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30.7.12

Frederico Lei Casadochoupo

Sim, esta é uma sequência (ou sequela) do post Brincando de Smithsonian Naquele post, eu falava do que faria com uma quantidade estúpida de grana e boa vontade pública. Várias das propostas já se tornaram antiquadas, com as áreas livres mencionadas já ocupadas. Vamos ver se dessa vez, por engano, alguém lê e encampa...

Projeto: áreas verdes para o Rio.

Ao contrário do propalado, a quantidade de área verde por habitante do Rio é relativamente pequena. Pode parecer um contrasenso falar isso ao se olhar no Google Earth para a cidade, com os imensos parques naturais da Pedra Branca, da Tijuca, e do Mendanha. Mas é que esses parques - ou melhor, essas florestas dispostas sobre morros íngremes - não são parques no sentido de áreas verdes que se prestam a uma utilização intensa para o lazer ao ar livre. Cabe menos gente curtindo um domingo de sol nos 32Km2 da floresta da Tijuca do que no quilômetro e meio do Aterro do Flamengo. E esse quilômetro e meio é muito pouco. Não que o Rio se destaque - o maior parque efetivo de São Paulo é o Ibirapuera, apenas um pouquinho maior que o Aterro, e os "parques" paulistanos maiores incorporam, como no Rio, áreas naturais (SP está melhor na quantidade de parques médios, como o Vila Lobos). E a situação é parecida na maioria das cidades brasileiras; Brasília, cujo Parque da Cidade tem mais de 4Km2, é uma exceção. Assim, e tendo em vista a importância até para a saúde do lazer ao ar livre, seria interessante a criação de grandes parques no Rio.

Por outro lado, o zoológico da Quinta da Boa Vista está uma vergonha. Em parte, isso é por conta do descaso administrativo e falta de manutenção, mas em parte é uma simples questão de espaço mesmo. O problema é comum em zoológicos antigos; foi parcialmente resolvido, no zoológico de São Paulo, e tendo em vista a restrição dos recursos, mandando boa parte dos bichos embora. Mas já que eu estou pleiteando recursos ilimitados (sei lá, do Eike), vamos ignorar isso de restrição de recursos.

Existem algumas áreas verdes bem significativas no perímetro urbano da metrópole do Rio de Janeiro. Além daquelas de morro, já mencionadas, elas são

Alagadiços da Zona Oeste
Base Aérea de Santa Cruz
Plantações de aipim e coco em Santa Cruz
Aeroporto de Jacarepaguá
Base aérea dos Afonsos
Campo de treinamento (de artilharia) do Gericinó
Granja (antigamente de criação de animais para abastecimento de navios) da Marinha, em Caxias


Desses, os dois primeiros podem ser descartados. Um já deveria ter virado área de preservação ambiental, e o outro é uma base que provavelmente será expandida no futuro. Os cinco de baixo, entretanto, poderiam ser usados para se fazer grandes parques urbanos. Não se trata de área passível de 'preservação' ambiental, mas de requalificação para virar parque, já que são poluídas e/ou utilizadas por veículos pesados. E não são tão úteis em sua configuração atual, já que as áreas das forças armadas são pequenas demais para treinamento militar, e o aeroporto de Jacarepaguá é um aeroporto de negócios secundário, sem a importância eg do Campo de Marte. Além disso, com a transformação do aeroporto em Jacarepaguá em heliporto, e portanto das restrições à altura dos prédios nos cones de aproximação, se dobraria a área construível no Centro Metropolitano da Barra, o que seria bom para a cidade e melhor para as construtoras que financiam campanha de tanto político.

Num dos parques, se situaria o novo zoológico, à moda do Bronx Zoo, enquanto meia dúzia de bichos (eu sugeriria as aves, alguns dos veados, e répteis) apenas ficaria na Quinta. O melhor, para mim, seria na Granja da Marinha, porque fica às margens da BR-040 e de uma estação de trem, e na Baixada Fluminense que carece de grandes equipamentos culturais. E já que bichos, especialmente ungulados, já fedem mesmo, não ia ser problema o fato de estar próximo ao mangue e ao (prestes a ser fechado) aterro de Gramacho. Os outros poderiam ficar apenas como parque mesmo. No do Gericinó, poderia ser feita uma grande quadra de funk oficial, além de com árvores grandes em volta bloqueando o som para os vizinhos. No de Santa Cruz, uma expansão da "cidade das crianças," com piscinão. No Campo dos Afonsos, a pista pode até ser mantida, como expansão do museu aeroespacial.

