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2.12.10

De Bello Niveadomensis

A "guerra" ao tráfico no Rio de Janeiro tem gerado reações extremadas que, de par a par, me incomodam um pouco. Que a reação (amplamente majoritária) de aplauso à guerra, com direito a muita gente lamentar que não tenha havido um massacre, me incomode parece óbvio; aliás, que incomode qualquer pessoa com um pingo de humanidade e um tanto menos de medo. E quando falo de gente lamentar que não tenha havido um massacre, estou dizendo que muita, mas muita gente mesmo me disse coisas como "deviam ter lançado uma granada naquela fila de bandido saindo da Vila Cruzeiro" ou "deviam ter usado a metralhadora do tanque e feito carne moída de traficante."

Parêntese: as pessoas que falaram o segundo absurdo incorrem além do mais num erro bastante comum entre quem não tem experiência direta da guerra moderna; subestimam drasticamente o poder destrutivo de armas de guerra. Se você ligar uma ma deuce .50 no meio de uma favela, avise o IBGE para só fazer o censo depois, porque a conta populacional vai mudar. Um blindado leve como o ACAV usado no Alemão pode levar tiros de fuzil, que atravessam paredes de prédios, literalmente por anos sem incomodar quem está dentro (fora o barulhinho de martelinho na lataria), e uma .50 fura ele.

Mas o outro discurso (que dou graças a Deus por ter ouvido mais do que a média das pessoas no Brasil) também me pareceu falho. Muita gente, inclusive muita gente qualificada como Luiz Eduardo Soares e Marcelo Freixo, tem repetido algumas "obviedades" sobre a guerra ao crime que me parecem que prescindiram da análise sobre o que está acontecendo para falar a resposta-padrão. São comentários sobre a guerra às drogas em geral, e não sobre o que acontece no Rio neste momento. E noves fora isso, alguns deles parecem razoáveis como comentários sobre a guerra às drogas, mas nem isso são. Por exemplo, a idéia de que "o combate ao tráfico deveria se dar nas fronteiras," repetida por quase todo mundo, é uma idéia que parece razoável - como disse o Freixo, "no Alemão não tem plantação de coca nem fábrica de fuzil," mas não é. Deter o contrabando, e o tráfico de drogas é uma versão específica dele, é tarefa inglória em que governo nenhum no mundo conseguiu lograr êxito. Não apenas, nessa versão específica, os EUA não conseguiram deter o tráfico apesar de estenderem suas "fronteiras" até os Andes, mas na Inglaterra do século XVI, estimava-se que dois terços das embarcações no mar da Irlanda e no canal da Mancha eram de contrabandistas, apesar da pena para contrabando ser a forca.

Então, se não se pode combater o tráfico nas fronteiras, eu estou apoiando a "guerra" nas favelas? Longe disso. A dicotomia é falsa, porque se atém à noção de que o importante é combater o tráfico (e, aí, cai também a teoria de que se resolveria tudo com a legalização das drogas). Ora, o tráfico é um problema de saúde pública que, na lista das prioridades da polícia, não deveria estar tão alto assim. Nem foi o tráfico de drogas em si que levou à atual situação; a Europa inteira convive com tráfico de drogas, e nem por isso algum Comando Vermelho hasteou cruzeiros no topo de algum prédio dos subúrbios pós-guerra de Paris ou Berlim.

O que levou à atual situação de guerra foi, bem, justamente a atitude de governos que pensaram e organizaram a polícia nestes termos. O traficante armado até os dentes é consequência, e não causa, da polícia militarizada, da polícia com poderes de exceção, da polícia que não pode ser combatida se escondendo com a ajuda dos direitos e garantias constitucionais do cidadão. É isso mesmo: ao contrário do que pensam aqueles que clamam por estado de sítio, ou por ainda mais poder e arbítrio dados à polícia, é justamente o poder (e a "eficiência" no sentido de, à Charles Bronson, poder prender ou matar bandidos facilmente) da polícia que cria o traficante armado interessado num controle do território. Não é que não resolva o problema apenas, mas que o cria.

