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19.11.15

A utopia de mercearia

Os estragos do acidente industrial da Samarco, em Minas Gerais, que rapidamente foram reconhecidos como parte de um problema maior, com dezenas de barragens em condições semelhantes à que ruiu e os rios assoreados e poluídos em boa parte do território do estado, levaram muita gente a propor a tese de que é o capitalismo em si o culpado pela mineração predatória que acontece por lá. E, portanto, para resolver o problema da exploração predatória de recursos naturais - minerais em Minas, biológicos um pouco por toda a parte no Brasil - é necessário superar o capitalismo.  Ora, sem querer entrar nessa discussão (mas sou pessimista, e noto que exploração predatória de recursos naturais é algo que antecede, e muito, o capitalismo), acho que cabe observar que nem todo capitalismo é igual. O capitalismo brasileiro é de um tipo colonial, predatório e oligopolista, com relações intestinas com um estado brutal, cordial, e hierárquico. E bem, se "superar o capitalismo" é algo confortavelmente utópico, muito além do alcance de qualquer agente específico (imagino Dilma, encarnando a Dilma Bolada, tweetando "está decretado o socialismo em todo o território nacional") pelo que se pode bradar do conforto do Facebook sem imaginar jamais vê-lo realizado, corrigir, a partir da tragédia da Samarco, algumas das piores facetas do capitalismo brasileiro é algo que pode muito bem ser logrado.

Começando por baixo: o sistema de licenciamento e fiscalização ambiental no Brasil é, obviamente, longe de hiper estrito como frequentemente alegado, bastante leniente. Ou melhor: é esquizofrênico. Faz, em teoria, demandas até estritas, mas a falta de fiscalização (e inclusive de pessoal técnico para fiscalizar) significa, na prática, uma leniência extrema. E frequentemente ele é sensível aos argumentos da opção de saída, do "você não pode paralisar uma atividade que gera empregos." Ora, pode sim, se ela é ilegal. Por esse argumento, a polícia não poderia estourar uma boca de fumo. O que não significa sair fechando empresas a torto e a direito, mas significa, sim, parar qualquer coisa que represente risco inaceitável à população. No momento, estão em curso mais de uma tentativa de tornar esse sistema ainda mais fraco. Uma delas é o novo código mineiro, de interesse das mineradoras, inacreditavelmente defendido, entre outros, por Eduardo Cunha e Aécio neves usando como argumento o desastre da Samarco. 

Outra questão - passando da morte do Rio Doce pra morte do Xingu - é a conduta, tanto ao nível da legislação quanto ao da elaboração dos editais, do governo no que tange à implantação de obras de infraestrutura, especialmente as de eletricidade. Com a paranóia dupla da ameaça de faltar energia e da preocupação com a corrupção por empreiteiras, cronogramas curtos são estimulados, e não cumpri-los significa prejuízos maciços para as concessionárias. Pode ser isso, por exemplo, e não a mera cupidez irresponsável (sem descartar esta), que está fazendo com que o consórcio de Belo Monte esteja queimando as toras de sua área de desmate, ao invés de vendê-las. Toda represa hidrelétrica tem que desmatar a área que será morta pelas águas que sobem, caso contrário a vegetação, presa sob o lago, começa a gerar quantidades maciças de metano, resultando num lago morto e numa represa de energia renovável que emite mais gases de efeito estufa do que uma termelétrica do mesmo tamanho. No caso de Belo Monte, a floresta de transição amazônica que está sendo desmatada está coalhada de árvores nobres; florestas semelhantes são desmatadas para vender madeira o tempo todo. Mas a empresa, ilegalmente, porque o Ibama só autorizou a queimada de galhos e folhas, está queimando essa madeira ao invés disso. É só uma suposição, e com um bom planejamento provavelmente teria sido possível cumprir o cronograma e não queimar as toras, mas resta o fato de que a obsessão com resultados rápidos induz ao desleixo. O Estado, novamente, não é só omisso: ao demandar velocidade e ignorar o controle, é cúmplice.

Outra ainda: a legislação tributária brasileira, especificamente a lei Kandir - lei complementar 87 - não apenas não desestimula, como em diversos outros países, a exportação de produtos primários sem elaboração ou tratamento algum, como a estimula, isentando de impostos. E isenta a importação de bens de capital para a indústria mineradora. É isso mesmo: não apenas o Brasil permite a exploração maciça de minério como nem sequer ganha muito dinheiro com isso. As máquinas podem ser compradas alhures, os trabalhadores numa mina moderna são relativamente poucos, comparados à escala do empreendimento, não se paga imposto na exportação. E o problema ambiental disso é que, se não se paga imposto, e portanto o produto é muito barato de ser exportado como produto primário, não existe grande incentivo pra se maximizar a eficiência da mina. Por exemplo, tratando os rejeitos e recuperando a quantidade de ferro ainda bastante grande que existe neles, o que resultaria numa necessidade de barragens menor. O que seria uma boa, sem chegar a ser um bem puro e sem porém, solução  definitiva: os rejeitos mais tratados seriam mais tóxicos. Os rejeitos (muito mais tóxicos ainda, por serem de outros metais que não o ferro) da mina Gold King, no Colorado, cuja barragem rebentou em agosto deste ano, eram insignificantes em quantidade comparados aos da Germano, mas por serem mais tóxicos causaram um dano ambiental bastante significativo. Enfim, é mais um exemplo de como a legislação, no Brasil, o papel do estado, é antes apoiar e estimular a exploração em larga escala e predatória de recursos naturais do que limitar e conduzir esse processo. O Estado é um agente, um servidor da empreitada colonial, mais do que um Príncipe. 

Nem podia deixar de ser assim, dada a concentração de poder econômico existente no Brasil. Não só econômico - ortodoxias, ainda que radicais, predominam na maioria das áreas técnicas, cf. a manutenção dos juros punitivos pra impedir uma inflação que não é de demanda, há já umas duas décadas. Mas falemos do econômico: quando foi privatizada, a Vale do Rio Doce respondia por uma proporção bem menor da produção de minério de Minas Gerais do que hoje, quando a empresa e a economia de Minas se confundem. Foi absorvendo as concorrentes, cevada a créditos do BNDES (e à própria geração de caixa monstruosa, com a compra a preço camarada dos ativos durante a privatização), e sob um olhar benevolente do Cade. A ideologia de que devemos incentivar grandes empresas foi mais plenamente articulada sob a presidência de Lessa no BNDES, mas veio antes dele (a Ambev foi formada, com o beneplácito do banco de desenvolvimento, ainda sob FH) e sobreviveu à sua exoneração. Essa concentração de poder em uns quantos grupos empresariais significa, por sua vez, que o próprio Estado é vulnerável, por canais lícitos ou não, à sua pressão. Que governador cassaria a licença ambiental da Vale, com o ônus econômico que isso significa? E, claro, à medida que se desce as esferas de governo, a pressão vai ficando mais forte. O Estado brasileiro de que os médios e pequenos empresários reclamam é antes uma mãe para os grandes. Seria necessário, para melhorar não apenas as condições socioambientais de exploração mas a própria economia, reverter essa idéia de incentivo à formação de chaebols ou zaibatsus, e pelo contrário, começar a quebrar trustes. Até porque, convenhamos, se é pra fazer alguma comparação histórica, o Brasil se parece mais com os EUA do século XIX do que com o Japão e a Coréia do pós-guerra, em todos os sentidos. 

Um Sherman Act brasileiro pode não ser uma utopia. Mas que ajudaria, ajudaria. 


18.11.15

El Mayor del Mundo 2 - São Paulo Capital Mundial da Gastronomia

A idéia desta série é conferir as alegações recorrentes de que tal ou qual coisa é "a maior do mundo," que fazem com que os vizinhos do Brasil no continente riam muito do "país do más grande del mundo." As alegações são repetidas não só pelas pessoas, mas pela imprensa e pelos órgãos oficiais, sem nunca serem conferidas. Às vezes, por modéstia, se adiciona uma qualificação, temporal ou regional, virando o maior da América Latina, o maior do mundo à sua época, ou quevalhas. Para o número 2, algo que vejo volta e meia pipocar nos jornais da minha cidade de adoção:



São Paulo Capital Mundial da Gastronomia



Bem, primeiro: quem deu esse título a SP não foi alguma publicação ou concurso internacional, mas o próprio escritório de promoção de turismo do município. Não é exatamente uma fonte isenta... mas a pergunta, claro, é se o título se sustentaria de alguma forma, não importando que tenha sido autoconcedido. Então pra isso, acho, valeria tentar definir o que se entende por uma "capital gastronômica."

