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2.12.10

De Bello Niveadomensis

A "guerra" ao tráfico no Rio de Janeiro tem gerado reações extremadas que, de par a par, me incomodam um pouco. Que a reação (amplamente majoritária) de aplauso à guerra, com direito a muita gente lamentar que não tenha havido um massacre, me incomode parece óbvio; aliás, que incomode qualquer pessoa com um pingo de humanidade e um tanto menos de medo. E quando falo de gente lamentar que não tenha havido um massacre, estou dizendo que muita, mas muita gente mesmo me disse coisas como "deviam ter lançado uma granada naquela fila de bandido saindo da Vila Cruzeiro" ou "deviam ter usado a metralhadora do tanque e feito carne moída de traficante."

Parêntese: as pessoas que falaram o segundo absurdo incorrem além do mais num erro bastante comum entre quem não tem experiência direta da guerra moderna; subestimam drasticamente o poder destrutivo de armas de guerra. Se você ligar uma ma deuce .50 no meio de uma favela, avise o IBGE para só fazer o censo depois, porque a conta populacional vai mudar. Um blindado leve como o ACAV usado no Alemão pode levar tiros de fuzil, que atravessam paredes de prédios, literalmente por anos sem incomodar quem está dentro (fora o barulhinho de martelinho na lataria), e uma .50 fura ele.

Mas o outro discurso (que dou graças a Deus por ter ouvido mais do que a média das pessoas no Brasil) também me pareceu falho. Muita gente, inclusive muita gente qualificada como Luiz Eduardo Soares e Marcelo Freixo, tem repetido algumas "obviedades" sobre a guerra ao crime que me parecem que prescindiram da análise sobre o que está acontecendo para falar a resposta-padrão. São comentários sobre a guerra às drogas em geral, e não sobre o que acontece no Rio neste momento. E noves fora isso, alguns deles parecem razoáveis como comentários sobre a guerra às drogas, mas nem isso são. Por exemplo, a idéia de que "o combate ao tráfico deveria se dar nas fronteiras," repetida por quase todo mundo, é uma idéia que parece razoável - como disse o Freixo, "no Alemão não tem plantação de coca nem fábrica de fuzil," mas não é. Deter o contrabando, e o tráfico de drogas é uma versão específica dele, é tarefa inglória em que governo nenhum no mundo conseguiu lograr êxito. Não apenas, nessa versão específica, os EUA não conseguiram deter o tráfico apesar de estenderem suas "fronteiras" até os Andes, mas na Inglaterra do século XVI, estimava-se que dois terços das embarcações no mar da Irlanda e no canal da Mancha eram de contrabandistas, apesar da pena para contrabando ser a forca.

Então, se não se pode combater o tráfico nas fronteiras, eu estou apoiando a "guerra" nas favelas? Longe disso. A dicotomia é falsa, porque se atém à noção de que o importante é combater o tráfico (e, aí, cai também a teoria de que se resolveria tudo com a legalização das drogas). Ora, o tráfico é um problema de saúde pública que, na lista das prioridades da polícia, não deveria estar tão alto assim. Nem foi o tráfico de drogas em si que levou à atual situação; a Europa inteira convive com tráfico de drogas, e nem por isso algum Comando Vermelho hasteou cruzeiros no topo de algum prédio dos subúrbios pós-guerra de Paris ou Berlim.

O que levou à atual situação de guerra foi, bem, justamente a atitude de governos que pensaram e organizaram a polícia nestes termos. O traficante armado até os dentes é consequência, e não causa, da polícia militarizada, da polícia com poderes de exceção, da polícia que não pode ser combatida se escondendo com a ajuda dos direitos e garantias constitucionais do cidadão. É isso mesmo: ao contrário do que pensam aqueles que clamam por estado de sítio, ou por ainda mais poder e arbítrio dados à polícia, é justamente o poder (e a "eficiência" no sentido de, à Charles Bronson, poder prender ou matar bandidos facilmente) da polícia que cria o traficante armado interessado num controle do território. Não é que não resolva o problema apenas, mas que o cria.

E é isso, aparentemente, o que o Beltrame aparentemente percebeu, e por isso que, ao contrário da maior parte das pessoas que não tem tesão na idéia de um policial dando um esculacho num moleque preto e pobre, eu estou cautelosamente otimista. As UPPs são justamente um território do "morro" onde a polícia (após o conflito bélico-territorial inicial) não está em guerra contra o tráfico. Há alguns meses saiu a denúncia escandalizada na mesma imprensa que hoje só falta fazer foto de Aquiles com a faca na caveira no escudo: tráfico continua em favelas com UPP. Sim, mas na favela com UPP, como no asfalto, ele é combatido com investigação, pela Entorpecentes, e não com tiroteio de fuzil, pelo Bope. Continua sendo inutilmente combatido (o enxugar gelo mencionado pelo Luis Eduardo Soares), mas é um modo de inutilidade no qual não morre gente.

Outro parêntese: quando começaram a falar de pacificação de favela, o que imaginei foi justamente o VBI SOLITVDINEM FACIVNT PACEM APELLANT que tá no subtítulo do blog. Afinal, estava-se falando da polícia que, sob o Garotinho, conseguiu o título de polícia que mais mata no mundo, passando concorrentes fortíssimas na Venezuela, São Paulo, e Colômbia. Então quando vi que não era por aí, foi uma grata surpresa. Quando os índices de assassinato (ok, "confronto" e "encontro de cadáver") da polícia fluminense despencaram, quase bati palminha, apesar de ainda serem ridiculamente altos. Fazendo as contas, se na França queimaram 20.000 carros quando a polícia matou dois moleques, no Brasil precisariam ser queimados 90 milhões de carros todo ano.

A UPP tem seu lado (muito) ruim, claro. É que, se ela respeita mais as garantias e direitos individuais do que a polícia costumava fazer subindo o morro, por outro lado, como uma presença oficial permanente do Estado no morro, ela age como se vigorasse um regime de exceção. Os comandantes de UPPs são quase déspotas (espera-se, esclarecidos) semioficiais, o que é problemático. Quanto tempo vai durar a UPP? Para sempre? Dividir-se-à oficialmente (e "oficialmente" faz toda a diferença) a cidade entre a democrática e a ditatorial? Ou há alguma estratégia para eventualmente tornar a UPP numa polícia comunitária? E, claro, a UPP não é uma idéia "boazinha," ela se baseia na consolidação de território tomado pelo Bope.

Mas essas questões ficam para o futuro, até porque quando se fala de UPP se está falando, até agora, de um projeto, não de uma realidade. Há UPPs estruturadas em algo como 2% das favelas do Grande Rio, não mais. A primeira versão em grande escala vai acontecer agora, mais ou menos um ano (acho) antes do que estava planejado, já que a "união dos partidos" CV, TC e ADA forçou a mão da polícia. Que estava planejado era óbvio; já havia acordo com os fuzileiros para usar os ACAVs, já havia planos para o exército fazer cerco, a Prefeitura tinha economizado muita grana (eu inclusive me perguntava para que tanto economizar) para os projetos a serem implantados depois, todo um rol de coisas que não se faz do dia para a noite.

E essa "forçada de mão" pode muito bem, eventualmente, ter o efeito desejado. Não o diretamente desejado como indivíduos pelos chefes dos "partidos," que é o seu domínio - esse não volta, mas o desejado por eles como representantes e reprodutores de uma cultura. Isso porque, sem os 2,000 policiais recém-treinados, com treinamento upepístico, vão ter que ocupar o Alemão e a Penha com a velha polícia. E isso pode degringolar a coisa toda, se começarem a se suceder achaques, esculachos, balas perdidas, e companhia. Por isso que quando vi a presepada sobre armas e drogas encontradas, com direito a ir queimar a droga no alto-forno da CSN, típica do modus operandi tradicional da polícia guerreira, fiquei extremamente preocupado. Que polícia vai ocupar o Alemão? Mesmo a instalação, surpreendentemente rápida, de uma ouvidoria específica não chega a me tranquilizar.

Parêntese final: falando em presepada, outra parte da presepada, que foi criticada por sê-lo, como o policiamento reforçado na Zona Sul, ou as declarações bombásticas dos governantes, é inteiramente legítima. Quando falam que a polícia faz não-sei-quê "apenas para deixar a população com sensação de segurança," bem, é exatamente essa uma das funções principais da polícia, caramba. E das mais falhas no Rio, em que até o povo do asfalto da Zona Sul, cujos índices de criminalidade são menores do que na região central da maioria das grandes cidades (bem menores do que daqui de SP), vive morrendo de medo.

27.10.10

Money money money money

money makes the world go around, the world go around...

E aqui está a previsão de de onde, para onde, as pessoas viajarão em 2020. Clicando na imagem, vai-se ao relatório completo. (Antes que alguém pergunte, isso quer dizer que a A. Latina vai crescer menos que a Ásia e mais que o Oriente Médio, mas vai continuar sendo pouco significativa no cômputo geral.)

26.10.10

Rumble in the Jungle

Às vezes dá a impressão de que a grande imprensa está com vergonha de seu candidato - não necessariamente do Serra autoritário e de direita, governador de São Paulo, que eles apoiaram desde o começo, mas do candidato que promete qualquer coisa que lhe pedirem. Não tem outra coisa que explique esse par de entrevistas da CBN, com religiosos que apóiam cada candidat@ à presidência. Com Leonardo Boff apoiando Dilma e Silas Malafaia apoiando Serra.

Isso mesmo. De um lado alguém que, apesar de controverso, é um pensador religioso razoavelmente respeitado. Do outro, o sujeito que quer proibir homossexuais de serem atendidos em hospitais públicos.

Me diz se o Noblat (que já riu muito da bolinha de papel que a Globo, e só ela, tentou provar que era alguma outra coisa) não tá sacaneando?

22.10.10

Sem carisma

Muita gente diz que nenhum dos dois candidatos à presidência é particularmente carismático. Mas o campeão de falta de carisma no Brasil é mesmo o Cerrado. Enquanto gente mundo afora tenta salvar a Amazônia, enquanto se fala de salvar o Pantanal, o Cerrado, que corre muito mais riscos do que ambos, está prestes a acabar e ninguém liga muito pra isso. Uma das maneiras pelas quais ele pode ser destruído sem problemas é a brincadeirinha do "podemos expandir a agricultura mediante o uso de pastagens degradadas, que o pessoal "mais razoável" da bancada ruralista repete sempre. Ora, o que é pastagem degradada, exatamente? Na definição específica da Embrapa, é uma área que foi utilizada para o cultivo de forrageiras para o gado até o empobrecimento do solo, hoje cheio de voçorocas e desbarranqueamentos. Na definição-prestidigitação pela qual se pode ampliar enormemente a área cultivada do Brasil, é qualquer pastagem que não seja atualmente objeto de cultivo de forrageiras para manejo moderno de gado. Isto é, inclui muita área que também é cerrado.

Isso porque, apesar daquele mapa do IBGE com a manchona "antrópica" avançando sobre os "biomas naturais," essa distinção é inteiramente artificial - e menos nítida do que parece. Os solos mais férteis da Amazônia, desde sempre, foram chamados, afinal, de "terra preta de índio," e têm evidências de terem sido manipulados em tempos pré-colombianos. As pimentas, de sua origem na área do rio Parnaíba, hoje dão no mato em toda a América do Texas ao Uruguai, graças ao cultivo humano. Coqueiros, mangueiras, jaqueiras... em alguns lugares, essas espécies invasoras são combatidas, como no parque da Tijuca, mas na escala macro é difícil fazer isso; espécies invasoras, incluindo aquelas criadas extensivamente e em baixa densidade pelo ser humano, convivem bem com o ecossistema "nativo."