23.7.12

Fly Dilma Fly

Dilma Roussef planeja adquirir um Jumbo para termos um avião presidencial "à altura do Brasil Potência." Pobre quando come melaço se lambuza mesmo. Esclarecendo: em 2005, quando a presidência da República comprou um avião, apelidado na imprensa de Aerolula, fui dos que defenderam a medida da acusação de gastança desnecessária. O Brasil, à época, não possuía propriamente um avião presidencial que prestasse; o Sucatão, com esse apelido carinhoso, era perigoso o suficiente para que FH, entre 99 e 2002, deixasse-o de lado e fretasse (a preço de ouro) aviões da TAM.  Não é o caso agora, como uma lista das datas de aquisição de aviões presidenciais brasileiros demonstra:

1941
1954
1968
1976
1986
2005

Reparem que o único a adquirir um avião antes do antigo completar uma década foi Ernesto Geisel - que, curiosamente, assim como Dilma, apesar disso conseguiu deixar nas mentes uma imagem pessoal austera. Sarney comprou um avião quando o velho tinha dez anos, mas era um avião usado, e tinha a vantagem do alcance transcontinental que os 737s comprados por Geisel não tinham.  Aliás, falando em alcance, a alegação de que o Jumbo, além de ser dahora, tem mais alcance é besteira. O A319JC Aerolula tem alcance de 12500km, e o Jumbo tem 14800km. Em outras palavras, um pode voar sem reabastecimento até:

Todo o Hemisfério Ocidental
Toda a África
Toda a Europa
Todo o Oriente Médio

E o Jumbo até, além dos anteriores, apenas parte da Ásia Central, e todo o subcontinente indiano. Em outras palavras, alcance a mais só para viagens à Índia. Porque Dilma vive em Délhi, né? Por outro lado, o desnecessário jumbodilma seria a jóia da coroa da Força Aérea Brasileira, para combinar com o (sempre parado) porta-aviões São Paulo, da Marinha, e integrar com orgulho o enorme Grupo de Transporte Especial da FAB (a FAB tem mais jatinhos para ôtoridades do que aviões de transporte de tropas...). Porque país rico é país sem pobreza.

E sim, é verdade que fazendo as contas, a aquisição de um avião novo, ainda que um jumbo, não é muito dinheiro para o governo brasileiro. Não daria para aumentar os salários dos professores federais nem em dez reais por mês. Mas o simbolismo dessa compra quando se fala em crise econômica para cortar gastos do governo é curiosamente ignorado, quando a única justificativa para a compra que não é uma mentira é, justamente, o simbolismo.

Proposta de metrô pro Rio

...já que, ao contrário de São Paulo, no Rio nem sequer projetos há de expansão da rede. Não está desenhada a linha 3 Itaboraí-Carioca, que já existe como projeto, se não como realidade.

(Com ajuda do Rodrjgw)

As preparadas

Com a trágica morte de um empresário numa blitz, na quarta passada, o país parece ter acordado para o fato de que sua polícia mata mais do que qualquer outra. E chegam os questionamentos sobre se isso não seria resultado de a polícia de São Paulo estar "despreparada." Ora, tanto esse questionamento quanto a reclamação habitual quanto à corrupção policial são uma confusão quanto a o que é e pra que serve a polícia no Brasil - e, convenientemente, deixam nos ombros dos policiais a culpa por um sistema do qual eles são apenas a ponta.

Os agentes do monopólio estatal da violência, muitos deles ainda imbricados nas forças armadas por teias de relacionamentos, mesmo na PF e nas PCs, que ao contrário das PMs e dos bombeiros não levam "militar" no nome, são ensinados a ver sua tarefa como antes a manutenção da "ordem" (tradicional e consuetudinária - e portanto com todos os problemas e preconceitos da ordem tradicional, hierárquica) do que a aplicação da lei.  O policial que faz parte de um grupo de extermínio está cometendo um crime, segundo a lei escrita, mas fazendo algo necessário e meritório, pelas suas luzes. E é nisso estimulado por todo o sistema policial. Ele não nasceu querendo "invadir favela e deixar corpo no chão," ele foi ensinado a fazer isso na academia de polícia, no treinamento, pelas ordens vindas de cima, do governador. Há unidades, como a Rota, que foram feitas para servir de grupo de extermínio oficial, acima e além da matança geral - e isso é apregoado por políticos, não escamoteado. Maluf teve a chancela popular para "pôr a Rota na rua" - ie, matar indesejáveis.

E como faz! O estado de São Paulo, que mata mais do que toda a polícia dos EUA, está longe de ser aquele aonde a polícia mais mata gente, proporcionalmente. Mesmo em números absolutos, o Rio de Janeiro não está muito atrás (antes de Beltrame e das UPPs, estava na frente). A polícia brasileira como um todo mata mais gente do que a maioria dos conflitos armados. E essas legiões de mortos comprovam o quanto a questão não é de despreparo, mas de qual a função: em meio a dezenas de milhares de favelados e pobres mortos, apenas ocasionalmente se vê alguém ser morto que não deveria ter morrido. Branco, de classe média. 99.999% de acerto é despreparo? Não é para ser "dura" com os criminosos que a polícia está na rua? Para proteger o cidadão de bem, e só ele? Para ignorar os "direitos dos manos"? Então não se pode chegar a outra conclusão, senão a de que a polícia cumpre o papel que dela se exige admiravelmente. Esse papel é pré-moderno, de antes de sir Robert Peel inventar o que se entende hoje por polícia, que até hoje no Reino Unido é desarmada. É o papel dos esbirros reais, da guarda. Protege-se a coletividade, com toda sua hierarquia, e não cada e todo cidadão.

