Saiu, com algum estardalhaço, a notícia no jornal: São Paulo tem o ar menos poluído do que o de outras cidades brasileiras. A notícia, claro, é uma demonstração razoável do perigo de ler só a manchete, e do quanto de informação (que normalmente não é ensinada) é necessário para ler coisas que parecem simples. Ela vai, claro, totalmente contra o senso comum; todo mundo reclama da poluição paulistana, afinal. Normalmente, eu seria o primeiro a ficar feliz com a evidência científica contrariando o senso comum, mas (como sempre) a evidência científica não é algum fato em si caído das mãos de um Deus onisciente. Então, o que diz realmente a notícia, e por que o senso comum, no caso, tá certo mesmo?
Vamos lá: pra começar, a notícia não fala de "poluição do ar" num sentido abstrato, mas de um componente específico da poluição atmosférica, que é a taxa de particulados finos. Particulados finos podem ser traduzidos como fumaça invisível; ao contrário dos particulados grossos, visíveis mesmo em volumes relativamente reduzidos. São partículas com menos de 2,5 mícrons de diâmetro, que inaladas são as principais responsáveis por algumas doenças respiratórias; assim como no caso dos particulados grossos (entre 10 e 2,5 mícrons), as principais fontes de emissão deles são os veículos pesados (ônibus e caminhões) e a indústria em geral. Dessa lista de fontes, se pode ver, mais do que pelo próprio nariz, que há algo errado com a posição de São Paulo como cidade limpa - a desproporção entre tanto a frota de caminhões quanto a indústria paulistanas e a de outras metrópoles brasileiras é maior do que a diferença de área. A RM de São Paulo sozinha tem mais indústria do que qualquer estado brasileiro que não seja São Paulo, ainda hoje. E mais caminhões. Sem algum fator especial que "limpe" o ar, ou suje o das outras cidades, como pode o ar aqui ser mais limpo, se tem mais coisas sujando?
Pois bem, não se trata, bem entendido, da quantidade de tais partículas que "realmente existe," mas daquela que podemos medir; isso, é claro, depende de aonde estão as unidades de medição da qualidade do ar, e como elas funcionam. Ora, a CETESB tem exatamente quatro estações de medição da qualidade do ar que auferem a quantidade de particulados finos na Região Metropolitana de São Paulo. São elas: Ibirapuera (no meio do parque), Cerqueira César (no meio do Hospital das Clínicas), Pinheiros (no parque Villa Lobos), e São Caetano (ao lado do Hospital de Emergências). Três delas, portanto, em áreas grandes, arborizadas, e isoladas do tráfego. Duas longe de grandes fontes geradoras e em áreas altas da cidade (p2,5, mais pesadas que o ar, tendem a descer e não a subir). No Rio de Janeiro, em comparação, as 20 estações ficam espalhadas por toda a cidade, geralmente ao lado das grandes fontes emissoras (em SP, só é o caso da de São Caetano, próxima da fábrica da GM, e mais ou menos da Pinheiros, próxima da Marginal e da CEASA).
Não é, bem ententido, o único caso em que, por maquiagem intencional ou não, as estatísticas ficam longe de representar, seja a realidade, seja o que se pretende que elas representem. Um exemplo é o dos índices de homicídio no Rio de Janeiro e em São Paulo. Eles estão caindo atualmente, graças às milícias e UPPs e ao PCC respectivamente, sem sombra de dúvida. Mesmo levando em consideração as artimanhas estatísticas que diminuíram a taxa artificialmente em fins da década de 90 e início da de 2000, separando homicídios de outras formas de 'crimes que resultaram em gente morta," como "encontro de cadáver" e "auto de resistência (à agressão policial)," é verdade que as taxas de homicídio nos dois estados, e especialmente em suas capitais, têm diminuído. MAS... isso não quer dizer que as ruas estejam mais seguras. A imensa maioria dos assassinatos no Brasil não ocorre "nas ruas," a transeuntes incautos, noção que alimenta a paranóia urbana e deixa o Datena rico; tanto assassinos quanto assassinados são jovens excluídos da periferia, vitimados em confrontos internecinos de gangues criminosas. São essas mortes que diminuíram, e como são a maioria, diminuiu o número total.
Na verdade, as chances de você sofrer um latrocínio - tipo de assassinato da estatística que mais se aproxima da noção do assassinato do nada tão temido pela classe média nos seus bairros razoavelmente seguros - são pequenas. Mas elas estão, em São Paulo crescendo, no Rio estáveis. Ou seja, as metrópoles brasileiras são muito mais seguras do que se pensa, mas ao contrário do que se pensa estão ficando menos seguras... A lista poderia, claro, ir em frente ad infinitum. Entre a preguiça, intenções escusas, e burrice de imprensa e governo, provavelmente sai uma nova a cada dia.
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