Se for pela quantidade de restaurantes de primeira linha, de elite, considerados dentre os melhores do mundo pelos gastrônomos, então... não. Assim, não apenas não, mas nem de longe. O guia Michelin diz que São Paulo tem uma dezena de restaurantes de uma estrela e um único (o DOM) de duas estrelas - o Rio tem cinco de uma estrela. Kobe, subúrbio de Osaca, tem mais estrelas Michelin. Paris tem quase uma centena. Tóquio tem 218 no total. É até fácil de entender isso: alta gastronomia depende de dinheiro, uma relação próxima da cultura nacional com comida, e ingredientes de qualidade. São Paulo até tem bastante dinheiro, mas muito pouco se comparada com as grandes cidades dos países ricos - Tóquio, em particular, tem um PIB comparável ao do Brasil inteiro, e Nova Iorque não fica muito atrás. Quanto à relação próxima da cultura local, qualquer visita à maioria dos restaurantes populares, ou mesmo mais sofisticados, na cidade vai ver é a repetição ad infinitum dos mesmos pratos, com os mesmos (e poucos) temperos. No Brasil metropolitano, se come arroz, feijão, e a proteína do dia, às quartas e sábados uma feijoada sem as carnes "esquisitas." E a maioria das pessoas acha qualquer coisa que fuja muito dessa toada esquisito, e esquisito é sinônimo de ruim.

Se for pela gastronomia de rua, se pode dizer a mesma coisa. No caso, o dinheiro é menos importante, mas a variedade de imigrantes de diferentes culturas pesa. E, de novo, se São Paulo nesse quesito se destaca no Brasil, quando comparada mesmo com uma cidade média de um dos países centrais, atratores de imigrantes, ou com uma cidade na África e na Ásia, com culturas diferentes vivendo mais ombro a ombro, perde feio. Há restaurantes libaneses excelentes, sem sombra de dúvida, e pizza idem. Mas também há coisas excelentes mundo afora, e a comida popular básica é aquele trio sem graça, hiper salgado e hipotemperado. Feijão, arroz, proteína animal. (O carioca que ainda sou se sente tentado a adicionar "e nem é o feijão certo," mas vou me conter.)

Conclusão: São Paulo poderia ser chamada, provavelmente sem isso ser muita bravata, de capital brasileira da gastronomia. Para almejar um título mundial parecido, ainda tem que comer - ou deixar de comer - muito feijão com arroz.

17.11.15

The Doce and the Xingu: a requiem for Brazil's rivers

Two rivers in Brazil have recently suffered a sort of death. They are not small rivers, by any standards: the Doce, which now lies buried under sixty-two million tonnes of ferruginous, toxic silt, is longer than Baudelaire's "Seine or the Green Loire," mightier than the Rhine, the, Colorado or the Dniepr, while the Xingu, almost thrice as long and ten times wider, flows into the Amazon with more water than the Ganges or the Yellow River. But their size is not the be-all and end-all of their importance to Brazil. In a sense, they can be said to have defined, in their aquatic persons and in their names, the country's twentieth century. In that sense, it is perhaps fitting that the 21st has seen their deaths.

Mud from Samarco's dam reaches a hydro station in the lower Doce


The Doce, or "Sweet" river's death has been catastrophic and surprising, or at least surprising to outsiders - environmental activists in the state of Minas Gerais might be horrified, but they are hardly surprised. An industrial accident:  a tailings dam at the São Germano mine burst, releasing its contents onto a tributary of the Doce, the Piracicaba river (a similarly-named river further south runs through the eponymous town, a haven for confederate refugees from the American Civil War). Besides the river, the village of Bento Rodrigues (pop. 600), and an unknown number of its residents, were buried under the mineral waste. It is, perhaps, hard to understand such a number - when one goes much beyond the dozens and scores of our direct experience, numbers acquire a phantasmagorical existence, and the average postindustrial citizen of the world has little experience with the massive scale of such things as open-cast mines and power stations.

The press - when it pays attention, for mining companies' pockets are deep - tries to make sense of it, as is its wont, with trucks, and cartloads. But there is a closer analogy: that with the discharge of great rivers themselves. The Amazon, the largest river in the world, flows through the Óbidos straits with 200.000m3 of water every second. Thus, the muddy mass that bore down on the villagers of Bento Rodrigues had, for those brief moments, the weight of several Amazons. Spread out over the Doce's valley, it still amounted to something closer to the river's full flood, at 2000m3 per second, than the 126m3 per second the drought-stricken Doce had in it at the time - a mass of water which certainly accounts, when it churned the riverbed, for the presence in downriver cities' drinking water of compounds which aren't present in the tailings of an iron mine, such as arsenic and quicksilver.

Yes, for the Doce was by no means pristine before this month's disaster, It runs through a landscape that has been amongst the world's most intensely mined since the XVIII century - indeed, through mines which gave the state of Minas Gerais its name, the "General Mines," The results of such mining have been paired with the result of extensive deforestation (and soil-handling practices developed in heavy European soils, for faint European sunlight, ill-suited to the light red soil and harsh sunlight of the tropics), of intensive urbanization without adequate sewerage, and of industrialization, to mean the Doce, like its neighbour the São Francisco, was already a sick river. A few days before the accident at the Germano mine, Governador Valadares, the largest city in the river, was already in a state of near-emergency thanks to the drought and the concentration of pollutants in riverwater.

Governments are no more immune to the power of mining money than the press, and there is reason to suspect foul play involved in the accident,which was, at first, talked about as if it were a natural disaster. For Brazilians, used to landslides and floods (most of the country's population dwells on hilly country that receives torrential tropical storms in summer), this was easy to understand; many still think rain and flooding are what happened. The Germano mine, of which only the smaller backup dams burst, is not generally talked about, only the dam itself. There is evidence of several warnings about all three dams' structural integrity, ignored by the state government when it authorized not only the mine's continual operation but for the dams to be piled higher and deeper with industrial tailings than they were built to contain. Samarco failed, as well, to implement a safety plan together with the village downstream. There were no alarms when the dam burst), only the sound of the rushing waters themselves. And even now, information about the main dam's chances of bursting, releasing almost ten times as much mud as has already been released, are few and far between, leaked rather than announced as they should be.



One of the construction sites of the Belo Monte dam
The Xingu's life and death both contrast greatly with the Doce's. Longer, coursing through a gentler, wider valley, the Xingu sits at the border between the mixed forest (which separates the Brazilian highlands' savannah from the Amazon forest) and the Amazon forest proper. The largest town on its banks could hardly be called a metropolis: it is Altamira, 140 thousand souls strong - 100.000 a scarce five years ago, before the Belo Monte dam's construction entered into its peak phase. The river, despite the impacts of deforestation and cattle raising, mining and agribusiness, remains wide enough to absorb all those. The land is still wild enough (though "progress" advances rapidly), its waters torrential enough. Here, on a river whose water can still be drunk without treatment, whose transitional nature means one of the highest fish biodiversities in the world, death comes slowly and announced, even celebrated by the authorities, rather than hidden. This death, too, has a date: December the 27th, 2012, when the Xingu was first torn away from its Volta Grande, or Big Bend, a scenario of rapids and remanses which served as a nursery for much of the Amazon's aquatic animals. into the dam's side channel.


Belo Monte from space. In black, to the right, the area which will become dry land.


Belo Monte's history has its roots in the military dictatorship which ruled Brazil from 1964 to 1985 with an iron fist, all the harsher when it closed around indigenous peoples and poor peasants. The dictatorship was obssessed with huge construction sites, whether those were useful (such as Itaipu, the dam in the south of the country which even today provides over 15% of its electricity) or not so much (such as the Rio-Niterói bridge, linking Rio with its eastern suburbs). Belo Monte's original plans, indeed, were of a far larger dam and even larger reservoir than the ones eventually implemented; the current dam is a "run of the river" dam, one which does not accumulate large quantities of water, with a reservoir just large enough to ensure an even flow. In a sense, the Xingu's problem is the opposite of the Doce's: thanks to the dam, silt will no longer flow from its upper reaches, nor will fish be able to migrate. It is a river cut in half. Almost as importantly, those 40.000 extra people, and the ones who will follow them, will intensify the proccesses by which the river's valley will become "developed." And development means wastes, chemical and human, means deforestation, means the ethnocide of traditional populations. Means death.

