de ser considerado ridículo. O Dem tem tão pouco medo disso que declara, em 2012 (e, diriam as más línguas, apesar das evidências) ser contra a escravidão.


PS Não é só sobre os efeitos de cotas nos próprios alunos e em seus desempenhos que já temos estudos. Tem sobre opinião de vestibulandos e de cidadãos em geral.

24.4.12

A tale of two Marinas Tião Cacareco

Muita gente tem comparado a atitude do candidato à presidência francesa Jean-Luc Mélenchon com a atitude da candidata à presidência brasileira Marina Silva. Sendo os dois candidatos representantes (a princípio) da esquerda, um conclamou para o segundo turno votos contra a direita, sem em momento algum falar bem do Partido Socialista, a outra manteve-se neutra. Mélenchon, crê-se, terá mais relevância na política francesa nos próximos anos do que Marina Silva, cuja maior realização ultimamente foi sagrar-se pastora. E olha que obteve bem menos votos no primeiro turno (ok, por outro lado todo mundo na eleição francesa obteve menos votos do que na Brasileira).

A comparação é completamente descabida. O verdadeiro equivalente de Mélenchon, num país muito mais à direita do que a França, é Plínio de Arruda Sampaio. Marina Silva, em termos de programa político, estava mais pra François Bayrou, com seu ambientalismo não muito convincente (não falava nada sobre as hidrelétricas na Amazônia) contraposto a um liberalismo econômico igualmente vago. Era uma centrista. Mas apenas parte de seu eleitorado votava nela por isso; votavam, isso sim, "contra isso tudo que está aí," contra a política. O eleitorado da Marina Silva é o leitor apaixonado da Veja, que assiste CQC. (Por mais que tanto Veja quanto CQC votem nos Democratas.)

E a mesma coisa pode ser dita de Marine Le Pen. Há os fascistas, evidentemente, que fazem desfile em honra a Joana D'Arc no primeiro de maio e sopa identitária, mas também há muita gente que vota na FN apenas como forma de mandar um dedo do meio em riste para a política. É a versão das urnas da Siouxsie com uma braçadeira de suástica no braço.

A observação é, sem dúvida, pouco elogiosa para MarinA. Mas ela é péssima mesmo para o anão demônio Sarkozy. Porque significa que boa parte dos eleitores de Le Pen não são em absoluto atraídos pela sua guinada à direita, e pelo contrário, podem até ser repelidos por ela. Enquanto isso, uma proporção razoável dos eleitores de Mélenchon pode votar contra Sarkozy (como o fizeram vários eleitores do Plínio, com menos peso total). E a mesma guinada à direita aliena a maioria dos eleitores de Bayrou, e até alguns dos que votaram no próprio Sarkozy. Vários cardeais da UMP já perceberam isso, e reclamam da direção tomada pelo partido - mas o Smurfíssimo é turrão.

PS Se a última pesquisa de opinião estiver certa, eu tô errado. Pra mim o curioso sempre será como um francês xenófobo pode apesar disso votar num filho de húngaro casado com uma italiana; não imagino um japonês, alemão ou sueco xenófobos fazendo isso. (Tem família "coreana" no Japão que tá lá desde o período Edo.) E não é só porque ele é branquelo - na França tem bastante preconceito baratinho pra oferecer ao povo da Europa Oriental.

23.4.12

Defenestrando

Uma das coisas mais interessantes da política é a constância com que descendentes de imigrantes bradam contra os outros imigrantes. Assim, Nicolas Sarkozy de Nagy-Bocsa, filho do imigrante húngaro Nagy-Bócsay Sárközy Pál István Ernő (como no japonês, o sobrenome em húngaro vem antes), encampou um discurso xenofóbico e nativista. Ele é casado com a imigrante italiana Carla Gilberta Bruni Tedeschi. Faz lembrar a charge do Ziraldo em que um índio perguntava "essa lei de imigração pode ser retroativa, doutor Abi-Ackel?" E agora tem gente na França conclamando ao voto para expulsar o casal húngaro-italiano reaça do Palais de l'Élysée.

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O exército brasileiro, não contente em ocupar metade da Praia do Diabo sabe-se lá para quê (o Forte de Copacabana é tão-somente um museu), agora resolveu pôr um muro nela.