Seria a idéia de expandir, e muito, a noção de parque nacional, para tentar salvar pelo menos parte do Cerrado. Hoje, possibilidade de ocupação de um parque nacional ainda carrega um ranço da velha noção de tutela que incidia sobre as reservas indígenas, em que um índio tinha direito àquela terra para desenvolver sua sociedade porque era um incapaz para sobreviver na sociedade mais desenvolvida; enquanto isso, no Reino Unido, a maior parte dos parques nacionais está cheio de gente, e até algumas cidades, dentro. Essa noção já está presente na própria lei, que, como frequentemente acontece no Brasil, é até bastante avançada. Mas se você olhar no mapa, verá que são pouquíssimas as áreas de proteção de uso sustentável apareceram principalmente na Amazônia e, fora dela, em alguns lugares de especial interesse turístico. A conclusão é óbvia: foram usadas no lugar de dar terras a comunidades tradicionais, ou de reservas naturais integrais, e não em adição a elas.

Quem quer que seja o próximo presidente vai ter que se ver às voltas com um Brasil extremamente vulnerável à mudança climática, e para o qual a maior parte das emissões do efeito estufa é oriunda do desmatamento (em segundo lugar, para incredulidade do secretário do meio ambiente de São Paulo, vem metano saído do bucho das vaquinhas). Inclusive essas hidrelétricas todas que eles querem tanto construir vão secar se o planeta aquecer muito e/ou o Cerrado perder muito mais mato.

21.10.10

Retorcendo os bigodes

(Ressuscitando um post antigo, mas que achei relevante agora.)

Há algum tempo, escrevi aqui uma crítica à obsessão pelo poder federal brasileira, no caso representada pelo Villas Boas Corrêa, que falava do desmatamento e do ensino básico como se fossem assuntos federais. Agora tem uma extensão do raciocínio, menos segura: tem gente que é menos assustador imaginar de presidente do que de prefeito ou governador. Isso porque um presidente, ou melhor dizendo, um poder federal, tem um poder muito "vasto e difuso," não lida com as pessoas ou as relações entre elas diretamente. Fora ser uma esfera em que "checks and balances" - tanto no sentido institucional, dos controles por outros poderes, quanto num mais amplo, incluindo a pressão de diversos grupos organizados, nacionais e internacionais - são muito mais ativos. Enquanto isso, uma administração municipal pode acumular absurdos abertamente higienistas,* como demonstrado pelo Serra ultimamente, sem maiores problemas. Pode, através do urbanismo, moldar a própria forma das relações sociais numa cidade (fora, obviamente, a forma física da cidade). Os efeitos de um prefeito são de muito mais longo prazo do que os de um presidente. E incluem coisas que não se atém ao "social" no sentido socioeconômico que ele geralmente toma, mas têm efeito na vida e cultura da cidade, como quando o prefeito do Rio empreende uma campanha acirrada contra qualquer tipo de manifestação cultural alternativa na cidade, incluindo shows de rock, com uma proibição absoluta de coisas novas na Zona Sul, e aí importa uma banda de mais de quarenta anos, a peso de ouro.

Enquanto isso, os governadores são o locus de poder da política brasileira. Praticamente controlam o Congresso e as eleições presidenciais. Arrecadam uma proporção dos impostos bem maior do que em outras federações (mesmo federações muito mais radicais do que a nossa, como a Índia, onde o estado de Kerala conseguiu implantar um sistema comunista durante meio século). Têm o poder mais radical do Estado, que é o poder de polícia, inteiramente em suas mãos (apesar de isso começar a mudar com as guardas municipais). Usam esse poder pra matar mais de 6.000 pessoas por ano, tudo preto e pobre. (Pra efeito de comparação, a truculenta polícia americana, em um país 60% maior, mata 800. Na Europa, com mais do que o dobro da população, é um escândalo se a coisa passa de dois dígitos.)

Prefeitos e governadores administram ainda a saúde e a educação públicas, fora, nos estados com mais recursos, boa parte da educação terciária e pesquisa. (Depois do sucateamento federal da Era FH, o sistema paulista de ensino terciário passou a ser mais rico do que o conjunto do sistema federal).

Então, sinceramente, eu tenho mais horror a gente como o Serra numa prefeitura ou num governo estadual do que na Presidência.



*Anti-semita - quem odeia judeus
Racista - quem odeia uma raça (de preferência pretos)
Higienista - quem odeia pobres

19.10.10

A Economist fala do Malafaia

Bem, quase. Na verdade, o assunto deles, no Charlemagne, coluna editorial do caderno de Europa, é apenas um pouco parecido: trata-se do problema espinhoso de como lidar com a ascensão dos políticos de extrema direita, xenófobos, em todos os seus matizes. A Economist sugere que as estratégias tradicionais dos partidos igualmente tradicionais, à esquerda e à direita, falharam. O cordão sanitário, afinal, começa a ele mesmo por em questão a legitimidade democrática num país quando, como na Bélgica, o partido de extrema direita é o mais votado de todos, consistentemente, e apesar disso nunca vira governo. A Economist apresenta essa questão espinhosa, com toda a discussão da democracia equilibrada entre oclocracia e império da lei, apenas para fugir dela na mesma hora. O assunto é outro, é apresentar a sugestão deles. Para isso, também, tomam cuidado para apresentar o estudo de caso deles como bem "limpinho." Geert Wilders não é nazi, é a favor dos direitos das mulheres e gays. Ele é "só" xenófobo, com uma retórica islamofóbica extremamente agressiva e preconceituosa.

A solução, advoga o periódico, é integrar esses xenófobos mais "limpinhos" aos partidos tradicionais de extrema direita. Com isso, a "responsabilidade" de serem alçados ao ministério faria com que eles recuassem de suas posições mais extremas. O argumento é tênue por duas razões: uma é que a única moderação que o ministério já ensinou a alguém é a fiscal, e essa por motivos óbvios. A outra é que os ministérios que têm "reais responsabilidades" são os importantes. A Economist se sentiria à vontade entregando o banco central a um "populista"? A impressão que dá é que a revista se sentiu mais tentada pelo que fica nas entrelinhas : a aliança daria bastante força ao membro "sênior" da coalizão, o partido de direita tradicional. O problema, como se pode ver nos casos em que se tentou algo parecido mundo afora, dos EUA do TEA Party ao Brasil do Silas Malafaia, o parceiro "sênior" corre mais risco de ficar refém do "júnior" do que o contrário, já que este depende muito menos dos instrumentos de estado para sua sustentação no poder. Silas Malafaia, Geert Wilders, e Ron Paul podem ficar quantos anos sejam necessários longe do poder político e até do grosso do poder econômico e midiático, sem maiores problemas. José Serra, Mark Rutte, e Newt Gingrich não podem se dar a esse luxo.

15.10.10

Da unanimidade

Uma coisa que me chamou a atenção no "manifesto" pós-primeiro turno da Marina Silva é que ele fala em congelamento da construção de usinas nucleares, mas não de usinas hidrelétricas na Amazônia. Até desmente um pouco a minha crítica a ela como ministra do meio ambiente, que era de que ela focava demais na Amazônia e de menos no resto do país. Nenhum dos três candidatos principais falou mal da usina de Belo Monte em si - Serra até tentou se aproveitar das críticas ao projeto, mas para falar que manteria ele "só que faria direito," na sua tentativa de ser all things to all men, mas dizer que cancelaria mesmo, nem Serra nem Marina disseram. Dilma, por supuesto, é quem levou até o edital o projeto, que vem da Eletronorte da Nova República, e foi alterado para se transformar numa usina a fio d'água no apagar das luzes do governo FH. Belo Monte é apenas uma das 15 usinas hidrelétricas de grande porte que a Eletronorte pretende construir na margem direita do Amazonas.

Nenhum candidato ser contra me deixa encafifado porque esse plano é, em termos ambientais, bem problemático. As comparações com Balbina não se sustentam; todas as hidrelétricas propostas são, do ponto de vista da engenharia, bem boladas, com índices de eficiência razoáveis a ótimos, em alguns casos passando os 10 watts gerados por metro inundado de Itaipu. (É o caso da própria Belo Monte, mesmo assumindo os 4,000GW de energia garantida e não os 11.000 sazonais.) Mas essas hidrelétricas todas constituem, num momento em que o governo comemora a redução em 90% no desmatamento, um risco de desmatamento enorme na Amazônia. Pior do que isso, afetam significativamente as populações tradicionais, índigenas e ribeirinhas, em nome da exportação de energia elétrica pro Sudeste (que, lembremos, graças ao Serra fica com o ICMS).

É particularmente assustador que nem a Marina tenha mencionado isso porque as tais populações tradicionais são de onde ela vem. Em mais de um sentido, já que, mais do que uma política nascida de seringueiros, ela nasceu como política nesse movimento de seringueiros, que se apropriou e aliou ao discurso dos índios como mantenedores da terra, conseguindo fazer com que a relação especial entre índios e Estado - que permite aos índios terem controle de suas terras tradicionais - deixasse de ser a da tutela de inferiores. Se nem a pessoa que construiu sua carreira política a partir desse movimento, importantíssimo, se importa tanto com ele quanto com uma agenda secundária, em termos brasileiros, como impedir a eventual construção de novas usinas nucleares, tamulascados. Não é o Gabeira, que só se importa com parecer com os verdes dos países "superiores," fazendo essa inversão, é a Marina Silva, pô.

E essa ótica é ainda mais estranha porque aquele elogio à engenharia ali em cima não é um elogio à economia. Essas usinas, repita-se sempre, envolvem perdas gigantes na transmissão e custos "escondidos" enormes. E têm o condão de puxar população para perto de si. Estamos ainda pretendendo colonizar a Amazônia? Porque com essas usinas, é isso que acontece.

14.10.10

A falsidade da equivalência

OK, estou aqui escrevendo como eleitor assumido da Dilma. Caveat emptor. Mas uma falácia que vejo muito comum entre gente que fala que vai votar nulo é a falácia da falsa equivalência, que antes vi muito em gente falando que tanto fazia o Bush como o Gore para presidente dos EUA - inclusive eu. A falácia segue um esquema lógico simples:

A =! C
B =! C
=> A = B

Se nem A nem B são iguais a C, então se equivalem.

Ora, acho que qualquer pessoa, pensando um pouco mais sobre essa linha de raciocínio, verá que ela é falsa. Ad absurdum, é a alegação de gente por aí que nazismo e comunismo são a mesma coisa porque nenhum dos dois é democrático - digam isso para os nazistas e comunistas pra ver no que dá. Ainda ad absurdum, dessa vez no uso lógico da ferramenta, é como dizer que se nem o Sol nem a Lua são os luzeiros postos por Deus na Gênese, nenhum dos dois emite luz própria. Ou que se nem eu nem o Barack Obama somos os Johnny Depp, eu e o Obama somos a mesma pessoa.

Num post anterior, "pingos nos is," falei de por que o Serra e o PSDB em geral não são, nem um pouco, de esquerda. Às vezes se fala em resposta "ah, mas o PT não é de esquerda perfeita, pura e casta." Não, não é. O PT fez muita merda, e continuará a fazer. É de esquerda, sim, e parte de um governo de coalizão que é de centro-esquerda algo tímida. (E que, mesmo assim, causou o que só pode ser descrito como uma revolução social no Brasil, com a universalização do bolsa-escola do Cristóvam Buarque.) O PSDB, por outro lado, sempre foi de direita, e é até curioso que tenha que negar isso quando se apresenta ao público para se eleger. De novo: o PSDB, ao negar sua orientação estado mínimo, não está mentindo sobre mesquinharias tipo Paulo Preto e mensalão. Está negando a própria linha-mestra de suas convicções econômicas.

O PT recuou da defesa do PNDH 3, e isso é ruim? Sim, mas o PSDEMB atacou o PNDH 3. Se você liga para direitos das mulheres, pretos, e gays, a sua escolha é entre o partido que está com medo de assumir que os apóia e o que bate no peito pra reafirmar que é contra. Se acha ruim a privatização e desnacionalização, entre um partido que não a reverteu contra um que a promoveu. E por aí em diante. Mesmo se o teu voto é o ético, dê uma olhada na proporção de parlamentares petistas envolvidos em processos judiciais, e na proporção de parlamentares do PSDEMB. (O PMDB será governo de qualquer jeito, assim como PR, PP, PTB, e quejandos.) Se se preocupa com o meio ambiente, a alternativa é entre o partido que, sob Marina Silva e Carlos Minc, cortou em 90 por cento o desmatamento na Amazônia, mas também aprovou hidrelétricas na Amazônia, e aquele no qual uma maioria dos governadores e senadores, eleitos e atuais, fala em acabar com o código florestal (e também é a favor de hidrelétricas na Amazônia, claro).