Thus, the deaths. But what is curious about those not quite simultaneous deaths is, as I mentioned at the beginnning of this post, that the two rivers could be said, in their names, to stand for two different conceptions of Brazil. First, the Doce: its name used to be in the full name of the corporation which killed it, Vale. Or, as it used to be called before privatisation, Companhia Vale do Rio Doce, the Company Of the Doce River Valley. First conceived by the American mogul Percival Faquhar, the company represented a dream of development - heavy, industrial development. Where there's muck there's gold, ran the old British adage. As recently as the early 90s, institutional propaganda for Vale still beamed about the "savage" indians whom it had to deal with before laying the tracks of the dedicated railway running from mines to port. Yes, for despite the building of some steelworks, and the name of the area along the river being "Metropolitan Area of the Steel Valley" (and not the Doce Valley), most of that iron was sent overseas. Development, wildly successful (Vale is the world's largest iron miner, and second largest mining company overall), remained focused on the, some would say predatory, exploitation of natural wealth, with minimal proccessing. And it remained being run from far away. Vale's offices are in Rio de Janeiro, the former national capital, not close to the mines and railways.

Here, too, the Xingu stands almost the opposite of the Doce. Because what the name brings to the mind is, rather, the work of the Villas Bôas brothers, explorers who told the wider world about the peoples who lived in the middle course of the Xingu (hundreds of miles upstream from Altamira and the Belo Monte dam). There, in 1961, a national indigenous park was created, 27.000km2, home to fourteen different ethnicities. Both the expedition and the park represented a sea change in the relationship between the Brazilian state and the land and its peoples, replacing predation with respect. A vision for the future which included pristine rivers instead of tailings dams.  It never became fully realised; today the Xingu park is an island in a sea of pastures full of cattle and soybeans planted by automated combines; during the dictatorship, not only were those incentivated by the central government, but even wilder visions of destruction were entertained. At one point, the Hudson Institute, a conservative American think tank, even proposed, and was taken up seriously, damming the Amazon itself - engineering on a truly titanic scale, which would create a sea larger than the Caspian in the middle of the South American continent. But the vision never went away either; Brazil's network of nature preserves and indigenous areas, to which were added in this century the areas occupied by maroon communities of ex-slaves, occupies a far larger proportion of the country's land than in any other large country.

The death-dirge of the two rivers, however, is a warning sign that Percival Faquhar's song is winning over the Villas Boas brothers'. Even now, there are several bills proposed at the national congress which aim to make it easier to mine despite the rights of traditional peoples and with less care for the environment; to limit the creation of new indigenous areas; to limit the creation of new nature preserves; to permit mining and other high-impact activities within preservations; to cut away swathes of preservations so new dams can be built in pristine areas of the Amazon. Those bills have the full or partial support of almost all relevant parties (there are 28 parties in Brazil's Congress, of which some ten have actual weight), including, for some of them, the centre-left Workers' Party, currently heading a tenuous government coalition - but if the government can broadly be said to be antienvironmental, the opposition is much worse.  The new, more corporation-friendly mining code, in particular, has been defended by both the Speaker of the House and the defeated presidential candidate from the rightwing PSDB using the Doce river disaster as a reason for its approval. That's not a typo.

It is hard not to see the death of those two rivers as a prefiguration of a more general massacre of all other rivers, from the sea-like Amazon to the smallest stream. But where there's life, there's hope: despite the best efforts of the organized press to make it a minor issue, public pressure has already resulted in Samarco being hit with the largest environmental fine ever, the largest preliminary bail ever, and quite likely paying for the entirety of the largest clean-up effort in the history of the country. If Brazil's rivers are to survive this century, we'll need that pressure. We'll need more Xingu parks. And, perhaps, we'll need less Vales, or, at least, less predatory ones. And for that, there's hope in the atomized, sometimes chaotic, even hysterical (there are people even now believing that a presidential decree freeing up social security monies for the disaster-struck somehow clears Samarco of any guilt) action of people on online social networks.

It's a sliver of hope. But it's hope.

12.11.15

Os presidenciáveis e a Samarco

Uma semana depois, temos  as seguintes declarações dos que queriam governar o Brasil sobre o maior desastre ambiental do século no país (bem, os três principais, e mais a Luciana Genro, que tem mais apelo nas chattering classes):

Dilma Vania Rousseff: 

Nós estamos empenhados, o governo federal e os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, em, primeiro: responsabilizar quem tem de ser responsabilizado. Uma empresa privada grande, Samarco, que tem como sócios a Vale e a BHP Billiton.
As empresas têm de ser responsabilizadas por várias coisas. Primeiro: pelo atendimento emergencial da população. Segundo: pela busca de soluções mais estáveis, mais perenes. Terceiro: pela reconstrução e pela capacidade de resolver os problemas da vida de cada um afetado por esse desastre.
Mas também tem uma outra questão, que diz respeito ao fato de que várias legislações foram, na verdade, descumpridas. Daí porque nós demos uma multa preliminar.
O que nós podemos fazer, o governo federal, diante da legislação vigente? Primeiro, multas; segundo: indenização; terceiro: procurar também o ressarcimento dos custos de reconstrução e os custos que digam respeito a todas as atividades que foram cessadas ou interrompidas.


Aécio Neves 


Sem transformar isso em uma questão política, de apontar o dedo para A ou para B. É hora de todos nos unirmos porque a tragédia foi enorme e é preciso que nos precavamos para que outras tragédias como essa não ocorram mais em nosso Estado. Não ocorram mais no Brasil.

O importante é que o governo federal se sinta também responsável ou co-responsável para dar a essas famílias atingidas e que perderam absolutamente tudo a possibilidade de um recomeço


Marina Silva: 


Tragédia ambiental em Mariana (MG) acontece justamente no momento em que governo e poder econômico pressionam pela flexibilização das regras do licenciamento ambiental, que pretendem evitar desastres como esse.


Luciana Genro


Este texto deixa bem claras as responsabilidades e conivências políticas em relação à tragédia da cidade mineira de Mariana, que foi inundada pela lama do rompimento de barragens das mineradoras Samarco/Vale.
A privatização da Vale ocorreu no governo federal do PSDB e agora assistimos ao governador Fernando Pimentel, do PT, dar até entrevista coletiva dentro da mineradora e protocolar projetos para flexibilizar o licenciamento ambiental em Minas Gerais.

A tragédia estampa as seguintes notícias nos sites de seus partidos: 


PT:  na "manchete" principal,

Mineradora responsável por desastre em Minas será multada em R$ 250 mi, diz Dilma


PSDB: uma notinha com

Enquanto mineiros de Mariana tentam se recuperar de tragédia, governo federal corta gastos de prevenção de desastres

 Rede: numa notícia grande,

Rede se solidariza com as vítimas da mineração na região de Mariana-MG

 PSoL: numa nota média com

"

 


 

9.11.15

A realidade não é verossímil II - Egil Skallagrimsson, o pirata-poeta troll

A idéia dessa série não é falar de pessoas excepcionais, cuja vida daria um filme. É de falar de gente que, se fosse personagem de cinema, seria considerada um bando de apelão. Das pessoas que fizeram de verdade coisas que você, vendo na tela, falaria “ah vá.” Enfim, daquele povo que fez a ficha no RPG da vida roubando muito, roubando forte, roubando rude. O segundo personagem histórico da série foi um poeta viking lobisomem. Bem, a parte do "lobisomem" era só superstição. Acho.




Egil Skallagrímsson, pirata, poeta, e pioneiro, tinha esse nome de urro de guerra e, dizem, uma cara mais feia ainda. Seu avô, Kveldulf, era chamado de lobisomem; seu pai, apelidado Skallagrím (caveira sombria), por muito tempo desconfiou que o amado filho mais velho, Thorolf, era filho do padeiro, digo do irmão (também chamado Thorolf), por ser bonito. Não é só nisso que ele é bem diferente da estrela anterior; viveu até provectos 91 anos de idade, e isso durante a idade Viking, aquele pedaço da história escandinava quase pré-histórico, quase medieval, que veio logo antes da cristianização. Foi das poucas figuras que não eram reis, fundadores de dinastias de chefes, ou quevalhas a ganhar uma saga pra si, e provavelmente a melhor delas, escrita por Snorri Sturlusson. Do mesmo jeito, os poemas dele, registrados na saga e aqui e acolá em outros textos, são considerados os melhores poemas de skald que sobreviveram.