O problema, portanto, não é de execução (com o perdão do trocadilho), mas de qual o papel que queremos da polícia. A polícia "dura" que protege apenas o "cidadão de bem" e não investiga nada, separada em civil e militar, não serve para coibir a violência e o crime - fato escondido pela redução nas estatísticas de homicídio do Sudeste, que não teve nada a ver com a polícia. Uma polícia obediente à lei e respeitadora de todos os cidadãos - mesmo os criminosos - não é apenas uma questão de humanidade, mas algo necessário se quisermos ter um estado de paz em algum momento, mais duradouro e justo do que o estado de paz conseguido pelo PCC e pelas milícias cariocas. Enquanto matar alguém e bater uma carteira forem ambos crimes puníveis com a pena de morte, não haverá incentivo para que o criminoso se restrinja a bater carteiras. Enquanto ser favelado já tornar alguém "suspeito" (e a pena para suspeição pode ser a morte), o discurso de que o crime não compensa será oco - a punição independe de crime. Ao contrário do que pensam os Datenas e seus seguidores, a polícia "dura" (em que dura significa que ignora a lei) gera o crime e a violência.

19.7.12

Quase brancos

Todo mundo sabe que, conforme o aforisma Churchiliano, estatísticas não são necessariamente confiáveis. Em geral, se pensa nisso em termos simplistas, como "claro que a estatística vai ser feita para beneficiar quem a gera," o que é uma acusação enorme a um monte de gente, e que em geral não se justifica pela realidade. Há exceções, claro, como a inflação argentina, mas em geral as estatísticas não são simples mentiras, mesmo quando não refletem a realidade. Elas são - como qualquer outro recorte do real - algo problemático quando passa a ser usado como aquilo que podemos compreender da realidade, o que é talvez inevitável. Afinal, é um pouco difícil para aqueles de nós que não somos Mentes da Cultura apreender todo o real a cada instante. O que é realmente interessante, entretanto, é quando conseguimos corrigir essas estatísticas, torná-las mais próximas do real. Ou melhor: em que conseguimos ter uma visão mais precisa do que a estatística mostra.

Um desses casos, e das tentativas mais antigas do mundo de transformar algo subjetivo e referencial em estatística, é a divisão racial brasileira. Não é fácil contar cabeças de cada cor num país em que a atribuição de cor depende da aparência mais do que da ascendência, e pode inclusive variar de acordo com o grupo em que se encontra determinado indivíduo, ou sua posição socioeconômica, "eu já fui preto e sei o que é isso."  O método usado pelo Censo, o da autodeclaração, é o único possível por motivos tanto metodológicos quanto éticos; éticos, porque não se pode imputar a alguém uma realidade diferente daquela como se vê, e metodológicos, porque sendo essa realidade complexa e fluida, não funciona a alternativa de treinar todos os recenseadores numa Neue Rassenwissenschaft, para que suas próprias e diversas noções não contaminassem o trabalho.

Mas, todavia, porém, entretanto, esse método certo dá um resultado estatístico que, quando reificado, e mais ainda quando usado comparativamente com outros países, pode ser enganoso. Isso porque existe uma tendência sistemática - bem detalhada pelo Livio Sansone em estudos feitos na Bahia e no Rio - ao embranquecimento no censo. Como ser branco é considerado algo bom, as pessoas A) tendem a se ver como mais brancas do que os outros as vêem, e B) tendem a responder a um agente do governo que lhes inquire que são mais brancas do que se vêem. Em outras palavras, se você tem um grupo de 30 pessoas e 15 responderam que são brancas, o mais provável é que qualquer uma daquelas 30 pessoas, ao olhar para o grupo, só visse umas dez brancas, se tanto.

E daí? E daí que a estatística que diz que metade dos brasileiros são negros (pretos e pardos) não fica lá, sozinha. Ela interage com outras estatísticas. Em outras palavras: sabe essa abissal diferença entre as realidades socioeconômicas de negros e brancos no Brasil? Pois é, ela está subestimada, porque muitos dos "brancos" mais pobres, que puxam a média pra baixo, não são assim tão brancos. (Sem nem contar o lado estatisticamente ponderável disso, que é a subtração regional/ de origem regional, como fazem os americanos com os hispânicos e talvez fosse o caso de fazer aqui com os retirantes.)

Ah sim, e com essa correção passamos a Nigéria como maior país negro do mundo, assim justificando uma imagem como país negro que sugeri aos reaças deste Brasilzão, lá em 2005. :p


Caros amigos.

Reconheço que a tese da "democracia racial" brasileira tem um valor tradicional que não caberia bem descartar. Afinal, que seria do mundo sem a tradição? E boa parte da identidade brasileira foi construída a partir dessa ideologia. Mais do que isso - a própria denúncia da democracia racial parte da própria, já que o Florestan Fernandes, que foi o primeiro "acadêmico" a fazer essa denúncia (cinicamente, o primeiro branco, mas cinismo não é conservador, não é mesmo?), tinha sido contratado pela UNESCO para descobrir o segredo da falta de racismo, e engarrafar para distribuir mundo afora.