E se diz "ah, mas não gostar do Serra não quer dizer gostar da Dilma," bem, sinto muito. Enquanto havia alternativas, tudo bem; essa é a graça da eleição com dois turnos. Agora não tem mais alternativa. Não existe "nenhum dos anteriores." Essa é a outra falácia, a de que é possível escolher o não. Você pode ajudar a escolher um ou outro, ou deixar que outros escolham sem sua participação, é tudo.

7.10.10

Cavalo Louco da Costa

A elite da elite da elite brasileira sempre cultivou uma auto-imagem, digamos, não de tolerância, mas talvez de bonomia; até criticamente, sempre se considerou um povo que pode achar todo mundo que não faz parte dela um horror, mas não levanta a voz pra falar isso.

Aí vem o candidato a vice-presidente da República Antônio Pedro de Siqueira Índio da Costa. O homem, se fosse mais crème de la crème, era chantilly. O "Siqueira" aí muita gente Brasil afora reconhecerá como nome de rua ou praça ou, no Rio e em SP, estação de metrô (OK, tecnicamente em SP a estação não incorpora o nome oficial do parque acima dela e se chama só Trianon-MASP); o Índio da Costa resulta da afetação indigenista das famílias da aristocracia brasileira no segundo império. O pai é arquiteto famoso. O irmão, designer idem.

E cadê a bonhommie, a polidez, a educação? Ao invés disso o vice-candidato virou o cara que deixa claro que é contra os direitos LGBT na linguagem mais, ahem, clara possível. Poderia-se dizer que é apenas estratégia de campanha, afinal a filha do Allende está fazendo a mesma coisa pelo marido, enquanto sua "outra" ex-VJ segue a linha teoria de conspiração. Mas Índio da Costa não era vice-candidato quando propôs, na assembléia legislativa do Rio de Janeiro, lei punindo o ato de dar ou receber esmola.

Parece que a finesse aristocrática é tão mito quanto a idéia de que noblesse oblige...

6.10.10

Um copo meio cheio e dois meio vazios

Meu copo meio cheio é que acho surreal o clima de desânimo e derrota de gente que apóia a Dilma por não ter ganho no primeiro turno. Lula não ganhou no primeiro turno, e o mapa eleitoral dele foi pior que o da Dilma. Primeiro turno não é resultado normal, é goleada. E sem o apoio unânime da grande mídia e dos governadores do Sudeste (Minas e SP são sempre do PSDB, já o Rio é do PMDB, portanto do governo, qualquer governo), ninguém ache que a esquerda vai jamais ganhar de goleada uma eleição nacional. Quem ganha de goleada é direita que esteja ocupando o cargo, e olhe lá.

Isso dito, a vitória de Serra, se acontecer, será bem pírrica. Dentro do PSDB, terá se hipotecado a Aécio e Alckmin, o que pode não contar muito para alguém useiro em traições internas e já odiado pela maior parte do próprio partido, Tasso Jereissati que o diga. Aliás, se alguém acredita na declaração do Tasso de que vai se empenhar de corpo e alma na campanha do Serra, tenho um belo terreno em Xena para vender. Fora do PSDB, terá que lidar com um Congresso muito menos amistoso do que o que FHC conheceu, com uma bancada maior do PT e outros partidos de esquerda e uma muito menor do DEMo. (O crescimento do PMDB é irrelevante.) A esquerda teve uma vitória eleitoral no legislativo, como teve na campanha presidencial. Só que não de goleada, em nenhum dos dois casos.

O meu copo meio vazio é que, sinceramente, a maioria dos votos pró-Marina provavelmente vão virar votos pró-Serra. Posso estar enganado, mas decuparia os votos pró-Marina em cinco grandes temas, com alguma sobreposição entre si:

1 - Os tão temidos votos evangélicos. Esses, sinceramente, serão Serra ou nulo. Inclusive porque, vamos lá, parte do que eles acusam é ridículo : Temer pode ter cara de mordomo de filme de terror, mas não é satanista; ninguém vai proibir cultos, nem se imiscuir nos sacramentos das igrejas. Mas parte é bem verdade, e será uma grande derrota abdicar desta parte progressista em nome dos votos evangélicos. O PT é mesmo, graças a Deus, a favor da legalização do aborto e do casamento civil homossexual.

2 - Os votos verdes propriamente ditos. Estes provavelmente cairão meio a meio (e mais pros nulos). Mas poderiam, talvez, ser influenciados pela realidade; assim como os evangélicos conservadores terão toda a razão em votar contra Dilma, os verdes deveriam votar contra alguém que põe um ruralista de Secretário do Meio Ambiente do estado de São Paulo, e que ataca a constituição de reservas ecológicas e indígenas.

3 - Os votos "éticos," votos contra "tudo isso que está aí," e a política em geral. São, um pouco, estranhos, já que Marina não é uma outsider, é uma política experiente, com décadas de experiência, a maior parte no PT execrado por boa parte do pessoal do voto "ético." A maioria destes deve ir pra Serra, porque são também o voto da grande imprensa. (Só o Estadão, logo o menos militante, declarou voto, mas quem achar que Globo e Folha são neutros, pra não falar da Veja, ganha um terreno em Plutão.)

4 - Pessoas que votaram no moderno, no novo, numa agenda para o século XXI, num grande projeto, enfim na tábula rasa em que deliberadamente a Marina se tornou durante a campanha - já que de projeto e programa reais o da Marina que se pode ler é uma radicalização do projeto neoliberal, com algum greenwashing, e não uma opção pelo desenvolvimento menos rápido mas mais sustentável, como já vi gente projetando na tabula rasa. E(Quem acreditar que a Natura pretende desacelerar o crescimento em prol do meio ambiente ganha terreno em Caronte.) Estes vão na maioria anular; dos que sobram, imagino que a maioria vote Serra, e seja bem pouco influenciável.

5 - Pessoas que rejeitavam a polarização entre PSDB e o PT, e/ou desejavam um segundo turno por questão de princípio. Estes provavelmente cairão um pouco mais pra Dilma.

Nenhum dos 5 é particularmente influenciável pela posição a ser tomada nem da Marina (provavelmente neutra) nem do partido verde (provavelmente Serra), aliás, então não sei por que PT e PSDB pintaram a cara de verde com tanto gosto. Bem, talvez os 4 e parte dos 2.

Agora o copo meio vazio que não é meu: enquanto tem gente que diz que Marina é a pessoa mais poderosa do Brasil, eu pessoalmente acho que ela está é numa sinuca de bico. Ela detem um poder enorme que, como em algum sistema místico-esotérico, vai se dissipar no momento em que tentar usá-lo, só existe em potência. (Com perdão do trocadilho). Os exemplos que ela tem de situações parecidas com a dela são o Gabeira e a dobradinha Cristóvam-HH, mostrando que nem a aliança com a direita nem a neutralidade reverteram em bons dividendos políticos. Cristóvam conseguiu ficar senador, HH e Gabeira estão no olho da rua. E se bandear para o lado da Dilma envolveria vencer ressentimentos pessoais que sem dúvida existem, além de inevitavelmente diminuir o próprio status. (No limite, diria que resultaria em algo não muito diferente - talvez um pouco melhor, pelas afinidades programáticas, mas não muito - da aliança do Gabeira com o PSDB.)

Por outro lado, o partido dela é bem mais simpático ao PSDB até do que a ela, e bastante organizado em torno de seus cardeais paulistas e fluminenses. Não dá pra invejar alguém nessa situação; o afago no ego não compensa a sinuca de bico.


PS Um copo inteiro cheio: César Maia e Picciani não se elegeram ao Senado. Ahhhh Schadenfreude...

PPS Se alguém acha que a própria Marina realmente acredita no discurso que iguala PSDB e PT, tenho um terreno em Gabrielle pra vender...

PPPS Este blog não se responsabiliza pelo uso dos termos Xena e Gabrielle para o plutóide conhecido pela UIA como Eris e seu satélite Disnomia. Quaisquer consequências legais, pessoais, ou ontológicas que possam advir desse uso não serão imputáveis a este blog.

22.9.10

Em defesa do PIG 2 - por um PIG melhor

O André Kenji comentou que a minha defesa da imprensa não funciona porque é graças à histeria dela que o Lula a usa como oposição de brincadeirinha. Quanto a isso, duas coisas:

1) Mais ou menos. Como o próprio André comentou, a mídia aqui derruba ministros.

2) Bem, isso é porque a nossa mídia, com todo o respeito pelos muitos bons jornalistas espalhados por ela, é uma porcaria. E ela é isso porque ser uma porcaria é mais fácil do que fazer jornalismo de verdade. Boa parte das reportagens que se vê por aí são mais próximas de posts em forum de discussão do que de reportagens propriamente ditas.

E finalmente, 3) mesmo assim, o jornalismo investigativo, que só existe por conta da necessidade de ferrar com o adversário, ainda presta serviços. Um brinde à Veja pelo Israel Guerra.

Agora, isso dito, porcaria é mesmo. Nem pensar direito pensa. Um exemplo: com toda a má vontade de parte da imprensa quanto à realização das Olimpíadas e Copa, ninguém foi além de repetir clichês sobre desgoverno corrupção, etc, para por exemplo questionar por que o túnel da Grota Funda, no Rio, foi apresentado como parte dos encargos olímpicos, se conecta equipamento olímpico nenhum a equipamento olímpico inexistente? Ou por que, logo após o lançamento do edital do "transoeste," a Multiplan e a Cyrella anunciaram imensos empreendimentos imobiliários na área a ser aberta pelo túnel? Que coisa, né?

Como diz o Alon Feuerwerker, falta mais gente perguntando "por que."


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Soninha demonstrou ontem, no seu surto paranóico, o problema e virtude do twitter. Ele é uma caixa de amplificação caótica que provavelmente vai servir para te ferrar muito mais do que para você usar dela. Pior que isso, só quando a Stephenie do Crepúsculo puxou briga com o subfórum 4chan/b - inda bem que a pobre da Soninha não chegou a xingar twitteiros em geral. Políticos em geral deviam se abster de tentar usar mídias horizontais enquanto ainda podem.


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Porque volta e meia alguém me aparece na internet, falar nisso, dizendo que "o crescimento do PIB só mudou devido à melhor situação internacional," fui olhar nos sites do IBGE e FMI. Surpresa!

Aqui as fontes

http://www.ibge.gov.br/series_estatisticas/exibedados.php?idnivel=BR&idserie=SCN02
http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2010/01/weodata/download.aspx

Repare que a média mundial passa de 3,4 em 1995-2002 para 3,8 em 2003-2010. A brasileira passa de 2,27 para 4.02

Mais importante, entretanto, é que se você freia de 80 para 20km/h em dez segundos, a sua velocidade média é exatamente a mesma que se você acelera de 20 para 80, certo? Bem,

21.9.10

Em defesa do PIG

Paulo Henrique Amorim, desde que levou um pé na bunda da Globo, se tornou lulista de carteirinha, e cunhou para o cartel Globo-Folha-Abril-Estadão a alcunha "PIG - Partido da Imprensa Golpista." A expressão sempre me pareceu singularmente infeliz. Partidária até as raias da desonestidade, sem sombra de dúvida a grande imprensa brasileira é, com posições que vão do quase moderado à Veja, que deixa a Fox News americana parecendo razoável. E olha que a Fox News inventou a fórmula da desinformação conservadora como produto. Mas golpista é outra coisa, e não conseguia ver (nem na Veja) uma real intenção golpista. Mas agora me aparece a Cantanhede editorializando na Folha que "o PT é contra os costumes e os militares," e bem, vivandeiras, bivuaques.