Não só a feiura dava a reputação sobrenatural à família do velho Kveldulf; eles também eram, reza a tradição, meio sami, o povo que cavalga renas no extremo norte e que os noruegos viam como feiticeiros. A mesma tradição diz que o menino cometeu o primeiro poema (infelizmente não registrado, então não dá pra saber se bom ou ruim) aos três anos de idade, e teve o primeiro acesso de fúria berserkr aos seis. Berserkr sendo os guerreiros doidos vikings que, depois de comer uns cogumelos daora, mordiam o próprio escudo de vontade de entrar na batalha, e lutavam sem sentir as feridas até morrer. A maioria, ao contrário de Egil, morria bem cedo, pelo motivo evidente de que, se você não tá prestando atenção nas próprias feridas, seus inimigos estão. O primeiro assassinato foi aos sete, de um moleque que roubou no xadrez; ao invés de berrar que fulano estava roubandooooo, Egil simplesmente voltou calmamente pra casa, pegou um machado, e partiu a cabeça do outro ao meio. Coisa de nada. Quando o pai do menino veio reclamar, Egil (de novo: sete anos) desafiou o coitado para um duelo. Ganho. Com o mesmo machado.

Mais tarde, já adolescente, o moleque embarcou na sua primeira viagem comercial, em que foram hóspedes de um dos intendentes reais na mesma época em que o rei estava naquela casa. O intendente, Bard, tinha deixado os hóspedes num celeiro, mas o rei mandou trazê-los para o salão, com comida e bebida àvonts. Egil, longe de agradecer pelo upgrade, começou a fazer poeminhas insultando Bard pela sua avareza com os hóspedes; esses estão registrados, e são das coisas mais antigas de poesia escandinava conhecida. O intendente e a rainha, putos com o adolescente idiota que reclamava e ainda bebia como uma esponja, resolveram envenená-lo; Egil pegou o copo envenenado, declamou poema em que se autoatribuía grandes poderes rúnicos, e apertou até rebentar. Daí começou sua reputação de feiticeiro, à época quase tão grande quanto as de poeta e pirata. Daí começaram também as aflições de Egil com a família real, já que o passo seguinte do moço foi matar Bard e a rainha, fugir na confusão, empacotar as próprias armas e levá-las a nado para uma ilha deserta próxima (no meio da noite, no outono, no norte da Noruega), e ludibriar os grupos de busca que foram enviados, matando os três que o encontraram e roubando seu bote para chegar à casa de um lorde seu amigo. Dessa primeira rusga régia, conseguiu se safar pagando uma multa às famílias dos defuntos.

Já mais velho, conseguiu acumular uma vasta carreira de pirata, poeta, e duelista em todo o mar do Norte, do círculo polar ártico à Cornualha. Duelar, aliás, era algo em comum entre o feíssimo Egil e a bela Maupin: os dois duelavam por dinheiro, e se o cliente não tiver dinheiro tudo bem, vai por lazer mesmo. Num desses duelos, numa pendenga jurídica, Egil reparou que o outro era melhor com espada e escudo, jogou ambos fora, agarrou o oponente, e mordeu-lhe fora a jugular.  Noutro, ele enfrentou outro tipo de duelista que existia na Escandinávia da época: uma espécie de ladrão legalizado. No holmgang, o duelo nórdico, quem ganhasse uma causa jurídica através do duelo podia ficar com os bens móveis do defunto, e alguns faziam disso uma carreira, desafiando gente relativamente fraca para duelos com motivos pífios ou inventados. Ljot o Pálido, conhecido como um berserkr, um comedor de cogumelos alucinógenos devoto de Odin Senhor dos Enforcados, desafiou um menino de família amiga de Egil, e ele, chamado, prontamente foi lá para a briga, rachou o coco do berserker em dois, e cavalgou em direção ao pôr do sol cantando “I’m a poor lonesome cowboy…” ok, talvez essa última parte seja o Lucky Luke.

Eventualmente, procurando riqueza nas terras cristãs da Inglaterra (ele até fez um contrato de “cristianismo prévio” para poder trabalhar para o rei cristão e carola Athelstane) Egil foi capturado pelas forças do rei norueguês Eric Machado Sangrento, que era tão simpático quanto seu apelido. Inimigo de Egil desde a adolescência, o rei já tinha resolvido cortar-lhe a carantonha feia pra longe dos ombros, quando recebeu de Egil e de seu amigo Arinbjorn, que também era amigo do rei, uma oferta irrecusável: um poema laudando o rei, em troca da cabeça do poeta e de seus companheiros, mais um barco. O poema, o “resgate da cabeça,” é uma das obras primas da poesia nórdica até hoje; tem 20 estrofes de oito versos cada. Liberado, Egil voltou para o acampamento do rei Athelstane, e entregou a maior parte do tesouro para o amigo, que em troca lhe deu a espada Dragvandil (entre os nórdicos da época, tudo tinha nome. A espada fulana, a mesa sicrana, o vaso de planta beltrano, “vou comer a sopa com a colher Thurfynnjanngar e me sentar depois na poltrona-do-papai Gylfagynnigjur.”) Pouco depois, com a morte de seu filho mais velho, Egil trancou-se no quarto sem comer nem beber nada senão algas e água do mar, por uma semana, até que a filha, postando-se ao lado para fazer a mesma coisa, conseguiu tirá-lo da depressão com a promessa de morrer junto. O brutamontes parou de besteira pra não por em risco a filha que ainda tinha, e se livrou da depressão escrevendo um poema.

Já no final dos seus noventa anos de vida, cego e com dificuldade em andar, Egil pensou num plano genial para usar todo o tesouro que tinha acumulado: levá-lo à assembléia do povo islandês, e jogar para a multidão, pra ver em que briga ia dar. O filho e a nora conseguiram impedir, mas poucos dias depois ele arranjou um escravo e duas mulas, foi até um pântano ermo, enterrou o tesouro e matou o escravo. Porque com isso, explicou o velho pirata enorme com cara de lobisomem pra quem ouvia, estaria semeando muitas brigas e vendetas futuras; a última ação registrada dele antes de morrer foi essa trollada épica. Só pra completar, quando o cemitério local foi renovado, um século mais tarde, acharam o esqueleto de um homem grande, com a cabeça muito maior que a dos outros, e que na testa tinha linhas onduladas; tentou-se rebentar a caveira com um machado, sem que os golpes fizessem mais do que embranquecer a parte atingida (hoje especula-se que ele tivesse alguma desordem regenerativa óssea, que também explicaria a feiúra, e a cegueira e frio na velhice). Em resumo: o homem não era exatamente um pirata troll, era um feiticeiro-poeta-pirata klingon.


Estatísticas de D&D: St 19 Dx 15 Co 19 Int 18 Wis 11 Cha 14

6.11.15

A realidade não é verossímil I - A Maupin: o que os três mosqueteiros queriam ser quando crescessem

A idéia desta série não é falar de pessoas excepcionais, cuja vida daria um filme. É falar de gente que, se fosse personagem de cinema, seria considerada um bando de apelão. Das pessoas que fizeram de verdade coisas que você, vendo na tela, falaria “ah vá.” Enfim, daquele povo que fez a ficha no RPG da vida roubando muito, roubando forte, roubando rude. A primeira delas é uma mulher do século XVII que era basicamente uma mistura do James Bond com o d’Artagnan, só que com mais mortes e sexo envolvidos. Bisexual. No século XVII. Não que hoje em dia seja bolinho ser bi, mas imagina no século XVII.

Com vocês, a incomparável Maupin. (Sim, eu sei que falar “incomparável” é coisa de locutor de circo, mas lê que cê entende.)
Maupin by Beardsley






Julie D'Aubigny, aka Julie Maupin, aka La Maupin, era o que o D'Artagnan queria ser quando crescer. O gênero de capa-e-espada não é tão popular quanto já foi um dia, e os espadões medievais parece que substituíram os floretes, então não sei o quanto a referência faz sentido pra muita gente, mas... talvez lembrem do Dartacão. Enfim. Julie Maupin nasceu filha de um secretário do Conde de Armagnac em 1670 e morreu em 1707. Nesses 37 anos, foi espadachim, cantora de ópera, aventureira, e duelista profissional. Entre outras coisas.


O que é um duelista profissional?