Lembrando que as forças armadas brasileiras até hoje ocupam uma proporção bastante grande da cidade do Rio de Janeiro, e de outras capitais brasileiras, ao contrário de outros países em que bases militares ficam em áreas isoladas, aonde maquinário pesado e explosivo não incomodem os vizinhos e a área seja barata. Faz sentido - não apenas pela ditadura militar, mas porque mesmo antes dela, a função principal da tropa era bater no povo, não lutar contra um inimigo externo (quando o Brasil entrou na II Guerra, não mandaram o exército para lutar, mas constituíram uma força só pra isso, a FEB). Não faz sentido nenhum é, com o choro dos militares pela falta de grana (apesar do segundo orçamento de defesa do hemisfério, de mais de 50 bi por ano), não vender essas áreas. Só o forte do Leme (hotel), as escolas da Urca (idem), o campo dos Afonsos (pra prefeitura fazer um parque e cohabs), os quartéis do Paraíso (condomínios), a base de Cumbica (empresas de logística), e metade da Vila Militar do Rio (idem) já dariam dinheiro para comprar e manter uma meia dúzia de porta-aviões.


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Pereio para Prefeito!
(OK, pra vereador)
A plataforma, pelo menos, é interessante. Pereio fala em defenestrar os carros da cidade, desmalufizar, e deskassabizar. Mas não sabe se apoiará o mentor e aliado do Kassab, Serra, então...

20.4.12

A mãe das barragens

Comentei, no último post, sobre o projeto do Hudson Institute que envolvia barrar o Amazonas. Se barram o Paraná, por que não o Amazonas, né? Pois bem, não exatamente. Primeiro porque, como já mencionado, a topografia rasa da planície amazônica (o declive até o Atlântico de Iquitos é menor que o de Petrópolis) significa que um dado rio vai criar um lago muito maior se barrado. Segundo porque uma diferença de escala, se grande o bastante, se torna uma diferença de tipo, e a diferença de escala entre o Amazonas e o Paraná, por maior que este seja, faz com que Itaipú, perto do dique Hudson, seja uma roda d'água.

O projeto, criado por um think tank da guerra fria em 1967, se equipara em fantasmagoria a outros grandes projetos, como os foguetes e aviões atômicos e as pesquisas paranormais. Tratava-se de uma grande represa no estreito de Óbidos, aonde o Amazonas mal tem uma milha de largura (e mais de 150m de profundidade, e corre a uns belos 10 nós), e uma série de represas em outros pontos-chave, criando uma rede de "grandes lagos" sul-americana equivalente aos da América do Norte e abrindo a Amazõnia para o desenvolvimento (eco eletrônico, por favor).

É difícil de conceber a escala dessa coisa. O Amazonas na seca despeja entre quinze e vinte vezes a quantidade de água despejada pelo Paraná (ou pelo Mississippi) no mar, ou um quinto de toda a água doce do mundo. O rio Negro, se desaguasse no mar, seria o segundo maior rio do mundo, maior do que o Congo (e três vezes o tamanho do Paraná). Outra meia dúzia de afluentes do Amazonas são maiores do que o Iang-tsé, aonde fizeram Três Gargantas. O lago principal seria do tamanho do mar Cáspio ou maior, e aumentaria em um a três segundo a duração do dia (isso mesmo, a rotação do planeta). Perto da usina de 200GW (mais do que o dobro da energia elétrica que o Brasil de 2012 consome), qualquer coisa remotamente magnetizável oscilaria a 50hz, e uma chave inglesa grudaria em concreto armado. O custo de construção, de novo só do dique principal, seria da ordem das centenas de bilhões de dólares. Sem os nutrientes carreados pelo Amazonas, o mar não estaria mais para peixe no Atlântico Norte até a altura do Potomac.

Felizmente, na época ainda não haviam descoberto nem a correção de acidez pesquisada pela EMBRAPA nem a Terra preta de índio eram muito bem conhecidas, então todo mundo achava que era impossível desenvolver agriculturalmente a Amazônia, por isso o projeto foi sepultado. Senão, hoje a Amazônia seria tão extinta quanto as florestas de pinheiro branco ao redor dos Grandes Lagos.

19.4.12

Dark Fantasy

A presidenta Dilma Rousseff nos explica que aqueles que são contrários à instalação de grandes hidrelétricas na Amazônia estão vivendo num mundo de fantasia. Verbatim: "Ninguém numa conferência dessas também aceita, me desculpem, discutir a fantasia. Ela não tem espaço para a fantasia. Não estou falando da utopia, essa pode ter, estou falando da fantasia." A frase, canhestra, é curiosa porque a amiga do peito de Dilma Graças Foster, presidenta da Petrobrás, havia declarado que a empresa não implantaria novas usinas térmicas porque estas não seriam capazes de competir, no custo, com usinas eólicas. E olha que usinas eólicas ganham benefícios do governo, sem dúvida. Mas muito menos do que os benefícios espalhados sobre as usinas hidrelétricas na Amazônia, principalmente Belo Monte.*