Mas quer saber? Não vejo perigo real à democracia aí. E não havendo risco real de golpe, a imprensa ser de oposição até os limites do golpismo é bem melhor do que uma imprensa morna, como tínhamos no período FH, em que só os piores escândalos apareciam, e olhe lá. Se a imprensa americana tivesse o ódio por Bush que a imprensa brasileira tem por Lula, talvez um milhão de Iraquis estivessem hoje vivos.

15.9.10

Propostas que ninguém vai ler I - Impostos progressivos

Recentemente, o sindicato do funcionários da Receita apresentou ao presidenciável socialista Plínio de Arruda Sampaio uma proposta que eles chamaram de "reforma tributária progressiva." A proposta me chocou um pouco porque, noves fora eliminar algumas distorções e falhas de nosso sistema tributário,* (o que eu apóio), de progressiva ela não tem muito. Pelo contrário, quando fala da distribuição tributária propriamente dita, cai no velho chavão de que o trabalhador assalariado é vítima do imposto de renda que deve ser "atualizado" (eles querem dizer diminuído; atualizado ele já é, anualmente).

Ora, o imposto de renda de pessoa física, o famoso leão, é, no Brasil, banguela de marré de si. Vejamos como (atenção: números chatos adiante).

Muita gente acredita na bobagem de que "alguém que ganhe logo menos do que a alíquota do imposto de renda vai perder dinheiro se ganhar mais, porque vai ser taxado em mais. Como diria o Morbo do Futurama, não é assim que funciona. Você continua sendo taxado à mesma alíquota sobre o dinheiro ganho até x; a alíquota superior só incide sobre os ganhos acima de x. Fazendo a hipótese de que você fosse taxado em 10% acima de 100 reais, e 50 acima de 200, alguém que ganhe 300 pagaria

0% sobre os primeiros 100
10% sobre os 100 entre 100 e 200 = 10
50% sobre os últimos 100 reais = 50

No total, 60 reais, ou 20%, apesar de um terço de sua renda já estar na alíquota de 50%. Ora, é claro que no Brasil, ao contrário de outros países, a alíquota máxima não chega nem perto disso, e é de 27,5%. As alíquotas brasileiras são:

0% até R$ 1.500
7,5% de 1.500 até 2.246
15% de 2.246 até 2.995
22.5 de 2.995 até 3.743
27,5% acima de 3.743 reais por mês.

Ora, quem é o "pobre trabalhador assalariado" que paga isso? Vamos dar uma olhada nos decis de renda domiciliar per capita no Brasil (isto é, qual a renda média em cada 10% da população), em R$:

MÉDIA GERAL 1.078
10% mais pobres: 208
293
366
488
586
732
947
1327
2225

Em outras palavras, quem paga imposto de renda está entre os 20% mais ricos da população brasileira. Não só isso; alguém que ganhe 2.500 reais, ou seja mais do que a média dos 10% mais ricos, pagará

0% de 1500 + 7,5% de 746 + 15% de 244 = R$ 93, ou um pouco mais de 4% de sua renda, no total. Ou um pouco menos que uma assinatura de tv a cabo média.

Mesmo se você der todos os descontos possíveis e imagináveis nessa conta, resta a evidência de que menos de um quarto da população ativa sequer declara, quanto mais paga imposto de renda. São 24 milhões de declarações para uma PEA de uns cento e poucos milhões de pessoas.

Não parece tanto assim, né? Claro que alguém que ganhe mais que 2.500 vai pagar mais, mas mesmo no limite não tanto assim. E alguém pra quem uma alíquota de imposto de renda ou duas acima dos 27,5% faria diferença percentual é alguém que, definitivamente, não vai morrer de fome por conta dessas novas tarifas; no máximo vai ter que reduzir a idade dos vinhos ou aumentar a idade dos carros.

Por isso que eu, ao contrário do sindifisco, proponho não só não "atualizar" a tabela do imposto de renda de pessoas físicas como também inserir mais duas alíquotas

35% acima de 7.000
45% acima de 14.000

Com essa mudança, que afetaria coisa de 5% da população, poderíamos ver a arrecadação do Imposto de Renda de Pessoa Física dobrar, de 65bn para 130bn. (Hoje, o IRPF constitui menos de um terço do imposto sobre a renda, e cerca de um oitavo das receitas correntes da União, excluídas as receitas da seguridade social. Ou um quinze avos do total de tributos e contribuições.) Isso permitiria, se a idéia fosse não alterar a carga tributária, zerar o IPI. Lembrando que os produtos que tiveram o IPI zerado seletivamente durante a crise viram um aumento de 15 a 30% a.a. na sua produção...

*Apesar de uma delas, a de cobrar IPVA de lanchas e aviões, me incomodar um pouco do ponto de vista lógico - o IPVA não tem a função de justiça social ou arrecadação, mas de pagar pelas ruas, estradas, e engenharia de trânsito. Não existe infraestrutura pública grátis que jatinhos e lanchas possam utilizar.

13.8.10

A nova teocracia.

O Rio de Janeiro é o estado com maior proporção de não-católicos no Brasil, e especificamente de evangélicos. Assim, não chega a surpreender que a Assembléia Legislativa do estado tenha aprovado uma lei alucinada pela qual cultos evangélicos, em templos ou fora deles, são imunes a quase qualquer lei. (E além disso, shows Gospel vão receber incentivo do governo via uma espécie de lei Rouanet.) Mas não é só no Rio que evangélicos estão se espalhando; a Universal, em particular, em seu plano deliberado de construção de igrejas "espelhando" as católicas, pretende fazer uma cópia do Templo de Salomão (cópia só pelo lado de fora, com escritórios dentro e ar condicionado) no Brás, em São Paulo, por exemplo.

A lei também demonstra que, se o Brasil, em parte graças ao positivismo dos primórdios da República, se livrou da influência católica sobre a política muito mais do que parte da Europa católica, ele por outro lado corre o risco, devido a como funciona a política brasileira, de ver uma influência cada vez maior de um grupo que mesmo sendo minoria de um quarto já aprova uma lei dessas. E enquanto a Igreja Católica brasileira tem uma ala progressiva importante, mesmo depois de décadas de João Paulo II e Benedito XVI, o "programa" evangélico é bem mais conservador, com exceções muito pontuais.

Finalmente, fica a pergunta: essa lei vai se aplicar a terreiros, e macumbas de encruzilhada também?

12.8.10

Crescimento negativo

As empresas de energia elétrica estão se atropelando em lobbies e procurando projetos porque precisam investir dois bilhões, até dezembro, em programas de conservação e eficiência energética. A soma representa o que deveriam ter investido desde a privatização, e não investiram porque conseguiram repetidos adiamentos junto à ANEEL.

A situação demonstra de maneira bastante prática e fácil de entender os limites do mercado - e porque é imbecilidade "levar o espírito gerencial ao serviço público," aliás. A idéia era simples: já que conservação e eficiência são investimentos com retorno maior e mais seguros do que qualquer investimento em geração, as elétricas nascidas das privatizações tiveram imposta a obrigação de investir nisso. Por que não deu certo também é simples: que empresa investe para diminuir suas próprias vendas? Aplicada ao serviço público, é o problema de "metas de desempenho," como quando se premia policiais por número de apreensões (ou, pior ainda, confrontos violentos) - qual o interesse desse policial em diminuir o crime?

Seria bem mais razoável endereçar a grana devida a um program público independente (com verba carimbada, e não derivada do OGU), que as implementasse. Não que resolvesse o problema, pois a conservação de energia em geral, quando chega no consumidor, leva a outro problema: quando a energia fica mais barata, por que não comprar mais coisas que usam energia? Como narrado por Cédric Gossart num artigo do Le Monde Diplomatique Brasil de Julho, o problema se estende a quase todo tipo de consumo energético: uma França com eficiência de quase o dobro da de vinte anos atrás e população apenas 10% maior consome bem mais que 50% de energia a mais. Aumentar a eficiência na ponta, apesar de muito mais econômico watt por watt do que qualquer forma de geração, assim, não é tão eficiente assim quando se pensa por esse lado, problemático. (Tem que ser dado um "desconto" pra fazer a conta, portanto.) Claro, isso pensando apenas em watts/hora, isso é, consumo total. A substituição de chuveiros elétricos por chuveiros solares, por exemplo, descontaria da carga de pico brasileira uma Tucuruí inteira.

Resta, portanto, em termos de investimento com o maior retorno possível, o aumento da eficiência no meio do caminho, i.e. em comércio, serviços, indústria - que, afinal, no Brasil ainda são bem mais significativos do que o consumo residencial. E volta meu xodó, até por morar em rua de ladeira da aladeirada São Paulo: o consumo de diesel no país cairia em 15 a 20% (o equivalente à implantação de uma refinaria do tamanho das maiores da Petrobrás) se todos os ônibus urbanos das regiões metropolitanas fossem trocados por equivalentes diesel-elétricos. E isso seria viável com menos subsídios e incentivos do que o Governo Federal está dando para a construção de Belo Monte.

10.8.10

A rosa telepática

Ontem foram 65 anos desde que a superfortaleza voadora Bockscar recebeu a benção do capelão militar junto com seus aviões auxiliares e decolou rumo a Kokura para deixar bem claro que havia mais de onde os americanos tiraram a bomba de Hiroshima.

Nas discussões sobre a decisão do governo americano de utilizar a bomba atômica contra o Japão, uma parte que sempre me parece carecer de resposta é a questão dessa segunda bomba. Afinal, a maioria dos argumentos utilizados para justificar o emprego da bomba atômica sobre Hiroshima glosa esse ponto - desde os press releases preparados pelo Pentágono no equivalente publicitário do Projeto Manhattan até hoje. Depois do horror de Hiroshima, que diferença faria outra bomba? Não existia uma convicção de que os japoneses não iam se render incondicionalmente, apenas uma suposição (hoje, o consenso é de que eles provavelmente o fariam mesmo sem a bomba). Do mesmo modo, não é plausível que Stalin achasse que a Little Boy era irreproduzível.

Pra que serviu (fora para matar mais 80.000 pessoas) o Gordo, afinal?

Pode-se dizer para que não serviu para deixar os japoneses com ódio dos americanos; o Japão do pós-guerra é americanófilo ao ponto de ter como esporte mais popular o beisebol. Até a aliança militar entre os dois é estreitíssima, apesar de desigual, impopular entre boa parte dos japoneses, e curiosamente explicada...



(Aparentemente, o pessoal de propaganda do Pentágono não é mais tão bom quanto já foi...)

4.8.10

Chaebol

No Valor de hoje, se menciona que os frigoríficos brasileiros - um mercado que já era concentrado o bastante pra sofrer denúncias de truste - se consolidaram ainda mais com apoio do BNDES.

Continua, pelosvisto a idéia do Lessa de se criar "chaebols e zaibatsus" brasileiros. Podiam, já que é assim, jogar fora logo a cara estrutura brasileira de defesa da concorrência. Por outro lado, não dá pra dizer que BNDES e CADE são o único caso de órgãos operando um contra o outro dentro do esquizofrênico governo Lula - o Ministério da Agricultura e o Ministério do Meio Ambiente que o digam.

3.8.10

Sacronsantíssima do pau oco

Uma das preocupações alegadas por muitos conservadores é o caráter sagrado da propriedade privada, com a qual o governo não deveria nunca se mexer, a não ser em casos extremos. Assim, o MST é uma organização terrorista, que deveria ser extinta a ferro e fogo, por ousar questionar essa santidade; a CNA arruma simpatizantes entre as camadas urbanas justamente ao falar da propriedade privada com a alegação farsesca de que os que questionam a propriedade privada dos meios de produção fá-lo-ão também dos apartamentos em que vive a classe média.