É alguém que, quando você desafia um sujeito casca-grossa para um duelo até a morte, pode contratar para ir no seu lugar. Não é exatamente uma profissão segura... mas estamos pondo a carroça na frente dos bois. Julie D'Aubigny começou a ser diferente da maioria das mulheres abastadas da época, condenadas a uma vida acessória de bordados e fofocas, na infância - quando o velho Gaston D'Aubigny fez com que ela recebesse o mesmo tipo de educação que os meninos na casa do patrão, o conde de Armagnac, que era responsável pela educação dos pagens e escudeiros reais. O que quer dizer que a menina foi muito bem ensinada não apenas nas letras, matemática, e outros passatempos, mas também em coisas sérias: no labirinto de formalidades e informalidades rituais da Corte, na música, e a usar uma espada.


Aos quatorze ou quinze anos de idade - os relatos divergem - a menina seduziu o conde de Armagnac. Seduziu, é o que nos dizem, não "foi seduzida." E não, apesar de na época isso já ser jovem e não "adolescente," não era normal dizer que uma menininha de quinze anos de idade seduziu um dos maiores figurões do reino. Enfim, tornados amantes, o conde arrumou um marido para dar respeitabilidade à moça, o tal Maupin, de quem não se fala mais muita coisa nesta estória, porque afinal a única função dele era dar um motivo pra Julie acompanhar seu amante.


O romance não durou muito, e Sêo Maupin foi mandado de volta para a província. Já a Julie não curtiu muito a idéia de seguir junto, preferiu continuar em Paris. Vivendo de bicos como aulas de esgrima e a tal duelagem profissional. E, pra se divertir, sair na rua arrumando confusão e mais duelos, porque a vida só vale a pena ser vivida quando tem alguém tentando enfiar um espeto afiado de um metro e meio na sua barriga. Nessa vida pacata, ela encontrou um novo par romântico; outro valentão de rua, chamado Sérannes. Perseguidos pela polícia (aliás pela polícia inteira e pelo comissário de polícia, pessoalmente), foram obrigados a correr de Paris pra Marselha - na época a polícia não era exatamente nacional. Não tinha banco de dados. Nem a justiça; uma pessoa era criminosa em Paris mas em Marselha era livre.


Em Marselha, sem grana, sem tantos fidalgos bundões pra pedir socorro num duelo, o casal pra viver fazia apresentações de duelos e musicais, e às vezes das duas coisas juntas. Foi nessa época que, durante um duelo encenado, um mané da platéia gritou que era mentira que aquela criatura, vestida de homem e manejando uma espada, fosse mulher mesmo. Julie na mesma hora arrancou a camisa, mostrando os peitos, considerados depois os mais bonitos da França. (Outra coisa que ainda não existia: silicone.) Como ela cantava realmente muito bem, passou da estalagem ao teatro e à academia de Marselha (recém criada). Pouco depois, anunciou à platéia que tinha se cansado do Sérannes, e dos homens em geral. Rapidamente arrumou uma patricinha loira (pra contrastar com a morenice dela e compor quadro, nas próprias palavras), cujos pais horrorizados mandaram prum convento em Avignon. Sem problema; a Maupin entrou ela também pra ordem religiosa das carmelitas descalças, arrumou o cadáver de uma freira recém-morta, pôs na cama da menina, e tacou fogo no convento. Com o incêndio, o cadáver queimado e carbonizado foi identificado como se fosse da loirinha. Depois desse começo épico, no entanto, o relacionamento parece não ter dado muito certo; poucos meses depois, a menina apareceu, rejeitada, chamada de tediosa, e abandonada, na casa dos pais. E de volta pro convento. Pelo menos era uma construção novinha em folha...


Com o testemunho da ex-namorada, e a animosidade dos pais influentes dela, a Maupin foi acusada de meio código penal e condenada pelo tribunal de Marselha. Nova fuga, de volta a Paris, cantando e fazendo acrobacia pelas tavernas e estalagens. Numa dessas, arrumou briga com um nobrezinho que se achava bom de espada e seus amigos; desarmou os três (não se sabe se fizeram fila ou foram derrotados juntos) e enfiou a espada no ombro do garoto; arrependida, foi no dia seguinte perguntar como ele estava; novo romance alucinado e curto (ele foi mandado pra guerra na Alemanha). Próximo! Foi um cantor de ópera, na próxima cidade, Ruão. Com a ajuda do primeiro ex, o conde de Armagnac, e porque o rei quando leu as acusações todas se divertiu pra cacete, conseguiu acabar com as condenações e voltar a Paris, virando cantora de ópera. (Sim, no palco ela usava roupa de mulher; também, reza a lenda, só precisava ler uma vez qualquer libreto.) Aqui para a conta de amantes, porque ela basicamente passou o rodo na Ópera, atores, atrizes, e patronos.


Como ninguém era de ferro, e apesar do salário de cantora de ópera, a Maupin continou a fazer bico de duelista. Como duelo depois de um tempo fica chato, ela se especializou em duelos au mouchoir, ao lenço. Duelo "ao lenço" significa o seguinte: cada duelista pega uma ponta de um lenço de linho, mais ou menos de meio metro, com a mão esquerda. Na direita, uma espada um pouco mais curta que o florete, mas tão afiada quanto. Parabéns, toma aqui teu atestado de doido, e quem largar o lenço ou morrer primeiro perde. O fato do rei se divertir com as aventuras da menina (e provavelmente querer muito ser foda que nem ela) salvou ela de ser presa por conta desse trampo, ou por conta da vez em que ela, num baile real, agarrou uma condessa e derrotou (não se sabe se matou; como o caso foi no Louvre, nem chegou a ir pro tribunal) os três pretendentes dela, que ficaram putos com a falta de vergonha. (E com o gosto amargo de chupar o próprio dedão). A justificativa do rei foi que a lei dos duelos proibia eles apenas aos homens, e ela era mulher.


Por via das dúvidas, a Maupin resolveu passear um pouco longe de Paris. Em andanças Europa acima e Europa abaixo, foi amante do eleitor da Bavária em Bruxelas, e quando ele, que era quem mandava no país (que ainda não se chamava Bélgica), resolveu terminar o namoro e ofereceu um saco de ouro como compensação, Julie não se fez de rogada: jogou-lhe o saco na cara (literalmente. Ouro é pesado. Dói.). Foi dama de companhia em Madri, e quando cansou da duquesa escrota fez-lhe um penteado com nabos na parte de trás, invisível ao espelho, sucesso absoluto entre os não-tão-amigos. Ameaçou de morte outra duquesa se se engraçasse com Albert (o nobrezinho dois parágrafos acima; ele morreu na guerra  antes que pudesse por em perigo a vida de uma bela dama, muito nobre da parte dele). E assim por diante, Europa afora, até morrer, aos 37 anos de idade, ainda cantora de ópera e espadachim. Provavelmente pra seduzir as anjinhas e cair na porrada com os querubins.


Quem quiser mais informações, tem nesses sites:


http://www.corrieweb.nl/amazon/historica8.htm
http://www.eldacur.com/~brons/Maupin/LaMaupin.html



Estatísticas de D&D: St 14 Dx 19 Co 16 Int 14 Wis 6 Cha 19

5.11.15

El mayor del Mundo I - A Floresta da Tijuca é a maior floresta urbana do mundo?

A idéia desta série é conferir as alegações recorrentes de que tal ou qual coisa é "a maior do mundo," que fazem com que os vizinhos do Brasil no continente riam muito do "país do más grande del mundo." As alegações são repetidas não só pelas pessoas, mas pela imprensa e pelos órgãos oficiais, sem nunca serem conferidas. Às vezes, por modéstia, se adiciona uma qualificação, temporal ou regional, virando o maior da América Latina, o maior do mundo à sua época, ou quevalhas.

Para o primeiro artigo, resolvi começar com uma das que mais vejo:






A floresta da Tijuca é a maior floresta urbana do mundo.

E bem, esse é completa, terminantemente errado. Na verdade, a floresta da Tijuca não é nem a maior floresta urbana do município do Rio de Janeiro. Corrigindo: não é nem a segunda maior floresta urbana do município do Rio de Janeiro. O parque nacional da Tijuca, do qual a maior parte é floresta, tem 32km2. O maciço do Mendanha, entre o Rio de Janeiro e Nova Iguaçu, tem 39km2. E o parque da Pedra Branca, entre a baixada de Jacarepaguá e a Zona Oeste, tem nada mais nada menos do que 125km2, entre floresta montana como a da Tijuca e floresta alagadiça.