Só tem um probleminha. Quando vocês usam a democracia racial e a "falta" de racismo no Brasil pra acusar quem vê racismo de racista, isso pode até fazer vocês se sentirem bem, mas não engana ninguém. A declaração de que "não existe preconceito racial, existe preconceito social associado à cor preta" chega a ser ridícula. Se existe preconceito associado à cor, existe preconceito de cor. E sinto muito, mas há uma quantidade bastante razoável de dados indicando que existe, sim, preconceito racial que vai além da ligação com a classe socioeconômica. Menos do que em muitos outros países, é verdade, apesar de os dados serem distorcidos, nas metrópoles do Sudeste, pela falta de uma resposta "paraíba" à pergunta sobre cor/raça. E, por isso mesmo, tenho uma idéia pra vocês, se quiserem mesmo ser anti-racistas e se opor ao movimento negro ao mesmo tempo.

Vejam bem, muitos de nós (nós, a elite, quase toda branca a ponto de gente de países mais segregados ficar com a impressão do Brasil como especialmente racista) dizemos, até com certo orgulho, que temos ancestrais negros. Vide o pé na cozinha do Príncipe dos Sociólogos. O problema é que esse pé é uma afetação, mais do que um sentimento de identidade, e segue os passos do Gilberto Freyre, em que os brasileiros se misturaram "com" os negros e índigenas, ou seja "os brasileiros" são os brancos. Todas essas declarações de amor à democracia racial vêm de um povo que se vê branco, de um país branco com negros oprimidos. Toda a construção do "brasileiro' desde o Freyre e o Getúlio passa por isso. Por um lado, se hiperenfatiza o papel dos imigrantes, como se nós tivéssemos recebido mais deles do que a Argentina ou os EUA, por outro o "brasileiro" misturado é o peão, é um outro. Tudo bem, a posição desconfortável de petit bourgeois global que ocupamos não é só nossa, é de todas as elites subdesenvolvidas.

Vamos ser sinceros. Há racismo no Brasil, há uma desigualdade racial imensa, e isso tem que ser remediado. E não vai ser remediado através de políticas neutras, ou sequer de políticas dirigidas aos pobres, já que uma condição socioeconômica equivalente não elimina o racismo. Que o digam os judeus. Então, o que fazer, se você é um conservador e abomina o movimento negro, ações afirmativas e o escambau? Não estou dizendo que isso faz de você um racista, existem bons motivos nacionalistas para não gostar de algo que é uma forma de nacionalismo rival. E olhe só, a declaração de que status socioeconômico e educacional não acaba com o racismo, se você pensar bem, também serve contra as cotas.

Que tal uma idéia - fazer uma campanha nacionalista capitalizando em cima do fato de o Brasil ser um país mulato? Não um país "que se misturou com negros e com indígenas," um país negro mesmo, no sentido mais amplo? Que tal enfiar retratos do Machado de Assis, do Lima Barreto, do André Rebouças, do Abdias do Nascimento, do Luiz Gama, para competir com a imagem do Zumbi? Dizer que afro-brasileiro é pleonasmo, lembrando que a civilização brasileira foi feita por mulatos, que antes de trazerem os imigrantes para embranquecer o país até a elite era mulata, como observou o Gobineau (que, afinal, era um especialista...)? Mandar a Globo retratar isso nas novelas de época, ao invés daquele quadro que acaba parecendo mais o Antebellum na Geórgia do que um engenho de café no Vale do Paraíba? Desarianizar a história do Brasil? Incentivar a história da África e das relações desta com o Brasil nas escolas? Em suma, fazer um nacionalismo da democracia racial que não fosse mais baseado num ator central branco que não tem preconceitos?

Não sei se ia adiantar. Mas pelo menos vocês poderiam alegar estar fazendo alguma coisa contra o racismo, ao invés de só ficar dizendo que quem tenta enxotar o rinoceronte que está na sala é culpado pelo rinoceronte.




PS o título, evidentemente, é uma alusão à música "Haiti," de Gil e Caetano. E ironicamente, já que o que este post defende é justamente que, se para a PM o quase branco é quase preto de tão pobre, para o Censo ele é branco.

13.7.12

Uma outra ação afirmativa

Ou, por um novo modelo de ação afirmativa.

Dentre muitas críticas destrambelhadas à ação afirmativa, uma que é inteiramente procedente é que há outras clivagens de preconceito no Brasil além daquela dirigida aos negros. Não estou falando da afirmação do "preconceito social" (ie de classe socioeconômica), que é duplamente errada, como vocabulário porque o racismo também é um preconceito social e como crítica ao modelo presente de ação afirmativa porque a classe socioeconômica já é alvo de ação afirmativa, mais difundida do que a de base racial inclusive.

O que é verdade, entretanto, é que existe preconceito étnico no Brasil contra "brancos," entre aspas porque eles são justamente os antigos "brancos da Bahia": mestiços de europeu, índio e africano, oriundos principalmente do interior do Nordeste. Baianos, em bom paulistês ("baianada" é uma cagada), paraíbas em carioquês castiço (paraíba também quer dizer brega). Não é simplesmente preconceito contra nordestinos em geral o que ocorre; o preconceito contra nordestinos unicamente ligado à origem (ou contra cariocas, em São Paulo) até existe, mas ele é low-key, restrito. Ele é uma questão genérica da classe média, não algo que vá render uma porta na cara, ou um coturno policial nas canelas, ao Norberto Odebrecht ou ao Ciro Gomes. Vamos chamar, à falta de coisa melhor, de tabareofobia, o preconceito contra tabaréus.

