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20.4.16

O estupro e o estupro de Jair Messias

A fala do deputado Jair Messias Bolsonaro chocou um pouco uma ou outra pessoa Brasil afora. Entendendo por uma ou outra pessoa praticamente todo mundo, incluídos até alguns de seus admiradores, e por "um pouco," muito. Mas - correndo o risco de ser desde já classificado como histérico, talvez, diria o diretor da Época, "doce," vou dizer aqui que ela é pior ainda do que parece. E idem a reação dos congressistas a ela, por tabela.

Vamos lá. A declaração:

“Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família, pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve, contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do Coronel Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”

Sim, ele elogia o golpe de 64. Sim, ele faz referência à esparrela da "escola ideológica comunista" (e nem foi o único, naquele circo domingueiro). Sim, ele fala do "foro de São Paulo," um bicho-papão de teorias de conspiração de anticomunistas histéricos. Sim, ele, enfim, elogia Brilhante Ustra, o torturador que enfiava ratos na boceta (não cabe eufemismo aqui. RATO NA BOCETA.) de adolescentes. Mas tem um detalhe que faz ser tudo muito pior: ao falar que está votando contra Dilma Rousseff, por Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, Bolsonaro faz a mesma operação que na abertura de sua declaração: ele equivale a ação anterior à atual.

Ora, se na primeira declaração ele está, com isso, dizendo que o que se passa hoje é um golpe, na segunda está dizendo que é uma tortura, um estupro. Ele está dizendo "estou aqui, junto com meus companheiros, simbolicamente, estuprando Dilma Rousseff de novo." Talvez não se deva dar grande importância ao aplauso entusiástico; era um ambiente de torcida de futebol, em que todo voto pelo Sim seria aplaudido, ainda que fosse lançado "em homenagem a Baalzebub, Senhor das Moscas, e a todas as Hostes do Qlippoth." Talvez fosse o caso de perguntar aos que aplaudiram se realmente curtiram a ideia de que o que estavam fazendo era um estupro ou só se empolgaram.

Que Bolsonaro, que já foi terrorista literal, se torne um estuprador simbólico não é muito de se admirar. Mas vem, junto com a reportagem da Veja que apresenta "nossa Grace Kelly," reforçar um quadro de violência simbólica contra a mulher, em que o machismo da sociedade é instrumentalizado para colaborar nos ataques à figura da presidenta - e, com isso, é de novo reforçado. Isso não é pouca coisa, e que vá até o elogio de um estuprador é preocupante. Inclusive é preocupante porque, ao contrário do que é imaginado e vendido, estuprador não é, na maioria dos casos, um louco saindo das sombras para atacar uma transeunte, mas alguém do próprio círculo, "ensinando uma lição." Boa parte nem considera o que faz estupro. Não é, como aquele outro egresso da ditadura, Paulo Maluf, pensava, questão de "desejo sexual," mas um jeito de pôr uma mulher no seu lugar. Vamos estuprar essa histérica até que ela se torne uma mulher recatada e do lar. (E nem é coincidência que, num Congresso esmagadoramente masculino, a proporção de "Sim" entre as poucas mulheres tenha sido menor, e mais ainda se descontadas as da bancada evangélica.)

Essa narrativa, machista e francamente misógina, não é, creio, fruto de convicção ideológica por parte de políticos (excetuados alguns) nem da mídia (quando do "doces histéricas," Escosteguy alegou que "não o tinham entendido direito," não encampou a misoginia). A mesma Veja que publicou a brincadeira da "nossa Grace Kelly" volta e meia fala de libertação sexual; outras revistas da Abril falam disso quase o tempo todo. É uma narrativa instrumentalizada contra a presidenta Dilma, porque vale tudo contra ela (o que não deixa de fechar o círculo; mulheres podem se libertar, mas talvez não ao ponto de ser presidenta). Só que não é tão fácil pôr de volta os monstros que tiramos da caixa. Bolsonaro tem, hoje, mais de um quinto dos votos da classe média e alta. Se isso não assusta um oposicionista (de Brasília ou do Jardim Botânico), deveria.