O que é curioso é que esse apego não se aplica quando, por exemplo, se fala em remover favelas. "Mas aí a propriedade não é dos favelados, eles invadiram terras públicas," retrucariam. Ora, se for por aí a maioria absoluta das terras de fazendeiros da CNA também foi obtida através da grilagem de terras públicas. Mas espera, tem mais: também ninguém fala em socialismo totalitário quando o estado desapropria propriedades particulares para ajudar empreendedores privados, como a Prefeitura do Rio se orgulha de ter feito na Zona Portuária, ou o Estado do Rio nos 78Km2 entregues ao Eike Batista para fazer seu porto. Não há invasão nenhuma aí; há um proprietário de um imóvel que pôs um preço nele pra transferi-lo a outro particular.

Vista a falta de grita nesses casos, fica a suspeita de que é dar a propriedade aos pobres, ao invés de aos ricos, que é questionável. Talvez se arranjarmos algum playboy com nome quatrocentão para ser chamado de "dono da MST participações" a coisa se resolva. Sugiro o Índio da Costa.

2.8.10

Os trilhos e a locomotiva

O Globo e o Estadão denunciam, apoiados em estudos do IBMEC: com os 36 bilhões do trem-bala entre o Rio e Campinas daria para construir mais de 200Km de metrô. A preocupação dos dois com transporte urbano é tocante, apesar de não se estender à denúncia da conversão, acertada entre a prefeitura do Rio e o Comitê Olímpico Internacional, do que seria uma ligação por trilho por uma autopista com ônibus rápidos, de modo a permitir que esta fosse usada pela "família olímpica" e carros privados, mas tudo bem.

O que é um pouco curioso é que o grande amigo dos diretores do Globo e do Estadão, o governo de São Paulo, alardeia para quem quiser ouvir (e para quem não quiser também, com um investimento quase bilionário em publicidade) que, ao custo de 20 bilhões, está construindo 16Km de metrô. Enquanto o Globo consegue pagar menos de 180 milhões por Km de metrô, o governo de SP paga 1.250 milhões, só míseros 1.070 milhões a mais. Talvez fosse o caso de as famílias Marinho e Mesquita avisarem a seus amigos no governo onde estão comprando metrô baratinho - espero que não seja no camelô ne na Daslú.

Outra curiosidade dessa construção de metrô é que ela é alardeada como uma prova da eficiência do governo paulista. Ora, é antes uma prova do dinheiro disponível. Afinal, São Paulo não é apenas o estado mais rico do Brasil, tanto em termos da riqueza total quanto da por cabeça: é também o beneficiário de uma legislação fiscal no mínimo curiosa. Responda rápido: qual o governo estadual brasileiro que recebe mais dinheiro da produção de petróleo? Se respondeu Rio de Janeiro, errou: o Rio recebe royalties que valem mais ou menos uns dois terços do valor que São Paulo recebe de ICMS.

O ICMS, maior imposto cobrado no Brasil, é regulado pela Lei Kandir. Incide sobre a venda ou circulação de qualquer bem ou serviço, e é cobrado na origem, isto é, no local de produção, com a única exceção, explícita, de produtos energéticos (petróleo e eletricidade) e lubrificantes. Ora, isto quer dizer que, quase explicitamente, beneficia São Paulo (e em menor escala, Santa Catarina) em detrimento do resto da federação. Se essa cláusula fosse eliminada, a arrecadação de São Paulo diminuiria em 16 bilhões por ano - quase, anualmente, o total investido em metrô ao longo destes últimos oito anos. O Rio ficaria com a maior fatia disso, 10bn. Espírito Santo, Paraná e Pará ganhariam pouco mais de um bilhão cada; e os outros 2 bilhões iriam para o resto da federação.

É isso mesmo: o estado mais rico do Brasil recebe, por lei, um subsídio especial tirado dos outros estados. Um pobre consolo é que, pelo menos, os estados mais afetados negativamente por essa cláusula são, com a exceção do Pará, também ricos. Por outro lado, essa situação mudará com as novas hidrelétricas amazônicas, acrescentando Rondônia à lista.

Nem essa situação é nova, no Brasil. São Paulo não ganhou sua preponderância econômica devido ao acaso nem à virtude quase-racial do povo paulista ainda ensinada em algumas escolas. O Brasil, longe de "tirar dinheiro dos homens de bem do sudeste para sustentar os vagabundos nordestinos," sempre tem transferido renda, via governo nacional, dos estados mais pobres para os mais ricos, desde o fim do século XIX. Tome por exemplo os imigrantes: aprendemos na escola que os primeiros imigrantes, destinados a substituirem os escravos, comeram o pão que o diabo amassou, o que é verdade. O que é menos mencionado é que a imigração, parte de uma política de branqueamento racial deliberada, era subsidiada pelo governo nacional. E que após essa primeira leva, os imigrantes receberam vantagens econômicas diretas do governo nacional e daquele da província de São Paulo.

Outras transferências abundam: assim, na República Velha, a função principal do governo federal parecia ser garantir os lucros dos cafeeiros. Quando começou a industrialização pesada sob o Estado Novo, as instalações ficaram todas no Rio e em São Paulo. Os subsídios à indústria se intensificaram com Juscelino, e novamente, numa visão curta da eficiência do investimento, se incentivava a indústria do sudeste e o extrativismo em outras regiões; assim, mesmo coisas alegadamente destinadas a promover outras regiões funcionavam como as ajudas externas americanas destinadas a minas na Guiné; a zona franca de Manaus é uma meia exceção.

O sudeste brasileiro é a região mais rica, e dentro dele São Paulo é o estado mais rico, por vários motivos. Um dos pouco mencionados, e dos mais importantes, é que o governo brasileiro não transferia renda regressivamente apenas no campo do indivíduo, mas também entre regiões. Isso agora está começando a mudar, com a atuação do BNDES direcionada a novos empreendimentos industriais no nordeste e o bolsa família. Mas só começando. Assim, não é de se surpreender que enqunato nos EUA o estado mais rico, Maryland, tenha uma renda (70.000USD) de um pouco menos do que o dobro do mais pobre (37.000, Mississippi), no Brasil essa diferença é de um pouco menos de cinco vezes. (SP R$ 22.000, Piauí 4.500). A diferença entre a renda per capita do Sudeste, excluída Minas Gerais, e a do Brasil é similar à diferença entre Maryland e o Mississippi, o que é ainda mais grave se levarmos em conta o quanto a região, com quase um terço da população brasileira, distorce o dado nacional.

Por isso que, mais uma vez, digo: menos mal que, pelo menos, sejam atualmente o Rio e o Paraná os financiadores do metrô de São Paulo. Pelo menos não é o Piauí.

17.6.10

Espaçoso

Um dos problemas dos órgãos públicos, especialmente em áreas densamente povoadas, é encontrar terrenos a preços baratos para construir habitação popular. É o que leva à clássica enunciação do problema de decidir entre requalificar favelas (ou mesmo permitir a sua permanência em áreas problemáticas) ou levar as pessoas para áreas distantes e que necessitariam de infraestrutura cara. (Para além de, em muitos casos, não serem razoáveis para os moradores nem com essa infraestrutura.) Por isso, vão aí algumas sugestões.
 
1.  O estádio da Gávea, que não serve pra nada, está num terreno da prefeitura. Oficialmente, o Flamengo não pretende nunca mais usar ele pra abrigar partidas de futebol, então nem a alegação tênue de que futebol é interesse público se justifica. Ora, naquela área poderiam ser erigidos 1400 apartamentos - ou, se preferirem, toda a população do Laboriaux ou do Parque da Cidade. Aliás, os diversos clubes que pontilham a orla da Lagoa Rodrigo de Freitas também ou não pagam nada ou pagam uma merreca por ocuparem área do município; se metade passasse a pagar um aluguel justo e metade fosse embora e a área usada para habitação social, as favelas em volta ficariam bem esvaziadas. Do mesmo modo, quase todos os terrenos ao longo da Marginal Tietê são ocupados em regime de comodato, principalmente aqueles ocupados por clubes e associações.
 
2. A refinaria de Manguinhos não tem escala pra ser uma refinaria moderna. Nem pode vir a ter, no terreno exíguo de que dispõe; hoje em dia, os donos (que a compraram para receber créditos fiscais bem duvidosos concedidos pelo governo do Estado) ficam (fingindo que) procuram algo pra fazer com ela, de refinaria de biodiesel a termelétrica. Bem, o terreno é exíguo para uma refinaria, porque é um terreno de meio quilômetro quadrado, próximo ao Centro da cidade, sanduíchado entre linhas de trem, a Avenida Brasil, e a Linha Vermelha. Daria pra fazer em parte dele um parque e na outra parte mais de 10.000 apartamentos (contando a área para pracinhas, ruas internas, comércio no térreo, e um CIEP.)

3. Não dá pra deixar de repetir: o último dado que saiu registra que as forças armadas brasileiras têm 136Km2 de área nas capitais, excluída Brasília. Muito disso em áreas nobres e/ou bem servidas de infraestrutura. Vende-se a parte em áreas nobres, conserva-se o que seja necessário, e voilá: mais uns 60Km2 de área e dinheiro pra fazer a urbanização. Uns 2 milhões de apartamentos.

12.6.10

Círculos

O projeto de reforma do código florestal brasileiro elaborado pelo (ex)comunista Aldo Rebelo* podia ser chamado também de projeto de revogação do código florestal brasileiro. Tem mimos como perdão de crimes, além de eliminar restrições ambientais óbvias que vigoravam literalmente desde tempos coloniais, como a proibição de se desmatar cumes de morros, num país tropical caracterizado por fortes chuvas e solo frágil. As poucas restrições ao desmatamento que mantem, ele faculta aos estados remover. (Santa Catarina, em especial, já tentou fazer isso mesmo antes da nova lei, na cara dura inconstitucional.)

O curioso pra mim dessa sanha antiambiental dos ruralistas brasileiros é a cegueira dela. Os sojicultores que lutam pelo fim da proteção dos mananciais se dão conta de que isso vai fazer com que eles tenham que pagar caro pela água que hoje rega de graça a soja deles? Os pecuaristas que lutam pelo direito de acabar com o pantanal se dão conta de que não dá pra criar gado em grande densidade num deserto? Os únicos contribuintes para o projeto do Aldo Rebelo que fazem sentido são as papeleiras que querem receber dinheiro do governo para "reflorestar" com eucalipto áreas desmatadas.

É até curioso que as elites brasileiras tenham tão pouco apreço pela natureza em todos os níveis. Me dei conta de outra iteração desse desapreço quando olhava um mapa de São Paulo outro dia. Não é apenas a falta de parques e praças na cidade, apesar de essa ser assustadora. É que ela, como a maioria das cidades brasileiras, não possui um cinturão verde. É até curioso, se você pensar que parte da retórica justificando o multibilionário e ambientalmente problemático rodoanel falava que as cidades "desenvolvidas" possuíam rodoanel.** Ora, as cidades "desenvolvidas" também têm um verdeanel, e não só não se falou de fazer um para Sampa como ainda se destruiu, com a construção do rodoanel, boa parte de uma das duas franjas verdes da cidade. (A área de proteção das represas, ao sul, que se mistura com os parques da Serra do Mar. Ao norte, menor e mais ameaçada, a cidade tem a serra da Cantareira.)

Os cinturões verdes têm uma origem pouco cheirosa, literalmente: originalmente, a expressão significava a área ao redor de um núcleo urbano que era fertilizada pelos dejetos deste. O cocô (de gente e animais de tração) e lixo orgânico, que eram quase a totalidade do lixo antes da era industrial, viravam excelente adubo, possibilitando a formação de um cinturão que por sua vez supria quase inteiramente as necessidades alimentares da maioria das cidades localizadas em climas minimamente razoáveis. (A forma específica desses cinturões variava muito, dos vergéis do Al Andalus aos trigais bizantinos, aos jardins flutuantes (literalmente) de Tenochtitlán.)

