Pesquisar este blog

31.1.11

Parece piada

A capa da Veja desta semana lê-se "reinvenção do bom-mocismo. Angélica e Huck formam o casal celebridade perfeito para um mundo politicamente correto." Considerando-se que a capa segue a tentativa de Luciano Huck de faturar uns trocos com a tragédia da Região Serrana do Rio de Janeiro, pode-se suspeitar de que a idéia da capa da Veja seja recapear a imagem do apresentador.

Por outro lado, a Veja tem toda a razão, sendo um pouco mais cáustico e menos chapa-branca. Luciano Huck e seu "bom-mocismo" que ajuda muito a ele mesmo é, sem dúvida nenhuma, a mais perfeita tradução destes tempos em que empresas gastam rios com marketing para falar de sua responsabilidade social.

********************

Kassab anuncia seu grande plano de transportes, baseado em novas avenidas e "expressificar" avenidas existentes pela cidade. Tudo muito 60s. E, no que só pode ter sido humor deliberado, anuncia que "como os carros vão se deslocar mais rapidamente ao invés de ficarem parados, vai melhorar a qualidade do ar."

*********************

Fiz as contas: São Paulo tem uma média de uma lixeira para quatro quarteirões. Depois falam que o povo é porco - com uma lixeira a cada 10, 15 minutos de caminhada, estranho é as ruas não serem muito mais sujas.

28.1.11

Togas e torres de cristal

Um dos problemas que acometem a sociedade contemporânea é que ela se baseia em uma forma de conhecimento que a maioria das pessoas teria dificuldade em explicar. Não me refiro aos conhecimentos específicos - assim como aqueles de nós que não somos engenheiros químicos não entenderíamos o processo de fabricação de uma aspirina, uma bosquímana especializada na coleta nunca conseguiria desvendar o fabrico de uma armadilha feita por seu marido caçador. (O exemplo vem do livro de Sahlins, Stone Age Economics, em que ele nota a complexidade do conhecimento técnico da "idade da pedra.") Mas à própria forma como funciona a ciência, que é ensinada pouco na escola, que dá preferência ao aprendizado fatos específicos de alguns ramos do conhecimento. Assim, muita gente (talvez a maioria) é incapaz de distinguir entre ciência e qualquer forma de conhecimento ou mesmo de discurso, levando a tratar a ciência como alguma forma de religião.

Um exemplo do problemão que isso pode causar se dá, justamente, no "debate" sobre o aquecimento global antropogênico. Nele, qualquer divulgação de erro nas contas é tratada por aqueles que insistem em negar o A.G.A. como uma prova de que toda a teoria está errada. Como, não creio que seja exagero dizer, a refutação de um dogma. Ora, a ciência não funciona assim. Cientistas, politicagens acadêmicas à parte, não são como religiosos que proferem dogmas e os defendem; saber que se estava errado sobre algo só significa, bem, mais oportunidades de pesquisa. E nem estou falando só de cientistas naturais. Assim, quando uma análise do DNA de Tutancâmon foi feita, estabelecendo hipóteses sobre a sua ascendência e patologia, a grita havida foi em relação á confiabilidade dos métodos empregados, por outros arqueogeneticistas, e não pelos historiadores da arte que agora não poderiam mais chamar de simplesmente realistas os peitinhos e queixada da família de Akhenaten nas figuras do período.

Fazer entender a ciência como processo de inquisição e aprendizado, e não dogma, deveria ser uma prioridade de todo o sistema de ensino, se pretendemos incentivar a produção, e não apenas a reprodução, científica. Ao invés disso, "é porque é," ou sua variante dirigida a um público um pouco mais velho, "é porque X disse que é," são as atitudes mais comuns, e não apenas no Brasil. Isso pode funcionar na religião, até no direito (onde "fulano diz que é assim" tem um enorme peso, independente do argumento de fulano), mas na busca por mais conhecimento, é um enorme estorvo. E na própria formação de políticas públicas, em que a ciência é tão frequentemente invocada, ajudaria as pessoas a distinguir o joio do trigo.


PS - OK, confesso, o post foi escrito só para ter a oportunidade de apresentar os dois links acima.

PPS - O título é uma alusão a toda aquela literatura e filmes de ficção científica em que gente muito avançada usa togas brancas, mora em torres de cristal, e fala como sacerdotes da CIÊNCIA. Que, curiosamente, foi em boa parte produzida por cientistas praticantes.

26.1.11

Multiplicando os peixes

Matéria da Folha de São Paulo informa que:

A partir deste domingo, os usuários da ciclofaixa de São Paulo ganharão mais 20 km para pedalar. O novo trecho liga o parque do Povo, no Itaim Bibi, ao parque Villa-Lobos, ambos na zona oeste da cidade, somando 10 km de percurso em cada sentido.

A ciclofaixa funciona das 7h às 14h, só aos domingos, e ocupa uma das faixas das vias pelas quais se estende.