O que dá pra, contando, dar foros de verdade à alegação errada, entretanto, é que se você somar esses números, o Rio de Janeiro, como metrópole, pode alegar que tem a maior floresta urbana do mundo dentro de suas fronteiras, sim. Não é fácil de conferir essa alegação, porque o que constitui uma floresta urbana está longe de ser algo fixo e regulamentado. O que se pode fazer é conferir, em outras grandes metrópoles (pra caberem quase 200km2 de floresta dentro), o tamanho de áreas florestais completamente, ou pelo menos majoritariamente, cercadas pela mancha urbana. Assim, temos, em algumas das maiores cidades do mundo:

Rio de Janeiro: 125km2 na Pedra Branca, 39km2 no Mendanha, 32km2 na Tijuca, 43km2 em Niterói e São Gonçalo,
Tóquio: 66km2 em Kamakura, 15km2 em Musashimurayama,
Seul: 67km2 em Cheonggyesan e Gwanggyesan, 37km2 em Gwanaksan, 24km2 em Guri. 128km2.
Xangai: Enfiada numa das planícies fluviais mais densas e velhas do mundo, Xangai não entra na corrida. Só se for pra perder feio.
Hangzhou: Parque cênico do Lago Ocidental: 87km2
Hong Kong: Na ilha de HK, 43km2. Em Kowloon, 441km2 E nem chegamos em Shenzhen.
Nova Délhi: Southern Ridge Forest + Pusa Hill, 13km2, Margens do Yamuna 10km2
Moscou: Parque Ilha Losiny, 153km2. + Parque Bitsev 10km2
Paris: Floresta senhorial de Saint-Germain-en-Laye, 36km2. Diversas menores, total 20km2
Nova Iorque: Gateway National Recreation Area, 37km2. parque Richard W de Korte 15km2.
Chicago: Conjuntos de florestas no sudoeste: 105km2. Wampun Lake e Brownwell:10km2.


Enfim. Acho que deu pra pegar o espírito da coisa. O Rio de Janeiro certamente é uma das cidades com mais florestas do mundo, mas definitivamente não é a com mais florestas; essa palma provavelmente vai pra Hong Kong (que até se parece com o Rio, nos cenários de montanhas cheias de verde se erguendo do mar; a principal diferença é que, com um adensamento muito maior nas áreas ocupadas, mais dos morros foi preservado).

Bônus:

A Cantareira é a maior floresta urbana do mundo,  idéia propalada pela prefeitura de São Paulo pra se sobressair à custa do vizinho. Ao contrário da besteira carioca, repetida em sites de tudo que é língua, a paulistana é basicamente pra consumo interno. A resposta poderia ser muito simples: a Cantareira tem 60km2 de floresta. Olhem aí a lista. Acabou. Mas prefiro dar uma esticadinha, porque acho que tem duas questões interessantes pra se falar sobre isso

A primeira é que a Cantareira oficial tem 60km2, mas toda a área majoritariamente florestada a norte de SP tem uns 800km2, e eu não olhei, ali na lista acima, pras áreas oficiais, mas pra cobertura vegetal. Então São Paulo teria mesmo a maior floresta urbana do mundo... se não fosse pelo segundo ponto, que é aquela definição de que uma floresta urbana seria uma floresta cercada de cidade. Não é o caso. A Cantareira não tem São Paulo do outro lado. Ela é antes um green belt, um cinturão verde, e aí há diversos muito, mas muito mesmo maiores que ela. Como no caso da Tijuca no Rio, a Cantareira não é nem o maior green belt de São Paulo, bordejada a sul pelo conjunto de parques da serra do Mar, que vai de Santa Catarina ao Rio de Janeiro. (E que poderia ser dividido, portanto, por São Paulo e Rio.)


26.6.15

Cronologia do casamento gay na América

Pessoas de orientações sexuais diferentes podem se casar em qualquer rincão dos EUA, país mais populoso das Américas, a partir de hoje. O fato é comemorado, com razão, nas redes sociais brazucas. O curioso é que já vi até gente que desconhece que, no segundo mais populoso país das Américas, o casamento gay (sou muito velho pra escrever LGBTTAP) já é realidade faz anos. Nem houve montagem de photoshop com Dilma ou Sérgio Cabral (que, ao contrário de Obama, tinham relação com a decisão das Cortes) soltando arco íris das mãos. Pra ajudar a preencher essa lacuna, aqui uma brevíssima cronologia de Obergefell vs. Hodges (o caso americano) e da ADPF 132 (o caso brasileiro).


1830 - Com a edição do Código Penal do 1º Império, a homossexualidade deixa de ser crime. 

1962 - Illinois é o primeiro estado a descriminalizar a homossexualidade.

2003 - No julgamento do caso Lawrence vs. Texas, a Suprema Corte descriminaliza a homossexualidade em todo o território nacional. 

5/3/2004 - Casamento gay é legalizado no Rio Grande do Sul, por decisão do tribunal de justiça.

17/5/2004 - Casamento gay é legalizado em Massachussetts, por decisão da corte suprema estadual.

27/2/2008 - Governo do Rio de Janeiro entra com a ADPF132, ação no STF pedindo a equiparação plena entre casais hetero e homoafetivos.

1/9/2009 - Vermont é o primeiro estado a legalizar o casamento gay por decisão do parlamento.

5/5/2011 - União civil estável é reconhecida para todo o Brasil, no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ADPF132.

14/5/2013 - O conselho nacional de justiça esclarece que o julgamento da ADPF 132 significa casamento mesmo, e nenhum cartório pode se eximir de celebrar casamento gay.

19/7/2013 - O casal Obergefell entra com ação contra o estado de Ohio por não reconhecer seu casamento, realizado em Maryland.

26/6/2015 - A Corte Suprema dos Estados Unidos, no julgamento da ação Obergefell vs. Hodges, torna válido o casamento gay em todo o território nacional.

23.6.15

Lugares estranhos do mundo XIV - O império colonial suíço

Quem anda mundo afora, pode ver resquícios da colonização européia gravados nas pedras e no concreto, na arquitetura colonial que espelha a das metrópoles. Um dos maiores impérios coloniais, se espalhado aqui e ali, principalmente pelos lugares altos, parece ser, pelas casas, o suíço... 

Brasil, 1843. Petrópolis, a primeira capital planejada brasileira foi construída nas serras de onde se vê a antiga capital, o Rio de Janeiro. Era a "capital de verão," um lugar aonde se ia escapar dos surtos de doenças tropicais bem como do calor estafante. A historiografia tende a enfatizar o primeiro motivo, mas conhecendo as tolerâncias relativas do ser humano pra risco e pra desconforto, acho que os ternos de casimira inglesa e as criolinas foram pelo menos tão importantes quanto a febre amarela. Numa era em que não havia ar condicionado, nem a melhor arquitetura do mundo impedia que o verão no Rio de Janeiro fosse inviável para pessoas envoltas em camada após camada de tecido grosso, tecidos imaginados nas margens frias e húmidas do Canal da Mancha para vedar todo o corpo humano - pecaminoso - à vista alheia. É difícil exagerar o quanto os fatos e crinolinas vitorianos oprimiam o corpo, principalmente as segundas, e nem tô falando de uma constatação remota - já tinha poema zoando a monstruosidade na época. E se isso valia na frígida Gales, imagina no Rio Quarenta Graus.

O retiro nas montanhas, criado em boa parte pela necessidade de vestir os corpos com as modas de climas mais frios, buscou imitar também na sua própria "vestimenta," a arquitetura, e até nos trabalhadores importados, as montanhas européias. Assim começou a tradição brasileira da arquitetura conhecida como "enxaimel," ou se preferir um nome mais descritivo "imitação de casinha suíça." (Na própria Suíça, na mesma época, edifícios públicos eram construídos em estilo neoclássico francês.) Talvez não bem da Suíça, vejam bem, mas de algum lugar frio, rico, e pitoresco. As vigas de madeira vedadas com taipa de mão eram fakes claro, e os telhados angulosos nunca viram um cristal de neve sequer. No Brasil, além de Petrópolis, pode-se ver muito dessa arquitetura suíça em Campos do Jordão, esta já cosntruída para ser ocupada no inverno, em busca do friozinho "europeu" que não há em São Paulo. (E até São Paulo pode ter ganho a proeminência que ganhou, pelo menos em parte, porque em Campinas ou Santos é impossível usar a tar da caxemira inglesa.) Uma sucessão de setas apontando para o céu da identificação européia.