Dessa importância para o abastecimento surgiu, metamorfoseando-se em importância paisagística e cultural, a idéia de fazer cinturões verdes, áreas non aedificandi, ao redor das crescentes metrópoles industriais do século XX. Os subúrbios mais remotos da cidade estão, assim, separados por uma área verde, protegendo a cidade em vários sentidos. Na América do Norte, a idéia começou a ser divulgada mais tarde, e alcançou em muitos casos um patamar superior, com os ideais da City Beautiful precedentes se combinando, formando quase uma roda verde.

Cinturões verdes têm sua cota de críticas - afinal, todos os subúrbios a ser construídos fora deles ficarão, por definição, uns 10, 20km mais distantes, o que é caro em termos de infrastrutura e especialmente danoso quando se tem um padrão urbanístico de sprawl anglo-saxão. Além disso, como a área de proteção de mananciais da Billings bem demonstra, políticos apreciam a facilidade de construir estradas e outros trambolhos de infra em cima deles, sem precisar de desapropriações complicadas. Mas, bem, uma dessas críticas se aplica menos por aqui, e a outra se refere, não ao cinturão em si, mas a gente que o destrói.

Oficialmente, São Paulo até tem um cinturão verde. Olhando a foto ou mesmo o mapa oficial, é difícil de entender quem achou que isso era um círculo. E essa foto é de 1996, que também é a data da última ação relatada no site do cinturão verde de SP. Hoje em dia, o "anel" já foi degradado e - parece até piada - é em parte dele que vai ser enfiado o novo aterro sanitário da capital. Pra ser mais exato, pertinho de onde pretendem construir a parte leste do rodoanel.

Em escala nacional, tem um movimento que se autodenominou cinturão verde europeu, que tenta aproveitar as áreas verdes surgidas por acaso da história ao longo da Cortina de Ferro, numa situação parecida, se menos absurda, com a da Zona Desmilitarizada coreana, que já foi Lugar Estranho do Mundo por aqui.


*Agora convertido em defensor de agrocorporações e latifundiário, com laivos de nacionalismo do tipo esposado pelos milicos, como a seguinte declaração demonstra: "Querem interditar a infraestrutura, tutelar os índios e trazer boas novas da defesa da natureza com financiamento farto, como braços paramilitares de interesses internacionais".
**Com direito a um press release do governo no qual se exclamava que Moscou tinha "cinco rodoanéis já" - incluindo na lista até a rua que circunda os muros do Kremlin. Por essa classificação, São Paulo já tem uns três.

4.6.10

A palavra é sweatshop

A Apple passou, semana passada, a Microsoft, em termos de valor de mercado. Uma reversão espetacular da situação a que muita gente estava acostumada, possibilitada pela diversificação que levou a empresa a investir em mercados distantes dos desktops, como os iPods, iPhones, e agora iPads. Infelizmente para a companhia, a notícia veio junto com uma onda de suicídios entre os operários que fabricam os gadgets bonitinhos, mudernos e descolados dela, nas fábricas gigantes da taiwanesa Foxconn na China continental. Muitos applemaníacos, que tendem a se considerar vagamente de esquerda, provavelmente ficaram chocados ao ler o anúncio de Jobs de que a Apple aumentará o salário médio na fábica para 171 dólares por mês. Isso mesmo, meio salário mínimo por mês. Por jornada de trabalho de 54 horas semanais.

Na verdade, não é novidade nenhuma. A Apple, apesar de ser vista como alternativa pelos seus usuários e design, e por ser considerada a Davi contra Bill Goliath Gates, sempre foi das empresas americanas com os piores desempenhos em termos de responsabilidade social; Steve Jobs é conhecido por estar a um passo de Ebenezer Scrooge.

Mais assustadoramente, o trabalho semiescravo (ou escravo mesmo, como na zona industrial de Kaesong, que diga-se de passagem não foi fechada apesar de teoricamente os dois países estarem à beira de uma guerra apocalíptica) é essencial a todo e qualquer bem de consumo de alto valor agregado humano e baixo custo. É muito provável que a roupa que você está vestindo tenha sido feita por um escravo. Boliviano em São Paulo, centroamericano em Nova Iorque, africano ou iugoslavo em Milão, marroquino em Barcelona, chinês em qualquer lugar do mundo. A grande produção horticultural dos países centrais, como o carvão vegetal do aço brasileiro, o carvão que move a indústria chinesa, ou quase qualquer coisa ainda tem trabalho semiescravo.

Pense no Haiti - ele é no mundo inteiro.

31.5.10

28.5.10

Confuso

A declaração de guerra do Serra à Bolívia, e a tentativa dele de justificá-la, talvez tivessem causado confusão em quem pensasse nela literalmente, ao invés de politicamente. Afinal de contas, a Bolívia é, no máximo, centro de produção da folha e passagem de tráfico destinado à Europa (no segundo caso, exatamente como o Brasil). A única ligação do Evo Morales com isso é o fato dele ser um ex-cultivador de coca, com ligações a outros cultivadores do altiplano, a maioria dos quais o faz para consumo na forma de chá, e não para vender aos cartéis (o cultivo boliviano para envio à Colômbia está no norte). Enquanto isso, o governo de Uribe na Colômbia tem ligações próximas com os cartéis do tráfico propriamente ditos, com direito ao irmão dele ser considerado chefe de cartel, e Serra não declarou guerra à Colômbia.

Claro que ninguém ficou confuso de verdade; o ataque de Serra foi a Evo Morales e ao Movimento Ao Socialismo, e a droga só pretexto. Mas isso leva à segunda confusão: qual é, afinal, hoje em dia, a ideologia do PSDB? O PSDB se pretendeu, quando foi criado, uma versão brasileira dos partidos liberais europeus (por que escolheu o nome "partido da social democracia" tendo isso em vista, não me pergunte). Mas hoje, enquanto parte do Democratas tenta se livrar da pecha de partido da ditadura, e assumir justamente essa posição, o PSDB está à deriva ideológica. Ele é contra tudo que é de esquerda, do MST ao Evo Morales, e principalmente contra o PT, mas é a favor do que afinal? Do liberalismo econômico, procura se distanciar sempre que pode (até o Mendonça de Barros finge que não queria vender a Petrobrax). Do conservadorismo social, idem. É contra a esquerda mas não é a favor da direita, então. Aliás, nem é contra toda a esquerda - agora, não critica mais diretamente Lula.

Qual é a ideologia do PSDB de 2010, afinal?

20.5.10

Feature, not bug.

A Folha de São Paulo avisa que o Bolsa Família está "prejudicando a agricultura no Nordeste." Não que o candidato deles seja contra, claro... mas o que me choca é a cara dura com que a Folha reporta que, segundo o estudo, o BF está prejudicando a agricultura porque as pessoas preferem recebê-lo a trabalhar nas fazendas estudadas. O Bolsa-Família é equivalente a um terço do salário mínimo. Se alguém prefere recebê-lo, é porque estava ganhando para trabalhar menos de um terço do salário mínimo. Que já não é grandes coisas. Eliminar esse tipo de "emprego" não apenas não é ruim, como é justamente uma das metas de qualquer sistema de transferência de renda. O BF está fazendo o papel de fiscal do ministério do Trabalho.

O único senão aí não é o apontado pela Folha, no qual pobres fazendeiros escravocratas não conseguem mais arrumar bóias frias. O problema é que o sistema-mundo capitalista contemporâneo, como um todo, realmente insiste na necessidade do subemprego. Foi isso, combinado com os programas de assistência social, que levou à grande migração das ex(?)colônias para a Europa durante os anos dourados, já que os europeus preferiam não se sujeitar aos empregos mais degradantes, perigosos, ou mal pagos (em bom urdu, gobar ka kan, que é exatamente o que soa). Será que, com a estruturação de um sistema social no Brasil, veremos aumentar a imigração?

Eu sou a favor. Principalmente se conseguirmos evitar a xenofobia (fat lot of chance, com o que já tem de gente aqui no Sul-Sudeste reclamando dos próprios brasileiros) e se tiver um monte de restaurantes bolivianos, nigerianos, angolanos, peruanos...

19.5.10

Brasil Global

Todo mundo sabe (já foi Lugar Estranho do Mundo aqui) que o Mar de Aral encolheu graças às plantações de algodão soviéticas. Mas quantos se lembram, mesmo no Rio, que a Lagoa Feia também encolheu, para um quarto do volume e metade da área originais?



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O Brasil passou os EUA em produção de automóveis. (Não estão contados os SUVs que respondem por boa parte dos veículos de passageiros vendidos na Gringolândia.)


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Outro lugar estranho do mundo um pouco repetido (Gioia Tauro): o governo do Estado de São Paulo pretende fazer um porto enorme em São Sebastião, sanduichado entre o mar e os morros e com acesso inteiramente por rodovia rasgando um parque natural. Detalhe curioso: a sede do porto de São Sebastião não é lá, mas na Avenida Faria Lima.

11.5.10

De terras, think tanks, e toupeiras.

A matéria paga da CNA na Veja despertou muita controvérsia, em especial pela cara de pau com que a revista inventou declarações que foram atribuídas a antropólogos de destaque. A matéria em si, além de mentirosa, é muito ruim. As noções casadas da Veja de cultura como algo essencial e estanque, e de que há uma diferença qualitativa entre a cultura "primitiva" e a moderna, por exemplo, atribuída por eles ao Eduardo Viveiros de Castro, são coisas que qualquer estudante de primeiro semestre de antropologia vai te dizer que são burrices. Marcel Mauss já denuncia a segunda em 1921, e as duas tiveram as pás de cal no começo dos anos setenta, com o trabalho de Pierre Clastres e da escola de Oslo.

Para além da matéria em si, cabe observar duas coisas interessantes. Uma é que a CNA fala que sobraria para a expansão agropecuária brasileira "apenas" 270.000km2, ou 50% a mais do que a área hoje plantada, ou o território inteirinho de países insignificantes como o Reino Unido ou a Itália. A outra é que a matéria se insere num contexto em que a CNA está, através da FGV-SP, contestando o Censo Agrícola do IBGE. O que é contestado, não apenas pelo IBGE, mas por todos os outros pesquisadores não pagos pela CNA. De certa forma, é a quase-vice do Serra mostrando que a Bancada Ruralista, mais que qualquer dos partidos oficiais do Congresso (mais até do que o largamente coextensivo a ela Democratas), tem se inspirado na política americana, dessa vez na produção de estudos pagos. Será a thinktankização do Brasil?

Agora, o mais interessante de tudo: a CNA, em outro estudo menos badalado do que esse (talvez por não mentir diretamente sobre declarações de pessoas alegadamente entrevistadas), questiona o peso da produção familiar na agricultura. Isso é interessante porque as "primas" da CNA mundo afora, apesar de também dominadas pelos grandes proprietários, sempre basearam sua legitimidade política na representação dos pequenos proprietários. Isso desde a época em que Junkers dominavam o parlamento do Kaiserreich até hoje, de tal modo que nos EUA, onde a concentração fundiária é pior até do que aqui, quando se fala em fazendeiro não se pensa na Archer Daniels Midland ou na Bunge (esta não tem acionista majoritário e está sediada legalmente nas ilhas Bermudas), mas nos pais do Superhomem, e na França "camponês" e "fazendeiro" são hoje quase sinônimos. A CNA sempre foi exceção a essa regra, tanto que tem requerimento de tamanho mínimo da propriedade rural para alguém se juntar a ela, mas agora extrapolou isso para atacar diretamente o pequeno proprietário (e não apenas o vilão de sempre da direita brasileira, o sem-terra). Como isso não é usado por ninguém para atacar a bancada ruralista, sua expressão política, é algo que me escapa.

6.5.10

Petrobráxicas

Os programas de energia alternativa do governo federal não foram, de modo geral, exatamente um sucesso retumbante. Isso porque têm sido prejudicados pela obsessão com o retorno seguro do BNDES (curiosamente ausente no programa de energia não-alternativa das hidrelétricas e linhões amazônicos). Agora, a parte do biodiesel de Dendê repaginada. Pode ser que dê certo, até porque a Petrobrás pretende entrar no négócio diretamente.