Mas esperem, o preço não é o principal motivo alegado por Dilma para sua oposição à energia eólica. É que "Reservatório de água a gente faz. Mas não faz reservatório de vento." Ora, tem toda a razão a presidenta! Louvemos seu apuro técnico! Er... se não fosse por um detalhezinho. As usinas sendo feitas na Amazônia - Santo Antônio, Jirau, Belo Monte - não têm reservatório. São todas usinas a fio d'água, que se aproveitam do curso corrente do rio. Nesse sentido, são tão vulneráveis aos caprichos da natureza quanto uma usina eólica, e não comparáveis a Itaipu ou Sobradinho, em que se pode acumular energia gravitacional pra converter depois. Por isso mesmo, a geração firme de Belo Monte é um terço da sua geração máxima. Nem isso acontece apenas por pinimba dos ambientalistas malvados que impediram os grandes reservatórios; a topografia da Amazônia faz com que uma usina com reservatório por lá signifique um reservatório desmesurado - e caríssimo - como em Balbina. E sim, tem gente propondo esses reservatórios muito maiores e mais danosos.

Fantasia, de verdade, parece ser o mundo em que habitam Dilma e outros proponentes da salvação do Brasil pelo represamento das águas amazônicas, seguindo os passos do pantagruélico projeto Hudson americano, que pensava em represar o próprio Amazonas, na altura do estreito de Óbidos, para criar um mar interior e facilitar a navegação. (Tema para uma tese de ecólogo: calcular as emissões de metano da vegetação apodrecendo e outras consequências ambientais nesse mar, caso tivesse sido feito nos anos 70.) Lula chegou a falar de usinas-plataformas, alimentadas por helicópteros e sem desmatamento, como se pudéssemos comparar as poucas dezenas de trabalhadores numa plataforma de petróleo com os milhares e dezenas de milhares numa obra de usina. A plataforma também é construída por muita gente, o que ocorre é que ela depois pode ser rebocada até seu sítio de operação. Fantasia é ignorar contente as barbáries cometidas nessas obras gigantes.  Fantasia é dizer que barrar um rio não lhe afeta o ecossistema, que obras com dezenas de milhares de operários não afetam a fronteira agrícola. Fantasia é dizer que não existe outra alternativa.

Tem até um nome específico essa fantasia, e não é o que ostenta o título deste post, que se refere ao gênero do qual a saga Crepúsculo é a versão pop, anódina, e de sucesso. Chama-se o continuum Gernsback, de um conto epônimo do canadense William Gibson, aquele que sem saber o que era um computador inventou o ciberespaço. No conto, um fotógrafo é contratado para registrar imagens de arquitetura "espacial" do começo do século; diners e postos de gasolina com antenas e radiadores, os EUA que se prepararam para um futuro que não foi. Nas palavras do próprio personagem [During the 1930s] ... they put Ming the Merciless in charge of designing California gas stations. Favoring the architecture of his native Mongo, he cruised up and down the coast erecting raygun emplacements in white stucco. Lots of them featured superfluous central towers ringed with those strange radiator flanges that were a signature motif of the style, and made them look as though they might generate potent bursts of raw technological enthusiasm, if you could only find the switch to turn them on."

Influenciado pela arquitetura, o protagonista acaba deslizando - se é delírio ou realidade não fica claro - para dentro daquele futuro, o futuro limpo e perfeito dos engenheiros, pregado por Hugo Gernsback e outros entre os primeiros escritores de ficção científica. A realidade alternativa, de autoestradas de 15 pistas por sentido e togas brancas, eugenia e tecnocracia, é aquela na qual parece que querem viver Dilma (que já se declarou fã de Jornada nas Estrelas, série que foi dos últimos grandes expoentes dessa tradição na ficção científica), e outros que pregam a cura dos males do mundo pela ciência - e eles querem dizer engenharia e economia, e não nenhuma outra, sequer as outras ciências "duras." (A economia foi singularmente bem-sucedida, dentre as ciências humanas, de se ver encampada pelas "duras," talvez pela matematização mais completa.) O problema, é claro, é que o outro lado do continuum Gernsback é nada mais nada menos do que a realidade. Para cada torre impossível com engenheiros togados, há um batalhão de Untermenschen mortos, torturados, desaparecidos. O sonho dos engenheiros lhes permite cometer, sorrindo, mais uma empreitada colonial.