O Brasil, claro, não é o único país periférico a sonhar com os alpes; há lugares em que a imitação da Suíça encontra neve, nem que seja para polvilhar os telhados de vez em quando. Assim, um dos maiores impérios do mundo, no século XIX, era governado, seis meses por ano, das alturas do Himalaia (2500m, mais que o dobro de Petrópolis ou CdJ), em Shimla, capital de verão do Raj. Assim como na capital brasileira, a indiana, quase quarenta anos depois, não é só suíça; o orgulho pátrio (ou quase pátrio), lá como cá, determinou que o próprio palácio do governo fosse erguido no estilo "nativo" das respectivas metrópole e ex-metrópole. (Hoje, o palácio imperial de Petrópolis é um museu, o palácio vicereinal de Shimla um instituto de estudos avançados. ) Mas a Suíça está lá, seja na prefeitura




Ou no hotel




Se as cidades imperiais ornaram-se desses lederhosen arquitetônicos com alguma (não muita) parcimônia, imaginem aquelas que, como Campos do Jordão,



 são apenas resorts nas montanhas? Bariloche talvez seja o exemplo mais conhecido dos brasileiros,



 mas como ela há mundo afora. O Thomas More College, na África do Sul, é um exemplo


assim como esta casa em Sydney



Até em lugares que escaparam inteiramente à colonização européia, como Nikko, no Japão; a cidade, que é patrimônio da humanidade pelos túmulos dos Tokugawa (eles mesmos um exemplo de arquitetura imitativa - no caso, chinesante) 


, conta com uma estação de trem um pouco mais antiga, à inglesa,



 e uma mais nova que não faria feio em Joinville:


 Esta, aliás, é um exemplo de como o império colonial suíço desceu as montanhas; se em Petrópolis falta neve, em Joinville falta, pela maior parte do ano, sequer uma temperatura em que comer fondue não seja risco de vida. Mas os pontiagudos telhados enxaimel estão lá, ornando até edifícios. 


e em Blumenau, de novo a prefeitura



Aqui um mapa das altitudes no império colonial suíço:


2.2.15

Dilma, o Alckmin de amanhã?

A seca que assola o Sudeste do Brasil pode - provavelmente será - a primeira de muitas, num país mal posicionado para enfrentá-las ou mitigá-las. Nesse sentido, a debâcle da Cantareira pode ser uma prefiguração do que espera o Brasil inteiro...

Este post precisa de duas ressalvas enormes.

Primeiro, a relação inequívoca que faz a atual seca ser culpa do desmatamento amazônico, atribuída ao pesquisador Antônio Nobre por uma imprensa sôfrega de espalhar as responsabilidades pela Cantareira, não é feita no relatório dele, até porque não poderia mesmo, nem na sua apresentação ao público. Atribuir um caso específico de fenômeno climático a um processo de alteração global é impossível, mesmo num trabalho de divulgação, de propaganda, que não se pretende ao rigor de trabalhos mais técnicos. O número de variáveis, em diferentes processos, muitos deles estocásticos, é grande demais; o que os modelos descrevem é o progresso geral, não cada ponto específico. O que o relatório fala, o que é quase certo, é que teremos mais secas assim no futuro que tivemos no passado. O que outros relatórios, os do IPCC, dizem é que teremos mais secas assim no futuro do que tivemos no passado, no sudeste brasileiro, por conta do aquecimento global. E os dois não se somam, se multiplicam (e pra piorar, ao contrário do Antônio Nobre que pretende soar um alerta, o IPCC é ridiculamente conservador nas suas estimativas; é provável que a coisa seja pior). Sinceramente, isso é muito mais importante para a discussão do que as causas da atual seca: as causas das futuras secas, que ainda podemos mitigar. Para a atual, a Inês já é morta,
Secas do rosto as rosas, e perdida
  A branca e viva cor, co'a doce vida.

Segundo, é óbvio que, apesar do título, Dilma não é a única responsável pelo que ocorre no meio ambiente no Brasil. Pelo contrário, pelo menos parte da estagnação ou reversão de 2013 (revertida por sua vez em 2014, indicando antes uma estabilidade) na queda de desmatamento ocorrida no período 2004-2010 é atribuível ao código florestal, cuja aprovação, em que o PT foi o único partido grande a votar contra, foi celebrada como derrota da presidenta. E, como podemos ver no gráfico abaixo, o desmatamento caiu sob o PT, e muito. Mesmo com o aumento pós-código florestal, ele ainda é uma fração do que era antes, que dirá da tendência apontada até 2004. (De novo, o PT não é tampouco o único responsável por essa queda, apesar de no caso ser o principal.) Se as coisas estão ruins, imagine como estariam com uma década de desmatamento aos níveis de 2004, ou pior ao dobro desses níveis?


Ressalvas feitas, a questão é: o Brasil, assim como as primeiras civilizações no Oriente Médio, no norte da China, no Paquistão, é uma civilização hidráulica. Enquanto a maioria dos países no mundo puxa sua energia elétrica de usinas térmicas, aqui são as hidrelétricas as principais. Nosso maior produto de exportação são os frutos da terra, o que também é chamado de exportação de água. Nossos rios, pelo menos nos planaltos e morros cisamazônicos, são hoje quase todos escadinhas de represas. E como essas primeiras civilizações, cercadas de desertos e se aninhando junto ao Indo, ao Huang Ho, ao Nilo ou o ao Tigre-Eufrates, é uma civilização hidráulica em que a água não abunda. A declaração, a princípio, parece um despautério. É só ver no Google Maps o contraste entre o Brasil verdejante e as áreas no entorno desses rios; o Nilo, em particular, é uma tripa verde em meio ao deserto, a fronteira tão nítida que poderia ter sido talhada a faca; não é por acaso que do deserto vêm os deuses terríveis dessas civilizações, os Apshai e as Lamias e Set o terrível, o estrangeiro de cabelo vermelho e cabeça de hiena, que fez em pedaços Osíris, deus morto da ressurreição do grão. Mas porém todavia entretanto, algumas diferenças nas civilizações em questão fazem com que essa seja uma declaração até conservadora. Tebas a gloriosa, cidade das mil portas, não tinha a população da Vila Mariana ou Copacabana. São Paulo fica, não no curso médio do Tietê, mas em suas cabeceiras, assim como outras metrópoles brasileiras. A água no Brasil depende do delicado equilíbrio dos rios voadores para continuar caindo do céu. E a maior parte da energia que supre a civilização industrial brasileira vem de barragens. Manter e aumentar a disponibilidade de água, longe de ser frescura de ambientalista, deveria ser das prioridades principais de qualquer governante. Temos pouca água, teremos menos no futuro.

Temos menos água porque a geografia do Brasil é tal que, sem a Amazônia e seus efeitos peculiares no clima, a maior parte do país seria semiárido ou (bem menos provavelmente) até desértico. As montanhas íngremes da Serra do Mar bloqueiam a vinda de umidade marinha para o planalto; as chuvas copiosas que caem sobre o vale do Paraná vão escasseando à medida que se sobe para o norte, justamente por serem copiosas no início; a própria Amazônia se situa próxima do grande cinturão global de desertos. A questão é que a grande floresta tropical respira, transpira, evapora água; uma quantidade imensa de água, superior ao próprio volume do rio-mar. Com isso, a chuva que vem do oceano, ao invés de se gastar, como na subida do Paraná, vai é se retroalimentando, até escorregar pelos vales dos grandes afluentes da margem direita, e com isso chegar ao planalto. (Mais chuva ainda bate nos Andes, fazendo da floresta peruana dos lugares mais úmidos, e biodiversos, do planeta.)