Ora, mais ainda do que o status racial não-étnico, característico da sociedade brasileira, o status como "nordestino" testaria os limites da autodeclaração. Afinal de contas, a Ivete Sangalo e o Tasso Jereissati poderiam muito bem se autodeclarar nordestinos, e nem estariam, como os branquelos que se autodeclaram negros em "protesto" contra a ação afirmativa, mentindo. Por outro lado, existe uma variável que está fortemente o bastante correlacionada com o status socioeconômico, inclusive com a condição de "nordestino," que é o local de moradia da família. Pode ser usado para isso o setor censitário do IBGE, que é pequeno o bastante (entre 200 e 400 domicílios) para ser razoavelmente homogêneo. A pessoa responderia seu local de moradia ou CEP, e isso seria correlacionado a uma tabela de setores.

Por outro lado, adjudicar o que seria mais razoável como cota para cada um de centenas de milhares de setores não seria lá muito factível. É aí que entra a outra proposta quanto à ação afirmativa: a de que ela se dê, não por cotas como na maioria dos programas atuais, mas por pontos como em alguns deles. A calibragem possível numa idenização por pontos é bem mais fina, e mais previsível, do que num sistema por cotas. Além disso, todo o sistema fica mais transparente para beneficiários e prejudicados. (Sim, prejudicados. Quem não é beneficiado num sistema de alteração da vantagem relativa é prejudicado por ele, e negar não adianta nada: a questão é que esse prejuízo é uma forma de compensar o privilégio que se aufere por ser branco.)

A proposta não é, vejam bem, eliminar a ação afirmativa de cunho racial, até porque já ficou claro em diversas pesquisas que o racismo, dirigido especificamente à pessoa de traços negros, afeta as pessoas até dentro de uma mesma família (criando uma diferença estatisticamente perceptível até entre irmãos gêmeos). Ficaria, assim, o sistema proposto de pontuação:

x pontos por ser negro ou indígena
y a 4y pontos dependendo do setor censitário
z a 2z pontos por ter estudado a vida inteira ou parcialmente em escola pública comum

Com divulgação de vestibular, de preferência, não revelando esses bônus, que são assunto privado de cada um. Sim, isso resultaria em gente de favela ficando entre os primeiros no vestibular...imagino que faria mal aos anúncios de redes de cursinhos.

Atualização: A Playboy já se juntou à nossa campanha contra a tabareofobia!

Adeus às armas

Uma das particularidades do segundo maior orçamento militar do hemisfério ocidental é a de o quanto dele é gasto em regiões metropolitanas, comparado com o primeiro. Enquanto os "army brats" americanos são criados em regiões longínquas no deserto do Novo México, ou em ilhas do Pacífico, é mais comum seus equivalentes brasileiros conhecerem as capitais de estados ricos ou estações de veraneio. Não é muito estranho de se explicar: o exército brasileiro servia para reprimir o povo, mais do que inimigos externos; assim, teve de se instalar aonde o povo está, por supuesto. Hoje em dia, entretanto, essas imensas áreas são um desperdício tanto para as cidades em que estão quanto para as próprias forças armadas. Claro que um oficial vai adorar ser postado (e ganhar apartamento digrátish) no Leme ou na Urca, bairros nobres do Rio de Janeiro, mas para as atividades de treinamento e operacional será que um quartel dos fuzileiros sem cais é uma boa? O que dizer de um campo de treinamento de artilharia cujo comprimento é inferior ao alcance de um morteiro, cercado de casas de todos os lados? Um depósito de material sem ligação com rodovias? Um quartel da Polícia do Exército que é a única instalação militar no bairro? E por aí em diante.

À inércia das instalações mantidas em locais que já fizeram sentido no passado, soma-se a inércia das instituições. As forças armadas brasileiras preservam, por exemplo, estados-maiores separados para cada Arma (com suas respectivas escolas). É toda uma burocracia desnecessária que, acontecesse alguma situação de guerra real, só ficaria no caminho - assim como a maioria dos recrutas, já que na guerra moderna um recruta mal treinado não vale um vigésimo de um soldado profissional. Uma reorganização das forças armadas, diminuindo o efetivo (e principalmente o efetivo do oficialato - hoje, a razão é de um oficial para cada dez praças, nestes incluídos os sargentos) e acabando com o alistamento militar obrigatório, aumentaria imensamente a capacidade bélica brasileira, diminuindo o dinheiro gasto (63bn por ano, atualmente). Além disso, liberaria vastas áreas para serem ocupadas pelas cidades - fosse para transformação em equipamentos públicos, fosse para a União faturar uns cobres. E não seriam poucos cobres - só os quartéis da orla carioca e aqueles próximos ao parque do Ibirapuera - estes representam quase metade da área mais valorizada de um bairro burguês, sem nenhuma utilidade estratégica ou operacional fora a proximidade do clube de oficiais - dariam uns bons 5 bilhões, pelo menos.

