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14.9.12

Holocaustos aos deuses

A usina de Belo Monte recebeu nesta quarta autorização do Ibama para construir suas ensecadeiras. Traduzindo: para desviar o curso do Xingu, e o rio morre, como ecossistema, a partir deste momento. Não, não é exagero: o Ibama comentou, mas não considerou impeditivo, sobre o fato da correnteza no novo leito ter uma velocidade de 2,5m/s. O número não significa muita coisa assim, para a maioria das pessoas, pouco acostumada a falar em velocidades de metros por segundo, mas vamos traduzi-lo também: nove quilômetros por hora, ou, se preferirem o jargão náutico, cinco nós. É a velocidade de uma pessoa trotando, ou quase o triplo do Michael Phelps batendo um recorde. A área toda da Volta Grande (aquela que não vira um leito seco) vira uma enorme corredeira, em que não será possível nadar, e embarcações de pequeno porte terão dificuldades para se deslocar.

O momento é particularmente importante porque Belo Monte não é apenas uma represa: é o começo de um grande projeto de ocupação da Amazônia, sonhado desde a Guerra Fria, que inclui mineração, agricultura, e estradas. E os habitantes atuais do lugar - índios, bichos, caboclos, ribeirinhos - que se danem.  Votamos numa guerrilheira torturada para ela realizar os sonhos dos militares que a torturaram. Como foi mesmo que isso aconteceu? Dilma teve o cérebro trocado pelo de Geisel numa operação paranormal da CIA? Pior que não. A explicação é mais prosaica, menos divertida, e o pior: mais difícil de lutar contra. Dilma não encampa o projeto de ocupação/devastação da Amazônia por maldade nem por burrice, mas por uma conta bastante simples: a classe média que se importa com os índios é menor do que a classe média que reclamaria de um aumento de impostos (algo paradoxalmente, em muitos casos é a mesma). Não dá pra continuar o projeto petista de diminuição da pobreza (com resultados admitidamente impressionantes em uma década) sem ou bem dividir o bolo, ou bem fazê-lo crescer rápido; e a conversão de capital natural acumulado é uma fórmula de crescimento rápido, como muito bem demonstrado, no caso da destruição das florestas e pradarias americanas, pelo William Cronon.

Dividir o bolo não significa apenas tirar dinheiro dos muito ricos e abastados, o 1% do movimento Occupy Wall Street. A classe média de que falamos, os 20% mais ricos, já possui renda média 3x superior à renda per capita brasileira, ou 12x superior à dos 20% mais pobres. Apenas para situar, uma igual fatia da Itália de Berlusconi recebe 6,5x a renda do quintil mais baixo. Na Rússia da "máfia ultracapitalista," são 7,6x. Estamos - sublinho - falando de uma estatística que ignora o 1%. Não é o Eike Batista, é alguém que ganha 4000 de salário bruto por mês e se acha pobre, ou alguém que ganha 10.000 e se acha remediado. Porque sim, o Brasil ainda é um país pobre, na média. Para continuar fazendo dos muito pobres menos pobres, sem fazer crescer a renda total (o que não é fácil, ainda mais que estamos na fase descendente de Kondratjev), só aumentando impostos, inclusive sobre a classe média, e/ou diminuindo as transferências de dinheiro público, de novo incluindo para a classe média.

Ora, apesar das evidências em contrário, (a carga tributária líquida, contando impostos e transferências diretas, brasileira é baixa E regressiva) a classe média continua achando que paga muitos impostos para sustentar vagabundo; a diferença entre a esquerda e a direita é basicamente o nome que se dá ao vagabundo, se banqueiro ou favelado. Não que eu discuta que banqueiros ganham muito dinheiro às custas do estado, mas o enfrentamento com a Febraban mostra que não foi os banqueiros que Dilma decidiu priorizar. O que faz todo o sentido pragmático - banqueiros, e as forças do capital em geral, não têm exatamente muita lealdade política: apoiarão o governo, qualquer governo, mas ao primeiro sinal de fraqueza voltam a seus candidatos do coração. Enquanto isso, não enfrentar a classe média fez com que Dilma - autoritária, sem carisma, tecnocrata, burocrata, o que mais se quiser xingá-la, aí incluídos os xingamentos homofóbicos e misóginos - superasse Lula em popularidade.