Aqui vai uma escarrada virtual, então, à memória do coronel Ustra, e de todos os outros torturadores que elegiam as mulheres como seu alvo preferencial, para puni-las não apenas pelo comunismo como pela insolência de saírem do lar.



15.4.16

A semântica e a matemática do impeachment

Morte em duelo do matemático Evariste Galois


Um dos muitos cabos de guerra em curso no Brasil refere-se à nomenclatura do processo de impeachment. É golpe, dizem os contrários; não é golpe, dizem os favoráveis ao impeachment. É uma batalha, claro, semântica. Nada "é" algo assim, naturalmente, como se numa língua adâmica pré-torre de Babel. E o processo de impeachment ora em curso no Brasil tem bons motivos para se utilizar como para não se utilizar a palavra "golpe" - mas esses motivos são secundários à utilização política das conotações associadas. Ninguém quer ser chamado de golpista. Para além dessa resistência pelos agentes ativos do impeachment, as (muitas) pessoas entre os que resistem em se associar a qualquer dos lados (ou que preferem apenas torcer, ficando de fora do embate direto) poderiam ser influenciados por uma nomenclatura mais inequívoca; ninguém pode ficar indiferente a um golpe, como a uma revolução.

Os que dizem que não é golpe, primeiro: alegam que todas (ou pelo menos a maioria) das formas da lei estão sendo cumpridas; que o Congresso tem a legitimidade democrática para tal; e que não será instaurada uma ditadura ou qualquer outra forma de governo distinta da de hoje; em suma, que o processo é similar ao do impeachment de Fernando Collor, que ninguém chamou de golpe. Os que dizem que é golpe questionam esses argumentos; alegam que seguir as formas da lei, deturpando-a para seus próprios fins conspiratórios, é golpe.

Não é um debate que vá se resolver de jeito ou de outro; como boa parte dos debates semânticos, no fundo argumentos classificatórios são irrelevantes, e é a posição-afinidade preexistente de cada pessoa que definirá a escolha de palavra. Pode-se fazer referência aos processos semelhantes que ocorreram no Paraguai e em Honduras, com debates semânticos semelhantes, divididos por linhas ideológicas semelhantes, e que restam insolúveis.  Pode-se verificar se os "condicionantes" oferecidos pelos que dizem que não é golpe porque não atende algum critério - digamos, a tomada do poder por militares sem chancela jurídica - estavam presentes em todos, ou na maioria, dos eventos políticos que chamamos de "golpe" na história. Pra nos mirarmos num só, que é mais simples: o golpe de 64 foi chancelado pelo Congresso, e o primeiro presidente após Jango não foi Castello Branco mas, como previa a Constituição, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzili; foi, também, alvo de silêncio sepulcral da parte do STF. Por outro lado, editou em uma semana o Ato Institucional, que basicamente era uma reforma constitucional por decreto, removendo várias liberdades civis e políticas.

Mas o que acho que pode ser dito, entretanto, é que, sendo chamado de golpe ou não, o que está em curso é um abuso da justiça; o uso seletivo e parcial da justiça e das leis para obter seus próprios fins. E a justiça pela metade, longe de ser meio caminho andado, é uma injustiça por inteiro. Uma pequena digressão para ajudar a entender por quê: em Slavery by Another Name, Douglas Blackmon explica como, através de leis severas contra atos banais, como "indecência" e "vagabundagem," o Sul dos Estados Unidos reimplantou gradualmente, no fim do século XIX, a escravidão. Apenas negros eram condenados por essas leis, e eles eram condenados a trabalhos forçados; o Estado, então, alugava prisioneiros para quem quisesse usá-los. Na prática, uma proporção enorme dos homens negros trabalhava de graça e podia ser comprado e vendido nos EUA do começo do século XX.