E, apesar do mapa abaixo em que boa parte do Brasil tem estresse hídrico fraco (a manchinha vermelha adivinhem aonde é), isso não reflete a realidade das grandes cidades brasileiras que, pelos caprichos da história, não ficam em sua maioria junto a grandes cursos d'água, mas bem pelo contrário, nas cabeceiras dos rios, em que eles ainda são pouco mais que riachos, ou em baixadas litorâneas estreitas, cujos rios são igualmente pequenos. O Tietê em São Paulo mal saiu de sua infância encachoeirada antes de ser canalizado; o Anhangabaú, junto ao
qual foi construída a vila, hoje desapareceu, como desapareceu o primo Carioca (este fica sob a rua das Laranjeiras). Estão enterrados sob as avenidas, são apenas galerias pluviais a mais. Do mesmo modo, estão nas cabeceiras, equilibradas sobre as montanhas (mesmo - a altura média das grandes cidades brasileiras do interior é maior do que a das grandes cidades suíças, japonesas, ou checas) logo aonde começa a expedição de descida da Serra do Mar, além de São Paulo, Curitiba,  Campina Grande, Garanhuns, Caruaru... E nas pequenas baixadas litorâneas estão quase o resto todo - Florianópolis, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, João Pessoa...  e sempre temos as cidades erguidas como capitais no planalto, como Belo Horizonte, Goiânia, ou Brasília; nenhuma dessas cidades tem água disponível próxima em grandes quantidades. Vitória, relativamente próxima da foz do rio Doce, as capitais alagoana e sergipana, próximas do São Francisco, Porto Alegre junto ao Guaíba, são exceções à regra. A falta de grandes rios por perto não era  problema quando essas cidades nasceram, com as chuvas abundantes; os riachos e ribeirões bastavam. Hoje, não se pode dizer a mesma coisa, com milhões e milhões de pessoas a circular por metrópoles, sem nem falar das exigências da indústria. Na megalópole do Sudeste, que se estende de Campinas a São Gonçalo, o alto Tietê e os alto e médio Paraíba alimentam mais de quarenta milhões de bocas, fazendo com que a disponibilidade de água por habitante seja comparável à do semiárido ou até pior. Outras precisariam de canalizações ainda maiores para buscar água de rios caudalosos - e para uma definição ampla de caudalosos. O Paraíba já caminha para, como o Colorado nos EUA ou o Huang Ho na China, chegar ao mar só em ano bissexto, ou por benemerência ocasional de seus gestores. Pra piorar as coisas quase à tempestade perfeita, o ciclo natural tridecenal da chuva na Serra da Mantiqueira acaba de se inverter - isso é, teremos três décadas secas, depois das três décadas úmidas que tivemos entre 1979 e 2013 (a rigor, a seca chegou até um pouco atrasada). E essas são as chuvas que abastecem São Paulo e, em menor escala, o Rio e Belo Horizonte. Mesmo sem a acumulação formidável de maustratos, portanto, a Cantareira teria menos água para nos oferecer nos próximos trinta anos.




Ao invés disso, a sinalização é de governos - em todos os níveis - fazendo a coisa piorar. Depois do breve interlúdio em que os índices de desmatamento caíram não só na Amazônia mas também no sempre ignorado (às vezes até explicitamente sacrificado) Cerrado, o futuro é de menos mata, e portanto menos água. Só na "nova fronteira" do Cerrado nordestino, ou Mapitoba, a previsão é de um milhão de hectares de nova área agrícola na década de 10.  O novo código florestal causa uma área de desmatamento do tamanho das Ilhas Britânicas só na Amazônia; mais diretamente em relação aos cursos d'água, ele reduziu a faixa de proteção da floresta ao longo deles, a mata ripária. A bancada ruralista parece bêbada com o próprio poder, cega pelo ódio a quem lhe queira impor limites, porque isso tudo significa o fim da própria agricultura de exportação num horizonte de tempo que não chega a ser secular. Não é que ignorem as descobertas científicas, tanto as recentes, caso dos rios voadores amazônicos, quanto as mais velhas que matusalém, como a importância da floresta ripária para a preservação dos cursos d'água (havia leis protegendo matas ciliares com esse objetivo, pelo menos, desde o império romano, que já via os efeitos da devastação na árida orla do Mediterrâneo); nem é a água o único benefício de se manter matas entremeadas às culturas - o consumo necessário de pesticidas, por exemplo, chaga em que o Brasil é campeão mundial, pode ser reduzido substancialmente pela presença de um matinho próximo, em que predadores naturais das pragas da lavoura podem se multiplicar. Pelo contrário, utilizam-nas, sempre que possível; longe da imagem tradicional do latifundiário, coroné da guarda nacional, o agronegócio brasileiro é hoje um negócio, capitalizado (com a ajudinha centibilionária do Banco do Brasil), moderno, que utiliza tecnologia de ponta. A questão é de ocupação de espaço, ideológica apenas como reação à ameaça percebida mesmo; esmagar o inimigo que ousa limitar seu poder. OK, nesse sentido ela se parece com o coroné. E a bancada ruralista é fortíssima, maior que qualquer partido; tem 120 parlamentares hoje, e deve ter 158 a partir do ano que vem. Mais coesa, também, que a maioria dos partidos; ao contrário das demais bancadas que nem sobre os seus temas de base votam sempre alinhadas, a bancada ruralista inclusive negocia com partidos e governo.

Se a bancada ruralista garante a proteção aos particulares que desmatam, o governo avança para a Amazônia fazendo mais barragens, a ferro e fogo, e as estradas abertas, os operários carreados para as obras, abrem novos clarões na Amazônia, sem nem contar a inacreditável ajeitadinha nas reservas de proteção ambiental do Tapajós. De novo, para isso a ideologia parece contar mais do que a lógica. Afinal, se há um consenso científico prevendo clima mais seco, situação agravada com a construção da hidrelétria, essa situação vai afetar a própria produção de energia da hidrelétrica. A solução gernsbackiana já é apontada pelo setor elétrico: parar com essa estória de hidrelétrica a fio d'água, sem reservatório, e voltar a inundar grandes lagos para regular a vazão dos rios amazônicos e armazenar energia; uma das desculpas é uma preocupação com o aquecimento global que soa oca quando sabemos que hidrelétricas tropicais têm o potencial - especialmente quando o desmate não é bem feito, como ocorreu recentemente no Mato Grosso - de, ao contrário, liberar tanto gás carbônico quanto usinas térmicas a carvão. Ainda pensamos localmente e agimos globalmente, invertendo o aforisma; ainda pensamos, em outras palavras, como se o Brasil fosse uma terra de infinita abundância. Não é.  É uma terra em que um exótico e frágil mecanismo mantém uma quantidade de água razoável. Razoável, apenas; no Brasil cisamazônico, lar de 90% da população e um terço das águas, nunca foi tão abundante quanto parecia. O Brasil é a São Paulo de amanhã porque corre o risco real de se ver sem água e sem solução. É tanto mais curiosa essa despreocupação quanto o Brasil agrário sonhado pelo Congresso e o Brasil industrial sonhado pelo Executivo necessitam, ambos, de vastas quantidades de água - a carestia em São Paulo já está afetando até, por tabela, a indústria da Suécia. Não é apenas gente, essa coisa sem importância, que vai morrer de sede; o PIB também. O reflorestamento é urgente, e está tão longe de ser coisa de ecoativista hippie na fefeléchi que já é praticado até pelo governo chinês (com resultados dúbios, é verdade).

Alckmin quebrou a Cantareira. Pode ser que ainda assistamos, antes de morrer, à quebra do Paraná. A responsabilidade será mais difusa, é verdade, com vários atores e não um só, o que ajuda cada um a fingir que não tem nada a ver com isso. Sem muita pressão da sociedade, quem vai ganhar politicamente será a bancada ruralista - logo antes de perder, junto com todo mundo, num apocalipse que deixará o dust bowl americano parecendo bolinho. Cupcake, vá lá. Não que essa catástrofe venha de uma vez; o que vai acontecer, o que já está acontecendo, é uma mudança gradual dos padrões. Já estamos pra terceira seca entre as cinco maiores do século, nos últimos 15 anos. (E para uma possível catástrofe urbana sem precedentes na maior cidade do país, apesar disso não ser bem culpa só da seca.) Mesmo com todas as soluções de engenharia possíveis tendo sido tomadas - linhas de transmissão, construção de térmicas complementares, integração do sistema - o ONS já fala em blecautes programados na madrugada durante este verão; em São Paulo, já se fala, como nos desertos, em reaproveitamento de esgoto (espero que tratem antes - hoje o efluente das ETEs da Sabesp é secundário, impróprio até para uso industrial; o tratamento a nível de consumo, por outro lado, custaria mais ou menos a mesma coisa ou menos que o plano atual de puxar água de novos mananciais, nas bacias do Paraíba e do Ribeira). Assim como o sapo que pula ao ser jogado no caldeirão fervente, mas deixa-se ferver mansamente quando vão aumentando a temperatura, nós humanos não somos bons em responder a processos graduais. É da boca de um personagem que pertence ao dust bowl que  saem as palavras que, no futuro, poderão ser ditas sobre a preservação da floresta, e portanto da água, no continente sul-americano:

Of all the words of mice and men, the saddest are 'it might have been.'