E é isso, aparentemente, o que o Beltrame aparentemente percebeu, e por isso que, ao contrário da maior parte das pessoas que não tem tesão na idéia de um policial dando um esculacho num moleque preto e pobre, eu estou cautelosamente otimista. As UPPs são justamente um território do "morro" onde a polícia (após o conflito bélico-territorial inicial) não está em guerra contra o tráfico. Há alguns meses saiu a denúncia escandalizada na mesma imprensa que hoje só falta fazer foto de Aquiles com a faca na caveira no escudo: tráfico continua em favelas com UPP. Sim, mas na favela com UPP, como no asfalto, ele é combatido com investigação, pela Entorpecentes, e não com tiroteio de fuzil, pelo Bope. Continua sendo inutilmente combatido (o enxugar gelo mencionado pelo Luis Eduardo Soares), mas é um modo de inutilidade no qual não morre gente.

Outro parêntese: quando começaram a falar de pacificação de favela, o que imaginei foi justamente o VBI SOLITVDINEM FACIVNT PACEM APELLANT que tá no subtítulo do blog. Afinal, estava-se falando da polícia que, sob o Garotinho, conseguiu o título de polícia que mais mata no mundo, passando concorrentes fortíssimas na Venezuela, São Paulo, e Colômbia. Então quando vi que não era por aí, foi uma grata surpresa. Quando os índices de assassinato (ok, "confronto" e "encontro de cadáver") da polícia fluminense despencaram, quase bati palminha, apesar de ainda serem ridiculamente altos. Fazendo as contas, se na França queimaram 20.000 carros quando a polícia matou dois moleques, no Brasil precisariam ser queimados 90 milhões de carros todo ano.

A UPP tem seu lado (muito) ruim, claro. É que, se ela respeita mais as garantias e direitos individuais do que a polícia costumava fazer subindo o morro, por outro lado, como uma presença oficial permanente do Estado no morro, ela age como se vigorasse um regime de exceção. Os comandantes de UPPs são quase déspotas (espera-se, esclarecidos) semioficiais, o que é problemático. Quanto tempo vai durar a UPP? Para sempre? Dividir-se-à oficialmente (e "oficialmente" faz toda a diferença) a cidade entre a democrática e a ditatorial? Ou há alguma estratégia para eventualmente tornar a UPP numa polícia comunitária? E, claro, a UPP não é uma idéia "boazinha," ela se baseia na consolidação de território tomado pelo Bope.

Mas essas questões ficam para o futuro, até porque quando se fala de UPP se está falando, até agora, de um projeto, não de uma realidade. Há UPPs estruturadas em algo como 2% das favelas do Grande Rio, não mais. A primeira versão em grande escala vai acontecer agora, mais ou menos um ano (acho) antes do que estava planejado, já que a "união dos partidos" CV, TC e ADA forçou a mão da polícia. Que estava planejado era óbvio; já havia acordo com os fuzileiros para usar os ACAVs, já havia planos para o exército fazer cerco, a Prefeitura tinha economizado muita grana (eu inclusive me perguntava para que tanto economizar) para os projetos a serem implantados depois, todo um rol de coisas que não se faz do dia para a noite.

E essa "forçada de mão" pode muito bem, eventualmente, ter o efeito desejado. Não o diretamente desejado como indivíduos pelos chefes dos "partidos," que é o seu domínio - esse não volta, mas o desejado por eles como representantes e reprodutores de uma cultura. Isso porque, sem os 2,000 policiais recém-treinados, com treinamento upepístico, vão ter que ocupar o Alemão e a Penha com a velha polícia. E isso pode degringolar a coisa toda, se começarem a se suceder achaques, esculachos, balas perdidas, e companhia. Por isso que quando vi a presepada sobre armas e drogas encontradas, com direito a ir queimar a droga no alto-forno da CSN, típica do modus operandi tradicional da polícia guerreira, fiquei extremamente preocupado. Que polícia vai ocupar o Alemão? Mesmo a instalação, surpreendentemente rápida, de uma ouvidoria específica não chega a me tranquilizar.

Parêntese final: falando em presepada, outra parte da presepada, que foi criticada por sê-lo, como o policiamento reforçado na Zona Sul, ou as declarações bombásticas dos governantes, é inteiramente legítima. Quando falam que a polícia faz não-sei-quê "apenas para deixar a população com sensação de segurança," bem, é exatamente essa uma das funções principais da polícia, caramba. E das mais falhas no Rio, em que até o povo do asfalto da Zona Sul, cujos índices de criminalidade são menores do que na região central da maioria das grandes cidades (bem menores do que daqui de SP), vive morrendo de medo.