PS pra deixar claro que os problemas causados pelas hidrelétricas não são apenas invenção de esquerdista radical, aqui reportagens do Valor Econômico (jornal dos grupos Folha e Globo) sobre a opinião das populações urbanas próximas a Belo Monte e do Madeira. (A segunda reportagem abre com as palavras "Falar bem das usinas de Santo Antônio e Jirau não é uma boa estratégia de campanha para quem quer ser prefeito de Porto Velho.")


* A prova de que as hidrelétricas em questão não são financeiramente viáveis a baixo custo, como alegado,  é que, mesmo depois de anunciar um pacote de bondades (empréstimos com carência do BNDES, isenções tributárias, prioridades alfandegárias, transmissão digrátish), o governo não encontrou empresas privadas dispostas a investir; ao invés disso teve que pôr pra investir as subsidiárias da Eletrobrás, com as construtoras que estavam sendo pagas pela obra de sócias - num claro conflito de interesses. (Se a construtora-como-consórcio paga um quarto da obra e a construtora-como-construtora ganha por ela toda, tem interesse em aumentar ao máximo o preço.)

16.4.12

Religião no Brasil: evangélicos contra satanistas

Andei fuçando pelo banco de dados de religiões, e achei uns dados que acho que podem ser surpreendentes pra muita gente. Pra mim, foram.

O Rio tem mais agnósticos e ateus do que neopentecostais, e não muito menos do que a soma dos evangélicos. Não é o estado com mais evangélicos nem de longe (São Paulo tem um pouco mais de neopentecostais) - mas é o estado com mais adeptos de religiões afro. A periferia de BH é a que tem mais neopentecostais de todas as RMs. A Bahia é o quarto em religiões afro - atrás também de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Tem mais espíritas do que candomblecistas na Bahia (ou, pelo menos, mais gente que assim se identificou para o IBGE).

Outros dados são óbvios - por exemplo: os lugares com as maiores proporções de evangélicos e de sem religião são os mesmos.


% Pentecostais / % outros evangélicos / % soma dos evangélicos


Brasil 12,46 / 7,47 / 19,93
São Paulo (estado) 14,62 / 7,13 / 21,75
São Paulo (cidade) 10,67 / 8,66 / 19,32
Periferia da RMSP 16,19 / 9,17 / 25,36
Rio de Janeiro (estado) 14,18 / 10,66 / 24,84
Rio de Janeiro (cidade) 10,95 / 11,5 / 22,45
Periferia do Grande Rio 20,25 / 10,22 / 30,45
Minas Gerais 11,63 / 6,77 / 18,4
Belo Horizonte 13,44 / 10,47 / 23,91
Periferia da RMBH 24,48 / 7,62 / 32,1



Sem religião / religiões afro / espíritas / total "satânico"


Brasil 6,72 / 0,35 / 1,65 / 8,72
Rio (estado) 15,95 / 1,61 / 3,37 / 20,93
Periferia do Rio 23,68 / 1,99 / 1,97 / 26,64
São Paulo (estado) 5,99 / 0,42 / 2,3 / 8,71
Bahia 9 / 0,33 / 1,06 / 10,39
Periferia de Salvador 13,21 / 0,35 / 0,35 / 13,91
Rio Grande do Sul 5,45 / 0,94 / 2,85 / 9,24
Porto Alegre 11,8 / 2,17 / 2,97 / 16,94

12.4.12

Falsa Equivalência III

O senador Lindbergh Farias nos brindou com um discurso no qual alerta para o preconceito sofrido pelos evangélicos, deixando implícita a falsa equivalência entre este e a homofobia. O discurso - já criticado à exaustão pelos próprios companheiros de partido de Lindbergh - tinha a intenção de defender o pastor, milionário, e homofóbico Silas Malafaia, aquele que há menos de dois anos atrás dizia a seus correligionários que o PT de Lindbergh era a representação do diabo na terra. Não é desprovido de lógica política - afinal, a principal base eleitoral de Lindbergh, a Baixada Fluminense, é das regiões mais evangélicas do Brasil. Mas, compreensível e tudo, é de uma desonestidade intelectual que dói o fígado.

Primeiro de mais nada, é bom ressaltar que (como boa parte das falsas equivalências) a afirmação "existe preconceito contra evangélicos* no Brasil" está inteiramente correta. Existe mesmo, e é associado intimamente ao preconceito de classe, já que as igrejas neopentecostais se espalharam primeiro nas periferias e favelas das metrópoles, pouco assistidas seja pelo Estado seja pela Igreja Católica. O estereótipo é a empregada crente, não (como nos EUA) uma família de classe média crente. Não se trata apenas da reação ao extremismo religioso, porque não existe o mesmo preconceito contra católicos. Políticos Brasil afora rezam alegres em Te Deums sem serem chamados à atenção, e capelas católicas se espalham pelos palácios. Nossa Senhora Aparecida é feriado nacional; quando falam em instituir o dia do evangélico,** chora-se a morte do estado laico.