Uma coisa que achei interessante da notícia é que uma das áreas priorizadas é o paupérrimo noroeste fluminense, hoje dependente de uma cultura de cana e gado de baixíssima produtividade, mas estrategicamente situado pertinho de centros de demanda e da infraestrutura da Bacia de Campos. É útil inclusive porque as prefeituras locais, ao invés de usar a renda dos royalties e compensações para se preparar para o fim do petróleo, têm usado elas para...treinar trabalhadores para a indústria petroleira, que fica feliz por não ter que bancar a conta ela mesma.


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O primeiro petroleiro novo da Transpetro, além de se chamar João Cândido, vai ser batizado, não por uma socialite, executiva, ou mulher de executivo, como é de praxe, mas por uma operária do estaleiro. Bando de comunista.

5.5.10

There is no alternative

A frase acima é de Margareth Thatcher e condensa bem o argumento dos que defendiam o que se lhe seguiria, em termos de política econômica, nos próximos trinta anos até a crise econômica de 2008. Disse até a crise econômica? O pacote imposto à Grécia ainda partilha dessa visão, e com a mesma declaração arrogante.

Entretanto, em terras da Índia Jaci, a posição do governo federal e de outros proponentes da construção da barragem de Belo Monte - que, como já disse aqui, não é só um problemão ambiental, mas também de economicidade duvidosa - segue o mesmo argumento. Alternativas são descartadas como obviamente impraticáveis. Ora, isso é curioso, porque alternativas, inclusive mais econômicas, foram detalhadas num relatório da UNICAMP e do WWF em 2004, já atualizado. Ponho o link em inglês porque o link em português tá quebrado.

Enquanto isso, o Plano Decenal de Energia, da Empresa de Pesquisa Energética, órgão do governo responsável pelo nosso planejamento energético, é tão transparentemente uma peça de lobby pró-hidrelétricas que A) ignora solenemente o custo, de investimento e manutenção, envolvido nas hidrelétricas amazônicas propostas, e faz a conta delas pela capacidade máxima, ignorando a sazonalidade, e B) alega que "não está prevista a construção de novas termelétricas fósseis, mas se não permitirem as hidrelétricas na Amazônia..." Capisce? Bela loja a sua, signore, bela loja.

Duas curiosidades saindo de nossos domínios paroquiais, e tendo a ver com hidrelétricas gigantes e perdas na transmissão:

A) As grandes planícies americanas são chamadas pelos ativistas ambientais gringos (e pelos empresários do setor) de "Arábia Saudita do vento." Isso é meia verdade, justamente por conta das perdas na transmissão. Com a exceção das franjas(especialmente no Texas), a área dessa Arábia é um semiárido frio e esparsamente povoado, e a combinação da baixa capacidade* e confiabilidade de usinas eólicas com a necessidade de enormes linhas de transmissão dedicadas não é muito atraente. Nesse aspecto, o Brasil, apesar do potencial eólico econômico ser relativamente menor (uns 39GW, ou quase três Itaipús), está mais bem situado, já que as áreas de bons ventos se constituem de núcleos pequenos próximos aos centros de demanda no Sul-Sudeste, uma franja marítima próxima de centros de demanda e distante de outras fontes no Nordeste, e o Vale do São Francisco acompanhando o linhão que liga NE e SE; ou seja, praticamente não há necessidade de construção de linhas de transmissão, e muito pouca perda de energia.

B) Acha que Belo Monte é grande? Com características semelhantes (turbinas fora da barragem principal, aproveitamento em curva, barragem a fio d'água) à represa amazônica, querem represar o Congo. Pra situar as coisas, o Congo é o segundo maior rio do mundo (OK, terceiro, se você contar o Rio Negro), umas três ou quatro vezes maior do que o Paraná, onde se encontra Itaipú. A barragem geraria uns 40GW de energia elétrica, ou se preferir oito vezes o consumo atual de energia do Congo, sem contar os 12GW adicionais das barragens subsidiárias. Como a maioria das megaobras de infraestrutura, Grand Inga busca uma raison d'etre que justifique investir 80bn de dólares (subsidiados pelo Banco Mundial, chamados de ajuda externa, e provavelmente com grana arrancada ao periclitante governo congolês, além dos governos dos investidores, claro). Uma das mais alucinadas envolve a implantação de linhas de transmissão entre o Congo e a Europa.

16.4.10

Salve o Almirante Negro

O primeiro navio lançado ao mar por um estaleiro brasileiro desde o Condoleezza Rice, ainda na década de 80, vai se chamar "João Cândido."

Vai ter milico enfartando.

(Eu ainda acho que um monumento legal, ao invés da estátua da praça quinze, seria arrumar algum cais - pode ser o do próprio porto do Rio ou o do Arsenal da Marinha, na Ilha das Cobras, e gravar em literalmente todas as pedras as palavras "João," "Cândido," "Almirante" e "Negro.")

15.4.10

Minas e energia

Em geral, a se julgar pela necessidade de cavar escândalos de cinco anos atrás evidenciada pela imprensa, o governo Lula parece ser menos corrupto stricto sensu do que seu antecessor. Lato sensu, também parece ser menos obediente aos grupos privados, apesar das agências reguladoras (todas, praticamente, inteiramente capturadas pelos interesses de seus regulados). A grande exceção a isso é no caso das grandes obras de infraestrutura.

Dois exemplos flagrantes, ambos na pauta esta semana por conta do ministério público de de protestos de ambientalistas, são a hidrelétrica de Belo Monte e o porto de Ilhéus (com ferrovia correspondente). Não que haja corrupção propriamente dita em nenhum dos dois (que se saiba), mas que ambos são projetos que só se justificam em nomes de interesses de grandes corporações, na melhor linha de pensamento "o que é bom para a GM é bom para os EUA."

Belo Monte, por exemplo, não é econômica. Vai gerar de energia firme, pouco mais de 4Gw - 30% mais do que uma das usinas do Madeira, a um custo 200% maior. E com o mesmo problema daquelas, que é a perda de quase metade da energia ao longo dos milhares de quilômetros separando elas do consumidor - ou seja, pode dobrar de novo esse custo, comparando com uma usina eólica no Ceará ou em Minas, ou uma termelétrica. Para que alguém ainda se interesse por construí-la, o governo teve que armar um pacote de bondades enorme que, na prática, significa que nós vamos pagar por essa energia, e a fundo perdido, e o consórcio construtor entra só com o lucro. Em termos ambientais, além da destruição de um ambiente único que é a Volta Grande do Xingu, tem que se levar em consideração, novamente, os linhões, e a migração que a mera notícia da usina já tem causado. Isso tudo sem nem levar em conta o caráter boi-de-piranha de Belo Monte, projetada para ser a última de uma cascata de hidrelétricas no Xingu.

Em Ilhéus, por outro lado, está se falando de construir um porto offshore enorme e caro, com ferrovia acompanhando, basicamente para atender aos interesses da Brasil Mineração. Que empresários privados façam isso, como o Eike Batista no seu porto de Açu, tudo bem (desde que não o façam, como no caso do Eike, desrespeitando a legislação ambiental e de portos, com vista grossa do INEA-RJ e da ANTAQ). E, como mostra o Eike, é um negócio que pode perfeitamente ter lucro com eles mesmos investindo. Por que diabos ao invés disso será o governo a arcar com os investimentos?

Isso tudo é o que me leva a pensar até em votar, no primeiro turno, na Marina Silva, apesar dela aparentar ter ficado maluca ("PV apóia Obama"??), ser criacionista e homofóbica. Só porque a tecla única em que ela bate parece ser justamente o lado em que mais seria necessário segurar a Dilma. Votar contra a Dilma no segundo turno, no Serra aliado da Kátia Abreu, sinceramente, ninguém que tenha o mínimo de preocupação com meio ambiente, índios, quilombolas, sem-terra, ou trabalhadores escravos pode fazer. Kátia Abreu é explicitamente contra a lista toda. Mesmo. Sério

7.4.10

Coisas que não entendo

Ambas desdobradas do post de ontem.

1 - Por que se diz tanto que "no Brasil não tem desastre natural." As chuvas que caíram no Rio desde domingo são comparáveis às que caem durante um furacão.

2 - Por que o soberano do Japão é chamado, nas línguas ocidentais, de imperador. Imperador, desde que Carlos Magno cunhou a palavra a partir do imperator romano (que era só mais um das dúzias de títulos republicanos empilhados nos imperadores, já que oficialmente o império romano continuava a ser uma república), tem um pressuposto ou de universalidade (ecumenicidade, diria o Toynbee), isso é, de domínio teórico e legítimo de todo o globo (como, em mongol, Gêngis Cã, "soberano oceânico") ou de suzeranidade sobre outros reis independentes (é o shahanshah, rei dos reis persa). Um terceiro significado surgiu com os "impérios coloniais" europeus (inclusive, com o caso bizarro de impérios pertencentes a repúblicas), mas, curiosamente, esse significado não se extendia ao soberano, de modo que a rainha Vitória era soberana de um império. (E imperadora apenas na Índia, não na Grã-Bretanha.)

Ora, o Japão não se encaixa em nenhuma das categorias acima. O soberano japonês não se sobrepunha a outros soberanos, nunca se pretendeu soberano com direito legítimo ao globo, nem teve, antes do período entreguerras, império ultramarino. Nem tem algum sentido de venerabilidade, como os imperadores etíopes de linhagem salomônica. Então por que diabos fala-se em imperador do Japão e (por exemplo) rei da Tailândia, que são países equivalentes em quase todos os sentidos? É por conta da revolução Meiji? Não, porque já se falava em imperador japonês antes dela. Tradução do chinês? Não, o tenno é chamado em chinês de wang nihon, "rei do Japão." Então, por que?

6.4.10

Só pra constar

Ontem, no Rio, choveram 283mm. A previsão para hoje é de pelo menos mais 140.

Durante o mês de janeiro inteiro, em que as "fortes chuvas" eram culpadas pelas enchentes em Sampa, choveram 478mm por aqui.

Imagina se caísse essa água em dois ou três dias, ao invés de um mês. Iam ter que afogar muita favela.



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Eduardo Paes admitiu que a prefeitura do Rio não está preparada para as chuvas. Deu pra ver, né? E aproveitou para falar de remoção de favelas. Parece disco riscado, ou o Cheney achando que tudo era motivo pra furar petróleo no Alasca.

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"Serra invoca imperador romano e diz que a sorte está lançada" é a manchete da Folha. Tudo bem que ele é aliado do César (Maia), mas seria melhor citar o Popol Vuh do que o momento em que César (Caio Júlio) decidiu cometer um golpe militar. OK, OK, acho que ninguém mais vai reparar.

31.3.10

Praça Roosevelt 2 - effluvium vitalis

O Jornal do Commercio noticia que os moradores da região Portuária do Rio estão com os dois pés atrás em relação à proposta de revitalização da prefeitura. Têm toda razão, visto que a proposta da prefeitura é explicitamente voltada à realização, como em Puerto Madero, de um empreendimento imobiliário de grande porte, voltado à "cidade global" preconizada pelos andarilhos que consultam os índices de atratividade de cidades da Economist Intelligence Unit antes de se decidir pelo próximo emprego. É basicamente a mesma idéia de cidade defendida pelo César Maia, o que demonstra uma surpreendente linhagem na política de uma cidade que gosta de se pensar de esquerda, e na qual os candidatos mais à esquerda para o governo federal geralmente se dão relativamente bem.

O que é curioso nessa palavra, "revitalização," é que a premissa dela, de que uma área urbana está morta, não é falsa. Nas grandes cidades com mais de cinquenta anos (isto é, quase todas), existem quase sempre grandes áreas com poucos empregos, o que leva ou à depressão econômica dos moradores, ou à sua fuga, ou aos dois. No caso específico da zona portuária do Rio, isso é bem claro; com a perda de importância da atividade portuária, deslocada para o cais do Caju e automatizada, boa parte da área virou uma cidade deserta. E uma área assim deveria, sim, ser revitalizada. Voltar a se encher de gente e de empregos para essa gente.