Esse é o caso reductio ad absurdum de como justiça seletiva não é justiça, acho. Ninguém vai dizer que "pelo menos parte dos vagabundos e indecentes foram presas, melhor seria prender todos, mas isso é melhor do que não prender nenhum." Porque fica patentemente óbvio que o que estava sendo punido não era a vagabundagem e indecência, mas ser preto. Do mesmo modo, Henrique Alves, por exemplo, parece ter a convicção de que o que se pune no Brasil de hoje não é ser corrupto, mas estar ao lado do PT (e desmente, de uma tacada, a ideia de que foro privilegiado, por sua vez, possa ser algo que torne o detentor particularmente imune à condenação).  Falando da Justiça como didática: não se está ensinando a não roubar, e sim a não ser, ou se aliar com, nada que pareça de esquerda. Se aplica à Lava-Jato, se aplica às pedaladas fiscais; se pedaladas são ou não condenáveis como crime de responsabilidade é uma discussão jurídica complexa, creio que definitivamente pedaladas sejam uma conduta reprovável. Mas o importante é que o mesmo Congresso que pretende impedir Dilma pelas pedaladas, na mesma sessão, aliás com o expresso fim de iniciar o processo, aprovou as pedaladas de FHC e Lula. Deixando muito claro, mais uma vez, que o que se está punindo não são as pedaladas. Voltando à didática: deixando claro que roubar e pedalar são OK, para quem não é de esquerda; o efeito é o contrário da justiça.

Essa, a semântica que explica por que acho que o impeachment é um erro. Agora a matemática, para explicar por que ele é certo:

As précondições do impedimento exigem que ele seja aprovado por dois terços da Câmera. Não é pouca coisa, o que faria supor que a defesa começasse em vantagem. Mas essa vantagem some rapidamente, quando se compara o que pode ser oferecido pelos dois lados aos deputados, e em que condições.

As condições importam, porque o valor de uma promessa é resultado duma equação, em que o valor original daquela promessa é multiplicado A) pela probabilidade daquele lado vencer, e B) pelas chances de, vencendo, honrar a promessa.  E tanto para A) quanto para B) Dilma está em maus bocados. A maioria dos congressistas acredita que ela será impichada. E todo esse furdunço começou justamente por conta da tentativa de Dilma de emplacar quadros técnicos no lugar de apaniguados políticos pela administração afora, inclusive em áreas "dadas" a aliados, que descobriram que só as teriam nominalmente. Dilma não é digna de confiança, no olhar de quem procura um cargo.

Outras considerações, menores talvez, mas que também pesam: C) as chances do vencedor se vingar contra quem apoiar o derrotado, e D) a quantidade de cargos que podem ser distribuídos. Aqui, de novo, Temer tem a vantagem. O PT não poderá se dar ao luxo de se vingar contra ninguém (não, nem Cunha. Aliás Pansera continua no ministério), e sacada Dilma ficam liberados os cargos ocupados hoje tanto pelos apaniguados petistas quanto pelos técnicos; isso faz com que o estoque de cargos à disposição de Temer seja quase o dobro do que pode ser oferecido por Dilma. Mais cargos, e o valor corrente de cada um mais valioso pelas razões expostas acima. O resultado final (que assume, é verdade, um Congresso cúpido e assustado) dá no terceiro presidente peemedebista pela via indireta em 30 anos.

PS a conta toda ignorou as chances de alguém - digamos, o Pactual, que bancou palestra com Moro, Marina, e Levy recentemente, ou a Fiesp do exército dos patos, tentar interferir nela. Afinal, ninguém imagina que uma coisa dessas seja possível. Ignorou, também, a outra impossibilidade de a Lava-Jato ser usada como peça de negociação, já que ninguém imagina que ela seja influenciável ou dirigida.

PPS a conta também ignora a possibilidade de deputados votarem segundo seu julgamento objetivo e consciente acerca da existência de crime de responsabilidade a ser punido.

AM1PS tudo vale em igual medida, obviamente, para o Senado.