As maiores áreas que se beneficiariam com isso que eu conheço estão na zona norte do Rio, em que o prefeito acaba de anunciar a criação do segundo maior parque da cidade - com míseros 100.000m2. Enquanto isso, o campo do Gericinó é o tal campo de artilharia em que não cabe artilharia, mas tem uns bons 4km2. E no complexo dos Afonsos, apertado para um quartel de paraquedistas, cabem um parque do tamanho do Aterro do Flamengo mais uma data de conjuntos habitacionais; a Zona Norte poderia deixar de ser patinho feio, praticamente de uma canetada, e o Rio merecer um pouco mais o título de patrimônio da humanidade. E paraquedistas e artilheiros, relocados para quartéis no interior com muito mais área e custos menores, só teriam a lucrar. Para dar uma idéia da diferença de área disponível entre terrenos abraçados e apertados pelas metrópoles e os terrenos disponíveis (e já de posse das forças armadas) mesmo em cidades menores próximas, a AMAN, em Resende, onde os novos oficiais do Exército continuam sendo ensinados a admirar os golpistas de 64, tem literalmente dezenas de quilômetros quadrados livres. Todas as instalações do exército do Rio de Janeiro E São Paulo caberiam lá com folga, apenas na parte baixa e sem mato.

PS Infelizmente os círculos militares, clubes de oficiais localizados invariavelmente no maior filé possível imobiliário, não poderiam fazer parte dessa reforma agrária, já que não são, oficialmente, patrimônio do governo, mas dos oficiais. Foram doados.

11.7.12

Corrupto e incompetente

Morador da Terra da Garoa há seis anos, trouxe meu voto para cá apenas neste ano, procurando dar uma ínfima contribuição contra a dupla que tudo proíbe. Assim, perdi a oportunidade de pela primeira vez na vida ver uma eleição a prefeito do Rio minimamente decente; até o tecnocrata de direita que concorre à reeleição é melhor do que a média. Não que eu votasse nele, claro - votaria no Freixo, que até herói de filme é. Mas confesso, não votaria tão empolgado não. Até pretendo doar dinheiro pra campanha, mas sem tanta empolgação. Isso porque o Freixo padece do mal comum na política de achar que a virtù superará os obstáculos; não há propostas concretas, do tipo chato de ler e que envolvem "aumentar imposto tal ou cortar gasto tal para aumentar o outro gasto assim ou assado." 

Que fique claro: Freixo não é a Heloísa Helena, que, como se fosse a segunda vinda de Fernando Collor, tinha sua campanha alicerçada no governo ser "corrupto e incompetente" (Collor, o primeiro, berrava isso como se fosse mantra em seus comícios), abandonando qualquer proposta de esquerda. Ele merece minha doação porque fala de outro modelo de cidade também. Mas não explica como chegar lá - "a cidade tem muito dinheiro," disse em entrevista recente. E, bem, não é verdade que a cidade tenha muito dinheiro, pelo menos não sobrando. A intervenção de maior vulto que se fala em abandonar, a reforma da Zona Portuária, está sendo conduzida com dinheiro privado alicerçado em recebíveis imobiliários e de direito de construir; fosse cancelada, a Prefeitura não ganharia um ceitil.

Mencionei, há uns posts atrás, o tal gráfico pelo qual metade do orçamento federal brasileiro iria para o pagamento da dívida, que confunde rolagem com gasto. A confusão é como se alguém não pagasse a conta do cartão e passasse a contabilizar em suas despesas mensais, não os juros do cartão, mas o total devido, todo mês. Vendo o gráfico, tem-se a ilusão de que governar é fácil, com a virtù de nosso lado; é apenas a maldade de gente que privilegia banqueiros que faz com que não transformem o país/estado/cidade numa nova Cocanha. Enquanto isso, o Brasil de verdade tem déficit nominal, o que significa que o mantra da esquerda (petista, psolista, ou outra) de "diminuir o superávit primário" pode ser traduzido por "contrair mais dívida" ou, no longo prazo, "dar mais dinheiro a banqueiros." O único jeito de parar com isso seria declarar uma moratória - o que resultaria em uns 2% do PIB, ou 8% do orçamento federal, a mais. E uma enorme quebradeira de empresas em todo o país, para não falar dos cidadãos com contas nos bancos, que quebrariam com essa enorme moratória.

Do mesmo jeito, Heloísa Helena explicou como trataria greves em seu governo: "no meu governo não haverá greves, porque será um governo de trabalhadores!" Ora, isso significaria aumentar indefinidamente o salário de gente que já ganha dez, quinze vezes a renda média brasileira. De uma elite restrita, e não dos proletários. Há greves justas - como a atualmente em curso, que paralisou praticamente todo o sistema federal de ensino - e greves nem tão justas, como as que anunciam o Itamaraty, agências reguladoras, e o Ministério Público. Estes, aliás, foram os maiores lobistas pela alteração, em 2010, dos salários de presidente, ministro, e deputado, já que o salário a que postulam é maior do que o salário presidencial de 2010. É justo que a diferença de salário entre um barnabé e o cargo de presidente da república seja inferior a 50%? E que a diferença de salário entre o mesmo barnabé e um faxineiro, por outro lado, seja de 20x? E não há mesmo dinheiro o bastante (não haveria nem que o tal gráfico não fosse mentiroso) para nivelar o salário do faxineiro pra cima tanto assim.