Entretanto, que a função da "revitalização" quando é mencionada, significa "especulação imobiliária" é provado por um caso flagrante de revitalização de uma área sem intervenção estatal; a revitalização da praça Roosevelt através da mudança, para lá, de companhias de teatro independentes, já mencionada na crônica anterior. O melhor? A prefeitura, após diminuir a intensidade dessa revitalização, continua falando numa obra para "revitalizar" o local. (Isto é, torná-lo mais atraente para o mercado imobiliário.) Do mesmo modo, no Rio, a prefeitura justifica a permissão para que se viole o gabarito da Lapa com a "revitalização" - sendo que na Lapa não só não há falta de vida como, sinceramente, qualquer um que tente atravessar o bairro entre quinta e sábado gostaria que tivesse um pouco menos de vida.

Na Luz, como no Porto do Rio, a alegação de "revitalização" faz um pouco mais de sentido. A solução - um imenso shopping center, além de uma academia de dança - é que não faz nenhum. Shopping centers desvitalizam seu entorno, e não o contrário. Ou melhor, faz todo o sentido só se você fizer a tradução de novilíngua para português.

30.3.10

Outros pagamentos

Além do IR, alguns outros tostões que eu gostaria de ser obrigado a pagar:

*Mais pela água. Outro dia conferi a WaterAid, ONG que leva água a aldeolas paupérrimas nos sertões da África e Ásia. Para que os aldeões não sintam a água como um favor nem desperdicem, cobram uma taxa quase simbólica, de um centavo de dólar por galão de água, pela água fornecida. Pois bem, essa taxa cobrada de aldeões destituídos na África é três vezes mais cara do que a Cedae cobra no Rio, e quase duas vezes o preço cobrado pela Sabesp em SP. Com um caixa engordado em 50, 100% as empresas em questão teriam mais dinheiro para melhorar o tratamento de esgoto, o que até ampliaria a disponibilidade de água - não só levando água aos cariocas e paulistanos que hoje pagam caro no carro pipa, mas aumentando a disponibilidade nos reservatórios poluídos da Billings e do Guandu. E talvez menos gente lavasse a calçada com mangueira.

*Cinco centavos por sacola plástica em lojas e supermercados. Várias cidades mundo afora, notadamente na França e Alemanha, instituíram essa obrigação. Em Washington, DC, a medida cortou a quantidade de sacos consumidos em quase noventa por cento em um único ano.

25.3.10

Comemorando por que?

Hoje é o aniversário do "Act for the Abolition of the Slave Trade," de 1807, no qual a Grã-Bretanha proibiu o tráfego de escravos em seu império. A escravidão em si ainda seria legal por mais um quarto de século. O ato foi o resultado, mais do que (como aprendi na escola) de alguma pressão capitalista oriunda da inexorável marcha da história, de uma campanha ativa e basicamente ideológica contra o tráfego; tanto ainda era lucrativo que ainda havia muitas companhias de negreiros em Bristol, Londres, e Liverpool, mesmo com a grande quantidade de regulações sobre o tráfego empilhadas desde 1786, e com o salário dos marinheiros em alta por conta da concorrência da Marinha embrenhada nas guerras napoleônicas. Aliás, tanto que o que mais houve depois do ato foi capitão inglês indo fazer fortuna nos EUA.

Uma das consequencias dessa campanha foi estabelecer a escravidão como um mal de ordem superior no nosso imaginário. Se se for olhar, por exemplo, obras de fantasia popular, o jeito prático e rápido de criar um grupo inequivocamente malvado é dizendo que são caçadores de escravos (infelizmente, no Brasil não traduzem isso por "bandeirante"). O que é curioso é o quanto isso acabou servindo a um chauvinismo cultural pouco merecido. Explico: ao definir a escravidão como um mal-em-si absoluto, acabou-se por eliminar a diferença, que é grande, entre os diversos tipos de escravidão.

Não que eu não considere a escravidão um mal-em-si, mas a escravidão legal por si só é apenas um dos regimes (que também considero males-em-si) de exploração das pessoas. Um escravo mameluco dos sultões egípcios, ou um eunuco da Cidade Proibida* tinham um status social e posição econômica muito superiores aos da média da sociedade; na Atenas pós-clássica, a situação média dos escravos, excluídos os mineiros, era superior a da média da população; etc etc etc. Mesmo em sociedades construídas no lombo de trabalho escravo em latifúndios, como Roma (a origem da palavra) ou a Pérsia, a situação destes não era particularmente diferente da de outros bóias-frias.

A escravidão que é, essa sim, uma nódoa indelével na história da humanidade, comparável aos genocídios industriais no século XX ou aos massacres dos mongóis e seus descendentes, ou à corvéia Qin e Han, é especificamente a escravidão atlântica. E ela teve paralelos, em termos de hiperexploração, justamente em outros regimes de trabalho estabelecidos no âmbito da colonização européia, como a mita imposta aos índios do Altiplano andino, o apresamento de índios pelos bandeirantes, ou as barbaridades das colônias européias pós-1850 na África e na Ásia.

Constatar isso reverte o chauvinismo cultural. Não fomos** aqueles que acabaram com a escravidão, fomos aqueles que criaram um regime particularmente iníquo de escravidão, que após sua abolição legal se deslocou para o Velho Mundo preservando boa parte de suas características monstruosas. Não se trata, como gostariam os conservadores americanos macaqueados por aqui, de culpa branca, ou de imputar aos europeus uma perversidade ímpar. A perversidade esteve no sistema-mundo criado a partir da colonização da América esvaziada pela varíola, e dela fizeram parte plena os reis africanos que criaram impérios cuja principal fonte de renda era a caça ao ser humano, como depois os déspotas indianos e indonésios que vendiam seus próprios súditos como cules.

Ah, só pra lembrar - hoje há mais pessoas vivendo em situação efetiva de escravidão do que em qualquer outro momento da história da humanidade, aí incluído o auge da escravidão atlântica em meados do século XIX ou o do trabalho cule no começo do XX. A Pollyanna diria que isso é porque a população mundial é maior, e a porcentagem é muito menos que nesses outros momentos. Mas não deixa de ser um dado vergonhoso.

*As cidades proibidas, na verdade - o primeiro uso do nome se referiu ao palácio dos Tang em Kaifeng, e houve muitas capitais da China desde então.
**"Fomos" mó menos. Se você pensar em alguém que se identifica como descendente da cultura ocidental - o que é até razoável, mas pergunte a um europeu ou americano se ele inclui o Brasil no "Ocidente."

24.3.10

Loucos

Gilmar Mendes é um temerário. Assim, mesmo quando ele fala o certo (a "redistribuição" dos royalties é ilegal), o faz quando não devia. (Um juiz opinar sobre algo que pode vir a julgar também é ilegal.)

O governo não é, nem um pouco. Assim, ao invés de encampar uma tecnologia nacional que é mais avançada do que o estado da arte internacional, para fazer o TAV, vai pelo caminho mais prudente fazendo licitação entre as empresas estrangeiras.

O governo de São Paulo contratou uma empresa, a 1,2 milhão, para fazer o pré-estudo de um "hidroanel," uma hidrovia em volta da cidade de São Paulo. Ligando o nada a lugar nenhum, por rios assoreados e poluídos onde nem uma voadeira navega direito. Podiam economizar essa grana, que por um picolé eu digo que não rola.

23.3.10

De Royalties e Rendas

Legal a aliteração, né? Stan Lee ficaria orgulhoso. Enfim: de toda a grita pela emenda Ibsen, que destina os royalties aos fundos de participação subnacionais, fiquei mais interessado, fora o absurdo da emenda, numa tangente.

Primeiro, sobre a notícia em si: a emenda Ibsen é surreal, ilegal, e baseada numa falácia. Royalties são (na acepção de que se trata) uma renda que é paga pelo explorador de um recurso natural à região de origem daquele recurso. No Brasil, curiosamente, os royalties pagos são maiores no caso da exploração de hidrocarbonetos que na exploração de outros produtos minerais - curiosamente porque nós não exportamos hidrocarbonetos, então quem paga a conta somos nós mesmos, e o contrário é verdade no caso dos outros minerais. Essa situação se dá como um jeito canhestro de corrigir outra distorção: devido ao lobby da FIESP à época da Lei Kandir, o ICMS de hidrocarbonetos não é cobrado no estado produtor, como ocorre com todos os outros produtos, mas no estado consumidor. Os royalties mais altos de petróleo seriam uma forma de compensar o Rio de Janeiro pela perda do ICMS.

Agora, pela emenda Ibsen, essa compensação some, e os royalties sobre hidrocarbonetos (e nenhuns outros) seriam desvinculados da origem. Ora, aí você descaracteriza um royalty (pela definição, inclusive, presente na constituição - dí o "ilegal"). Se não tem vinculação à origem, trata-se tão-somente de uma alíquota maior de IPI sobre hidrocarbonetos, mas com um pouco mais de trabalho pro pessoal da contabilidade. Isso é feito em nome da "justiça social," o que além de hipócrita é uma falácia. Se realmente se pensasse desse jeito em geral, Ibsen advogaria pela redistribuição dos royalties de outros produtos, e, quem sabe, do ICMS, IPTU, ITR... e, mais importante ainda, destinaria essa grana, não ao FPM, que serve basicamente para sustentar câmaras de vereadores, mas a investimentos em educação, meio ambiente, e infraestrutura regionais. E nem é tanta grana assim, relativamente falando - os royalties auferidos anualmente somam uns 7bi, mais ou menos um sétimo do valor do FPM ou do FPE. Um quatorze avos dos dois combinados. E é falácia, ademais, porque os municípios do norte fluminense e sul capixaba são pobres e de economia estagnada, e pesadamente impactados pela extração petrolífera.

A questão é que os royalties do petróleo assumiram, no Brasil, uma qualidade algo mítica, de corrida do ouro. Isso pode ser visto no degrau mais baixo da pirâmide social, nas pessoas que enchem as favelas do norte fluminense, como no mais alto, nos deputados do congresso se atirando ao dinheiro dos royalties como se fosse solucionar todos os problemas de seus estados.

Agora, passando à tangente, que me interessou mais. Muita gente usou, pra justificar o "redistributivismo" de fancaria, a renda média do Rio de Janeiro como prova de que este não precisa de receber dinheiro pela atividade econômica ocorrida lá. E, bem, renda média não quer dizer muita coisa. A renda per capita, que é a divisão do produto bruto de uma região pelo número de seus habitantes, é um número tosco que obedece ao velho adágio da cabeça no fogão e pé na geladeira. Assim é que a renda média da cidade do Rio de Janeiro é superior à da cidade de São Paulo, apesar de na prática esta ser mais rica no geral - é que há relativamente mais muito ricos e estes são mais ricos no Rio.

O curioso é que a maioria dos países continue usando a renda per capita como indicador, como o faz a própria ONU. Curioso porque a renda mediana das famílias, indicador de prosperidade utilizado nos EUA, Canadá, e Escandinávia, está longe de ser um bicho papão complicado, novidade, ou nebuloso. Muito pelo contrário - os censos franceses do século XVIII já a utilizavam (falava-se, na época, em "fogos" ao invés de famílias). Renda mediana significa, caso alguém não saiba, que metade das famílias ganha mais, metade ganha menos do que uma dada quantia.

E não, quando se faz esta clivagem, as enormes diferenças regionais do Brasil não somem, nem de longe. Em termos relativos, as poucas grandes diferenças: o Rio deixa de rivalizar com SP para se juntar aos estados do Sul, e Minas vai mais solidamente pro meio do Nordeste. O Maranhão e o Piauí, por outro lado, deixam de estar tão distantes do resto do Nordeste. O DF continua isolado lá em cima. E, claro, ao contrário da renda per capita, a renda mediana brasileira não chega perto das do Cone Sul ou dos lanterninhas europeus.