A mentira de Lindbergh, construída sobre essa verdade, é dupla. Uma de que o preconceito contra evangélicos motivaria os ataques verbais contra Silas Malafaia. Ora, o que motiva alguém a ter raiva contra Malafaia não é nenhum preconceito, é o fato de ele se destacar primariamente como porta-voz da homofobia e do preconceito em geral. O (milionário) pastor não é discriminado porque é crente. É atacado porque ataca, porque quer manter e aprofundar a discriminação que nega cidadania a milhões de brasileiros. A fala de Lindbergh é como dizer que ataques contra Hitler se baseiam no preconceito contra bávaros.

Mais insidiosa, porém, é a falsa equivalência construída pelo senador - que, como não é central ao aparte, pode ter sido inadvertida. Querendo deixar claro que também é contra a homofobia, Lindbergh equiparou-a ao preconceito contra evangélicos. Deu margem, assim, a um discurso maior, ligeiramente diferente, aquele que fala de "cristofobia." Ora, se o preconceito contra evangélicos é real (embora nem de muito longe se compare à homofobia), falar de cristofobia, no Brasil (em alguns outros lugares - como a Arábia Saudita - tudo bem), parece piada.

Há gente que fala mal do cristianismo, ou da religião em geral? Há, e tem gente que conheço que a ser chata de tanto fazer isso. Moralmente, suponho que possa ser dito que o preconceito contra um e outro, sendo equivalentes, se equivalham (é um grande "se," esse "sendo equivalente). Mas politicamente - que é o que interessa quando se passa para o debate público - o preconceito ganha uma dimensão que está bem longe da moral. Mesmo ignorando-se os efeitos legais, coercivos do preconceito, é muito diferente você ter um sujeito ou outro que bradam contra você (qualquer que seja sua identidade) de você ter uma organização sistemática da sociedade nesse sentido. Um sujeito te discriminando é um maluco preconceituoso; a sociedade te discriminando te torna um pária.

Não é "apenas" uma questão dos danos psicológicos e morais envolvida com essa exclusão. Ao fora-da-sociedade, são retiradas as garantias e direitos que aqueles que estão dentro da sociedade detêm. Em tempos idos, isso era legalmente codificado - e era considerado o equivalente a uma sentença de morte, cuja execução o Estado delegava a quem se interessasse. Hoje em dia, não há lei que diga que um homossexual pode ser morto sem que seu atacante tenha cometido assassinato. Não explícita, pelo menos. Perto disso, o pior que se tem do preconceito contra evangélicos (de novo - não contra cristãos***) é "crente é chato," ou "crente é brega."

*Ou, antes, contra neopentecostais, que é o que a palavra "evangélico," ou "crente," veio a significar para a maioria das pessoas. As igrejas protestantes históricas, como a luterana ou a metodista, não se encaixam no mesmo grupo, nem sofrem o mesmo preconceito. Nem exibem, na maioria dos casos, o mesmo radicalismo no preconceito - aliás, estão atualmente bem melhores do que a Igreja Católica.


**Admita-se que o tal dia é bizarro - gente que bate no peito para se dizer temente a Deus, que se autodefine primariamente por essa condição "elevada" de absorção no Divino... e o feriado que quer comemorar é homenageando a eles mesmos, não a Deus.


***A não ser que se concorde com os próprios evangélicos, para quem não-evangélicos não são cristãos. Não é por acaso que a palavra que oximoronicamente os divide de outras religiões é "crente," ou em bom inglês "christian."

11.4.12

White America

Depois da negra Luzia, agora são os brancos de Clóvis que invadiram esta budega de continente americano antes do povo da Sibéria (ou, talvez, da Polinésia), ancestral pelo que se crê dos índios. Assim já virou bagunça.

Explicando: desde idos tempos* se crê que a colonização das Américas pelo ser humano se deu a partir da Sibéria, que durante a era glacial era ligada ao Alasca por terra (bem, por terra e gelo - como ainda hoje é, às vezes, no inverno). A tese alternativa era a de que teriam sido colonizadas por gente que veio da Polinésia pulando de ilha em ilha, esbarra na idade relativamente tenra das tecnologias de navegação e construção de barcos polinésias;** apesar do Thor Heyerdahl provar que é possível a chegada de meia dúzia desgarrada não importa com que embarcação, probabilidades tênues não são muito satisfatórias como hipóteses de colonização. Não que sejam sempre descartadas - a idéia da "Eva," única ancestral da humanidade, que teria sido a única sobrevivente de alguma catástrofe, está aí para provar, e nasceu do mesmo conjunto de técnicas genéticas que levou ao descarte (quase) definitivo da teoria polinésia.***