O governo pode até ser "corrupto e incompetente." Mas o governo não é só quem lhe chefia. E geralmente mesmo esses chefes não são tão corruptos e incompetentes assim - há exceções, claro, como o próprio Collor, mas nem Dilma nem Lula, nem FHC, nem sequer o Sarney são o bicho papão pintado. Marcelo Freixo, que investigou milícias, deve saber disso bem, pelo menos empiricamente. Espero que saiba, também, que só virtù não basta; que haverá greves em seu governo, que terá que lidar com gente desagradável, que não há muito dinheiro sobrando, que frustrará seus eleitores mais apaixonados.

Sim, tô sendo otimista.


Atualização de 28/9: Bueno, por um lado o PSoL chamou ao seu palanque aliadas de fora. Por outro, essas aliadas são justamente representantes da corrente udenista da política, Marina Silva e Andréa Gouvêa Vieira (esta representa o primeiro convite à direita pelo PSoL de que tenho notícia). E Freixo disse, "- Eu respondo todo dia a mesma pergunta. Todos me perguntam, se eu for eleito, como vou governar com a Câmara. Mas a pergunta não é essa. A pergunta é: como a Câmara vai sobreviver ao nosso governo? A Câmara vai ter que mudar o perfil. E vocês vão ser fundamentais nisso." O que não é tão grave quanto o "não vai ter greve" da Heloísa Helena, mas também não é legal.

Por outro lado, como Freixo também disse, em entrevista ao Valor, que "[Os eleitores da Zona Sul e da elite] são menos reféns do poder econômico das campanhas e conseguem driblar o efeito maciço da campanha rica," id est, "rico vota consciente ao contrário de pobre," sinceramente, meu ânimo com o Freixo tá cada vez arrefecendo mais. Parabéns pelo maciço ao invés de massivo, pelo menos.

10.7.12

El Nueve de Julio

Ontem foi feriado em duas entidades políticas de uns quarenta e poucos milhões de habitantes cada: a República Argentina e o Estado de São Paulo. Na primeira, tratou-se de algo comum, a celebração de uma data arbitrária no processo pelo qual as elites locais se tornaram independentes da metrópole, a Espanha. No segundo, igualmente foi algo comum: a celebração de uma revolta contra o poder central brasileiro. Só para ficar em feriados estaduais, é o caso também do Rio Grande do Sul e de Pernambuco (este celebra uma rebelião anterior a 1822). A banalidade da celebração da "revolução" "constitucionalista" de 1932 depõe contra visões extremadas dela, como a do Sakamoto, que literalmente demoniza a Weltanschauung paulistana de que ela seria emblema. (Nunca pensei que fosse falar "literalmente demoniza," confesso.)

Claro que a demonização é uma tentação forte quando se vê as cenas ridículas de um desfile militar de uma entidade sem forças armadas,* celebrando uma derrota militar - não que celebrar uma derrota seja incomum, mas geralmente acontece, como no ANZAC Day que serve de feriado principal para a Austrália e a Nova Zelândia, num espírito de luto mais que celebração do poder. E a oligarquia paulista, derrotada na sua tentativa de guerra civil (ao contrário do ocorrido no Rio Grande do Sul, a idéia não era se separar do Brasil, mas tomar o poder no país), realmente tentou criar um projeto de cultura e poder alternativo ao do governo federal, que passou pela criação da USP e pelo enaltecimento dos bandeirantes como heróis especificamente paulistas, em oposição ao enquadramento deles como heróis brasileiros pelo governo federal. Paradoxalmente, enquanto os herdeiros dos separatistas gaúchos criaram uma autoimagem como Märcher do Brasil, os paulistas, derrotados em sua marcha rumo ao Rio, criaram uma autoimagem em oposição ao país.

E é aí que está o problema com as bem naturais reações à "mitologia bandeirante" : ao inverter o processo, com os bandeirantes como vilões especificamente paulistas, dão força à noção de que eles, e todo aquele complexo - incluindo a própria lealdade a São Paulo - são mesmo especificamente paulistas, e aí fomenta, ao invés de anular, um dos grandes trunfos da oligarquia paulista: a identificação desse complexo de idéias com São Paulo. Se você não põe em questão a noção de que para ser paulista, et fier de l'être, deve-se ser um semifascista que admira caçadores de escravos, está deixando de disputar uma parcela considerável da população do estado - e, portanto, uma parcela considerável da população do Brasil, já que, ao contrário da situação de 32, hoje SP responde por mais de um quinto do Brasil, e apenas a região metropolitana da capital já tem mais gente do que Minas Gerais.

Não que essa consideração política, prática, seja a única a se ter. Aceitar a ideologia "bandeirante" como própria a São Paulo para então condená-la é operação parecida com a que aceita que o machismo e a homofobia fazem parte integral, indissociável, do Islã. O fato de que paulistas estejam em posição privilegiada no contexto brasileiro, ao contrário dos muçulmanos no contexto mundial, não faz disso menos verdade. A diferença é que os líderes do pensamento que usa o machismo para demonizar o Islã lucram com isso.


PS Outra tentação a se evitar, ao falar merecidamente mal da patacoada de 32: a de assumir que, só porque a oligarquia paulista era e é uma súcia de canalhas, o outro lado era do bem, como fez o Brizola Neto. A diferença entre os projetos de cultura e civilização do Estado Novo e do Estado Bandeirante estava nas posições relativas da oligarquia privada e do estado num projeto capitalista e autoritário; disputavam quem seria o parceiro sênior, apenas isso. Entre Getúlio e a oligarquia paulista, torço pelo asteróide.