Não é só em nome da alegria dos banqueiros e ruralistas que a Amazônia está sendo jogada na fogueira. É, também para conciliar uma equação em que convivem o iphone e o bolsa-família, o vinhozinho e o cohab. É para dar o direito do pobre ao saneamento sem sacrificar o direito do "pobre" à viagem internacional.

5.9.12

Noblesse Oblige

Seguindo os passos de seu antecessor César Maia, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, pôs nos ombros da Baixada Fluminense a culpa pela superlotação nos hospitais da capital. Menos alucinado e mais político do que Maia, Paes teve o cuidado de falar mal dos prefeitos (et pourtant, todos seus aliados), ao invés de num povo que "mentiria sobre o próprio endereço" sabe-se lá por quê, mas a essência é a mesma: os hospitais da cidade central atendem uma proporção grande de pacientes da região metropolitana, e isso é injusto. É este corolário que é problemático.

A alegação de Paes é comum em tudo que é região metropolitana no mundo, mas no Brasil ela é particularmente enviesada. Isso porque, ao contrário da maior parte do mundo, o imposto sobre terras é a principal fonte de recursos municipais; em outras palavras, a idéia de que "nós estamos pagando esses hospitais que os outros usam," conquanto moralmente condenável, pelo menos faz sentido lógico. Num lugar em que o imposto do próprio município construiu um hospital e paga seus médicos, é compreensível reclamar de que outros utilizem-se desses serviços.

Não é o caso do Brasil. O IPTU não apenas não responde pela maior parte da receita municipal, como é bem menor, in toto, do que o ISS, pago em qualquer transação dentro do município - e este também é pago pelos cidadãos dos municípios suburbanos que estão na capital. Sendo esses subúrbios, como são, em maior ou menor grau cidades dormitório, seus habitantes gastam e ganham boa parte de seu dinheiro na cidade central, o que faz com que paguem impostos à prefeitura central, e não àquelas aonde moram. Em outras palavras, é bem possível que a proporção dos pacientes da região metropolitana nos hospitais do Rio (um pouco menos de um quinto) seja próxima à proporção dos impostos cariocas que saíram de seus bolsos. Sem nem levar em consideração o dinheiro vindo do SUS (nesse caso, a proporção paga pelo Grande Rio é maior do que os 18%). A reclamação de Maia e Paes é falsa como uma nota de três dólares.

Não que de qualquer jeito fosse razoável, mesmo em situações em que realmente o município está gastando dinheiro dos habitantes centrais pra atender os periféricos. E não estamos falando de um imperativo moral da caridade unilateral, mas de uma troca. Mesmo que não fossem os seus impostos a pagar pelo hospital, o trabalho e o consumo dos habitantes da periferia movem a economia da capital. As cidades centrais, beneficiárias da fragmentação metropolitana, têm o dever de ajudar suas vizinhas, em interesse próprio. Ao contrário, o que foi feito no Rio e em outras capitais foi um processo de competição intensa e desleal (com, por exemplo, a criação do polo de Santa Cruz, para desviar a instalação de indústrias na Baixada Fluminense).

Sim, interesse próprio: alguém duvida que seria de interesse do Rio uma maior oferta de empregos e opções culturais nas cidades da periferia, aliviando a intensidade dos deslocamentos e gerando mais oportunidades para todos? E o mesmo pode-se dizer, em outra escala, do comportamento dos governos estaduais, todos engalfinhados num jogo de soma zero; até 2003, os estados mais pobres transferiam renda via governo para os mais ricos. Mesmo hoje, o nível de transferência dos estados mais ricos para os mais pobres é pífio - bem menor do que o americano, por exemplo (não deixa de ser uma ironia que os estados democratas financiem os estados vermelhos "antigoverno," é verdade). Levando com isso a brutais desigualdades regionais, que não beneficiam a ninguém. O homem lobo do homem hobbesiano pode nunca ter existido naqueles termos, mas está vivo nos prefeitos e governadores brasileiros.

PS Não, essa não é apenas uma tentativa de justificar meu desejo pela transferência do Rio-Zôo para a Granja da Marinha de Caxias. :P