A teoria cada vez mais sólida da origem siberiana de todos os ameríndios esbarra, aí está o problema, na morfologia dos ossos encontrados nos mais antigos sítios de ocupação humana do continente. Primeiro os de Lagoa Santa no Brasil, da "Luzia" (apelidada em homenagem à "Lucy" queniana), pareciam africanos. Agora, há quem diga que a cultura Clovis, nos EUA, e também incrivelmente antiga, era branquela; as teorias de povoamento passam por barcos desgarrados e pelo gelo ártico para os Clovis, e só pelo primeiro para as Luzias. Não é uma questão tão relevante para a história posterior, até segunda ordem; tanto quanto se saiba, Clovis e Luzias não deixaram tanta influência nos povos que lhes suplantaram. Fica o quebra-cabeça, cada vez mais intrigante, de sua saga, mas é uma curiosidade específica da pré-história, quase compartimentalizada, assim como os nórdicos ("vikings") que chegaram às Américas muito antes de Colombo não têm muita importância porque nem sequer suas doenças deixaram deste lado da poça, ao contrário do impacto quase apocalíptico da chegada espanhola.


Ou melhor, não tem muita importância pra quem pensa de maneira razoável. Para muita gente, do Canadá ao Chile a questão da “primogenitura” é essencial; não é apenas importante mas o que mais importa. Seja por uma perpetuação da mentalidade da época colonial, em que o primeiro europeu a chegar em algum lugar tinha um direito sobre ele, seja por razões conexas - e menos confessáveis.**** Provar que, ou bem brancos, ou bem representantes de civilizações avançadas haviam chegado em seu território foi uma preocupação que gerou, desde o século XVIII, incontáveis "evidências" dessas civilizações. Lendo sobre o tema, a coleção de baboseiras é impressionante. Até já explicaram que a tribo apomadoc seria descendente de um príncipe galês (ap Madoc).

Então, não deixa de ser irônico que atualmente se avente a possibilidade de que realmente os "primeiros" colonizadores das Américas tenham sido primos dos antepassados dos europeus atuais. Bem, pelo menos os primeiros colonizadores dos EUA, a cultura Clovis. A descoberta, infelizmente para os racistas de plantão, se dá depois que os Clovis já perderam há muito a primogenitura das Américas - e os sítios mais antigos de todos, em Lagoa Santa e na Serra da Capivara, foram ocupados por uma população com traços fisionômicos negros.

Já posso fazer a cara de troll?


*Desde os anos 30, na verdade, apesar de o primeiro a ter formulado a hipótese ter sido um jesuíta em 1590. Sim, 1590.

** Uns 4.000 anos.

***A saber, a análise cromosomial e as teorias de taxa constante de evolução molecular. Esta já tendo sido até exportada para a linguística.

****OK, menos confessáveis uma vírgula. O episódio da morte de Trayvon Martin prova que ainda há muita gente disposta a bater no peito e proclamar seu racismo.

4.4.12

Direito à memória

A discussão em torno da abertura dos arquivos da ditadura - ou melhor, do que sobrou deles, já que muitos foram queimados sem que ninguém fosse por isso punido - é geralmente posta em termos de justiça. A revisão da lei da anistia, tão temida pelos generais, não é objetivo explícito das comissões da verdade apenas por medo (ou estratégia, chamem como quiserem) da outra parte, porque o objetivo real é mesmo punir, ainda que apenas através da vergonha e do opóbrio públicos, aqueles torturadores. Não é tão forte a idéia de que os arquivos, não só os da ditadura, mas todos, deveriam ser pesquisados. O Brasil não prima pela conservação de sua história. A frase poderia parecer estranha, tendo em vista todas as discussões em torno da sua história, da ditadura militar à guerra do Paraguai, dos quilombos. Mas é que, assim como aquele historiador francês da III República descrito pelo Toynbee que dizia que os caminhos neolíticos já respeitavam as fronteiras do Hexágono, a França moderna (ao contrário do que fez todo mundo entre eles e Luís XVI), essas querelas apaixonadas prescindem da verificação.