PPS Uma coisa que nenhuma das críticas mencionou até agora é o quanto de mentira há na alegação de que aqui é a "locomotiva do país." São Paulo é subsidiado pelo Brasil, não o contrário.

*Tornadas, é verdade, menos visualmente ridículas do que deveriam ser devido ao aparato farcesco de que se cerca a polícia militar. Com direito a dragões e veículos de combate. Nessas horas não aparece um "liberal" para denunciar o gasto desnecessário de dinheiro público.

4.7.12

Luz do Sol

Uma das curiosidades que cresceram a partir do modelo elétrico brasileiro (instaurado pelas privatizações de FHC, modificado pela Dilma enquanto era ministra das minas e energia) é que hoje a energia mais cara de todas, a solar, é a mais barata em metade do território nacional. Explicando: o preço de instalação da usina é só parte - no Brasil, a menor parte - do custo da eletricidade; há ainda os custos de transmissão até a cidade aonde se consume, e de distribuição dentro da cidade. E, bem, a energia solar, ao contrário, é consumida in loco - ou vendida pelo consumidor à distribuidora, pelo preço desta. (Por lei - para as distribuidoras, faria mais sentido dar um bom desconto nesse preço.) Assim, o preço da energia solar, de 600R$ por Mwh, é entre seis e nove vezes maior do que o de uma hidrelétrica, mas inferior ao preço que conta, que é o cobrado pela Light, Cemig, Eletropaulo, ou quem seja.

A notícia é ótima, sem sombra de dúvida. Significa que, com um pouco mais de investimento e propaganda (melhor ainda se tivesse financiamentos subsidiados do BNDES que nem Belo Monte), poderíamos instalar dezenas de GW de energia solar Brasil afora. A Alemanha, que tem um potencial de energia solar de literalmente um trigésimo do brasileiro (comparem os respectivos mapas solares), já tem 24Gw instalados, gerando 18Twh por ano - quase o dobro e um quinto, respectivamente, da potência e da produção de Itaipu. Não é difícil imaginar o Brasil, só em tetos de casas e comércios, gerando pelo menos o quádruplo disso, a um custo total relativamente baixo. E energia solar não desmata nem mata índios.

Pera, pera. Quase o dobro e quase um quinto? Que conta é essa? Pois é, esse é o problema da energia solar. Ela, afinal de contas, não gera a plena carga a não ser ao meio-dia, e nós utilizamos energia elétrica, que não pode ser armazenada mas tem que ser gerada na hora, o dia inteiro (e à noite), e não apenas ao meio-dia. A mesma Alemanha mencionada anunciou orgulhosa que a energia solar gerou 40% da energia do país... durante 15 minutos, numa tarde de verão. Não serve exatamente para sustentar o computador em que você lê este blogue, a não ser que você tenha corrido para carregar o notebook nesses quinze minutos. No resto do tempo, a Alemanha aumentou a produção de térmicas e a importação de energia.

Não que para a Alemanha seja um mau negócio. Afinal, com energia térmica, gasta-se combustível; energia solar complementa bem uma usina térmica, reduzindo a necessidade desta para o exato complemento da solar. Economiza-se, assim, digamos, um terço do combustível - mas a capacidade instalada de térmicas flexíveis ou hidrelétricas com reservatório tem que subir acompanhando a solar. A energia solar, portanto, não deixa de ser, no total das coisas, uma forma de ganho de eficiência para as térmicas e hídricas, e não uma forma de energia independente. Teríamos 96GW instalados - quase o total de energia de todas as origens instalada no Brasil - mas essas outras origens continuariam tendo que operar à noite e nos dias nublados.

Para quem gostaria que a tecnologia apontasse o caminho para se conciliar a vontade de que todos tivessem acesso à tecnologia (principalmente à internet) com a ojeriza às alternativas barragistas, nucleares, ou fósseis, é uma ducha de água fria. Sem alguma forma desconhecida de armazenamento, a instalação de energia solar é um ganho de eficiência, só - necessário, mas insuficiente. E falando em ducha, tem algo ainda mais barato que a energia solar fotovoltaica, e que pode sim substituir a construção de umas duas Belos Montes: o aquecimento solar de água.

O chuveiro solar, afinal de contas, ao contrário da energia elétrica solar, tem uma bateria de baixo custo chamada caixa d'água; não sabemos armazenar energia elétrica barato, mas calor é fácil.  E a energia gasta por chuveiros elétricos não é pouca coisa, e é consumida justamente em picos ao longo do dia - isso é, se trata da energia mais cara e necessária, aquela que demandaria a construção de novas usinas. Se for substituída por chuveiros solares, não se terá gerado um uóti a mais - mas a utilidade será a mesma, com 25GW a menos sendo gastos, e portanto liberados para outros usos. Claro que aí necessitaria-se convencer as pessoas a pensar em termos de utilidades e economias mais do que no da necessidade infinita de aumento de qualquer coisa.

O gasto para prover cada residência no Brasil com chuveiros solares seria de mais ou menos 20 bilhões de reais. Uns dois terços do dinheiro público que entrará em Belo Monte. Sem contar os gastos extras, como Força Nacional pra bater em índio.