O Brasil não é exatamente o país dos arquivos e arquivistas. Nossos grandes historiadores admirados (fora dos círculos profissionais) o foram por estabelecer teses que resumiam o caráter nacional (essa Kultur sempre em discussão, sempre elusiva), não por obras laboriosas e detalhadas. Com todo o respeito aos tijolões do Freyre, mas se trata do espírito em que a obra é acolhida - e é, claro, uma percepção subjetiva minha. Talvez por isso - e aí é uma questão objetiva - o Brasil sempre tenha sido pródigo com seus arquivos. Os milicos estão em boa companhia, sincrônica e diacronicamente: Ruy Barbosa, com a melhor das boas intenções, queimou arquivos da escravidão, e a Justiça brasileira se prepara para eliminar arquivos em massa, sob o grandiloquente nome de Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário.

Atente-se para a desculpa deste último para a fogueira: trata-se de fazer o que, de outro modo, o tempo faria, preservando "o importante." (Ou melhor, aquilo que um pesquisador contratado pelo tribunal, hoje, considera importante.) Não deixa de ser verdade, quando se constata o estado dos arquivos brasileiros em geral. A historiadora Laura de Mello e Souza, em seu "Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue"*, comenta sobre o choque cultural ocorrido ao, acostumada a penar em arquivos brasileiros, encontrou os bem-cuidados arquivos do India Office britânico. Na Alemanha, os nazistas queimaram livros em praça pública, mas em compensação (talvez querendo se afirmar perante uma burocracia estatal que lhes desprezava pela incompetência) mantiveram arquivos detalhados, se não muito bem organizados, de todas as atrocidades que cometeram.

Não são só os juízes que acham que manter arquivos é caro e inútil no Brasil, ou pelo menos que se pode escolher agora o que é importante. É, quando sincero, uma onipotência em relação à história futura curiosa; não creio que um inquisidor do século XVI fosse selecionar para ser preservado o caso de um maluco que dizia que o mundo era um queijo. E assim, quem for pesquisar sobre teatro de marionetes ou mesmo candomblé no Brasil encontra, frequentemente, mais fontes na Argentina - veja bem, não fontes na Argentina sobre a Argentina, fontes na Argentina sobre o Brasil. (São dois casos citados nas últimas edições da Revista de História da Biblioteca Nacional.) Fica a pergunta: até quando vai ser possível lutar pela abertura dos arquivos da ditadura, sem que estes tenham sido queimados por inteiro?

*Daria nome para duas bandas góticas fácil.

PS a mesma pergunta é válida para quem sugere riscar os generais-presidentes de seus numerosos topônimos. Até quando pode-se tirar os nomes do elevado e da ponte Costa e Silva, sem que tenha prescrito - ou que, num exercício muito mais amplo, tiremos também as Presidentes Vargas, Marechais Florianos, Dom Pedros...

PPS é curioso que os arquivos estejam envelhecendo mais depressa do que se renovam a cabeça dos generais. Aparentemente todos os presidentes democráticos, de Collor em diante, trataram o ensino nas Agulhas Negras ou na Ilha de Villegaignon como irrelevância a ser deixada a cargo dos militares, ao invés de uma oportunidade de formar um oficialato democrático (e minimamente competente). Quando Dilma fala hoje de renovar um instituto militar é o ITA, para formar engenheiros, mas das Agulhas Negras (ali pertinho do ITA, igualmente encravada no Vale do Paraíba) nada se fala.

3.4.12

Shining city on the hill

A hidrelétrica de Belo Monte, neste blog, é quase um Leitmotif. Apesar disso, acho que cabe esta nota, quase um mea culpa: é que, da última vez que tinha escrito sobre o assunto, tinha dado a Inês como morta, alegando que agora a construção da hidrelétrica, com a concomitante destruição da Volta Grande do Xingu, já era inevitável. Pois bem, os fatos se encarregaram de demonstrar que, se a construção da hidrelétrica e seus danos socioambientais eram inevitáveis, continua essencial denunciar o modo como essa construção se dá. Mais ainda, Belo Monte é quase um microcosmo, mais concentrado, das mazelas do Brasil. Assim, em Altamira, temos:

polícia se misturando ilegalmente a segurança privada em prol de empresas
imprensa fazendo vista grossa para atrocidades cometidas em prol de coisas que eles apóiam
autoridades locais fazendo qualquer coisa em nome do "desenvolvimento" que na verdade é...
expropriação do capital natural acumulado, com pouquíssimo da produção revertendo em ganhos locais


E por aí além. Mas outra notícia - bem menos impactante, bem menor, bem menos grave do que Belo Monte - me impressionou. Lida hoje, ou seja, com algum atraso. Ela é assim:

A orla de Bertioga corre o risco de perder uma das cada vez mais raras faixas de praia ainda não urbanizadas da Baixada Santista. Um novo condomínio que ocupará uma área de 3,5 milhões de metros quadrados - mais do que o dobro do Parque do Ibirapuera, na capital - está em processo de licenciamento ambiental. Caso seja aprovado, cerca de 660 mil m² de mata de restinga deverão ser desmatados para abrigar casas, prédios, hotéis e centros comerciais.



O Buriqui Costa Nativa pertence à empresa Brasfanta - dona de marcas alimentícias famosas, como o adoçante Doce Menor e o suco Sufresh - e foi apelidado por ambientalistas de "Nova Riviera de São Lourenço", por ficar a poucos quilômetros do tradicional condomínio de Bertioga lançado em 1979. Seu projeto, porém, é ainda mais ousado. A população fixa planejada é de 25 mil pessoas, mais do que o dobro da Riviera. Na alta temporada, o empreendimento deverá atrair até 56 mil pessoas, população maior do que a de todo o município de Bertioga atualmente.



O atual Código Florestal protege a mata de restinga, mas uma lei estadual prevê a possibilidade de se urbanizar lotes com esse tipo de vegetação desde que se preserve no mínimo 70% da área. É essa a justificativa da Brasfanta para pedir a aprovação do empreendimento, pois o projeto apresentado ao Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) destina 80% para a preservação ambiental. O Plano Diretor de Bertioga também não proíbe a urbanização ali e permite prédios de até 15 andares na área.



Ambientalistas ouvidos pelo jornal O Estado de S. Paulo, porém, são contra a concessão da licença. "Além do desmatamento, um condomínio desses atrai população no seu entorno, o que vai causar ainda mais impacto na região. É um projeto que vai mais do que dobrar a população do município", diz Carlos Bocuhy, ex-conselheiro do Consema. Bertioga é a cidade que mais cresce na Baixada - o salto populacional foi de 54% entre 2000 e 2010 - e a previsão é de que o crescimento continue, graças à exploração de petróleo.



Outra preocupação dos ambientalistas é o fato de a Baixada Santista ser uma das regiões que menos tratam esgoto - em Bertioga, apenas 59% dos detritos são coletados e o restante é despejado no mar. "Atraindo mais pessoas, o entorno do condomínio poderá agravar esse problema", diz Bocuhy. Além disso, o impacto viário deverá ser expressivo: 12,2 mil novas vagas de garagem.



A Brasfanta, por meio de nota, afirmou que a expectativa de moradores está superestimada e, mesmo assim, haveria uma concentração baixa para uma área urbana. A empresa disse também que a área a ser preservada vai garantir a conservação vegetal e de biodiversidade e o empreendimento ainda vai oferecer uma estrutura urbana sustentável para a população.


Por que ela me impressionou? Porque, justaposta à sobre Belo Monte, ela deixa claro que no Brasil formas de opressão de primeiro e terceiro mundo coexistem lado a lado. Não é tão lindo quanto se o condomínio e a marina estivessem lá em Altamira, mas é uma evidência de que temos tanto o desmatamento da colônia quanto o da suburbana metrópole, o pré e o pós industrial. Assim como temos a escravidão rural das fronteiras agrícolas e a escravidão urbana dos imigrantes "ilegais." Assim como temos obesidade e fome, crimes da abundância e crimes da carestia. Questões de direito à privacidade na Internet e de direito a não ter a casa invadida sem mandato. Direitos humanos tolhidos pela nova sociedade de controle e pelos velhos esculachos da polícia. Eu disse que Altamira é um microcosmo do Brasil? Pois o Brasil parece um microcosmo do mundo.

2.4.12

Orgulho e glória da imprensa nacional

O Globo fez, este ano, ao contrário do ano passado, e talvez estimulado pelo primeiro lugar mundial que coube a uma exposição carioca, uma matéria sobre a lista, divulgada pelO Art Newspaper, das exposições e museus mais vistos do mundo. A matéria é um primor de má reportagem. Seu momento mais impressionante é quando nos explica que

Diferentemente do que se poderia supor, a região Sudeste, principal eixo cultural do país, não domina as melhores posições da lista do Ibram. A segunda posição na lista, por exemplo, é ocupada por Inhotim, em Brumadinho (MG).
(Na versão online, a frase foi corrigida para "eixo Rio-São Paulo." Ficou o eixo, eixo.)

Além disso, não pergunta em momento algum por que o MASP e a Pinacoteca (que em 2010 ficaram cada com mais de meio milhão de visitantes) ficaram de fora da lista deste ano. Ou por que Ipiranga e Histórico Nacional foram incluídos, apesar de não serem museus de arte. Ou como foram selecionadas as cinquenta e oito instituições para as quais se perguntou os números, e por que quarenta delas se recusaram a fornecê-los.