Vamos lá aos probleminhas da matéria,

1) "A" ciclofaixa de São Paulo. Ninguém acha isso estranho não? Que uma cidade com 11 milhões de habitantes, coração de uma metrópole de 20 e caquerada milhões, tenha "a" ciclofaixa, em meio às dezenas de milhares de quilômetros de ruas? Parece piada de mau gosto.

2) "Ganharão mais 20Km, 10 em cada sentido." Acho que todos os governantes do mundo deveriam adotar o sistema da assessoria de imprensa do Kassab. Assim, a quantidade de estradas e ferrovias existentes no mundo, imediatamente, dobraria. Afinal, a Dutra não tem 460Km, ela tem 920Km, 460 em cada sentido. Tem certeza de que não é piada?

3) "A faixa funciona aos domingos de manhã." Ahhn, é piada mesmo. Tipo, até o fechamento de ruas inteiras ao tráfego aos domingos, para recreação, como na orla do Rio de Janeiro, funciona durante o dia inteiro, e não só durante a manhã. A (de novo, "a") ciclofaixa paulistana não é uma ciclofaixa de verdade. É o fechamento de uma pista só de algumas avenidas, aos domingos de manhã.

Relacionar isso a transporte alternativo urbano, ou a qualquer outra coisa que não recreação, como tentam fazer a prefeitura e a Folha, é piada de mau gosto à custa de quem mora aqui. Muitas outras ciclovias ainda são vistas primariamente como local de prática de exercícios ao invés de transporte, mas elas estão lá para quem quiser se transportar durante a semana.

E mesmo como recreação domingueira, é de uma avareza a toda prova. Uma faixa, aos domingos, durante a manhã. Se isso é dobrado porque é ida e volta, a "ciclofaixa do Rio" tem uns 500Km, já que são 6 pistas fechadas(6 idas e 6 voltas, portanto).

21.1.11

Party like it's 99

1099, pra ser específico. Afinal, não é como se os sinais da "nova idade média" apontada pelo Umberto Eco tivessem minguado. E a eles se somaram alguns outros, que não têm necessariamente nada a ver em termos reais de sociologia ou semiótica, mas que lembram, ah lembram. Por exemplo, a arquitetura simbólica e hermética, prenhe de analogias, metonímias, e parábolas. Leia a descrição do novo auditório do Albert Einstein. Não parece as descrições de arquitetos de igrejas românicas, com direito à infinita permutação numérica (que muito depois iria virar a Gematria)? OK, se trata apenas da projetificação do mundo, em que arquitetos, cientistas, artistas, e logo mais encanadores terão que justificar com clichês e citações da introdução de livros de Foucault todo e qualquer trabalho que queiram fazer.

Ou percebam que o príncipe de Roma voltou a ser, como na idade média, renomado pela sua corrupção e pelas concubinas? OK, o príncipe de Roma não é mais o papa, mas sim o primeiro ministro italiano. Mas vejam se Berlusconi, até nas suas relações mafiosas, não daria um bom papa medieval ou renascentista? Alexandre VI ficaria orgulhoso.

A própria Igreja, por sua vez, tem à sua frente um sujeito que definitivamente sente saudades de uma idade média que nunca existiu. Com Ratzinger, o ultramontanismo que fez do bispo Lefebvre um cismático por rejeitar o concílio ecumênico voltou a erguer a cabeça orgulhoso; a velha igreja católica, menos medieval do que anti-moderna, do Pio IX que raptava crianças judias para criá-las no catolicismo (espero que só para isso) está sentada no trono de São Pedro, e a guerra sem tréguas contra o concílio ecumênico e a modernidade fazem com que nessa guerra mesmo coisas como determinar o acobertamento de abuso de menores são consideradas legítimas.

OK, falei 1099? Pode ser 1939 também.

20.1.11

Instituto de Literatura Popular da China

OK, não é exatamente esse o nome. Talvez fosse, se a China ainda fosse comunista; ao invés disso, é Instituto Confúcio. Um instituto de difusão cultural semioficial da China, nos mesmos moldes dos Goethe, Aliança Francesa, Cervantes, ou British Council. (Admitam, vá lá, que seriam muito mais interessantes os Institutos Shakespeare e Molière.) Por enquanto, eles existem basicamente associados a universidades mundo afora (lista as afiliadas brasileiras), mas a idéia é eventualmente criar uma rede de cursos de Putonghua e difusão cultural mundial no mesmo nível dos seus pares mais antigos.

Tem duas coisas que acho interessantes aí. Uma é o nome, que faz parte de um movimento maior de reabilitação do passado imperial em detrimento do republicano e comunista. Assim, ao mausoléu de Mao, veio se juntar uma estátua do Confúcio. O único outro ser humano homenageado na enorme praça era o primeiro presidente da China, Sun Yat-Sen, e mesmo assim só alguns dias por ano. Agora, o passado imperial e um fervor nacionalista são cultivados no lugar do comunismo como "cola" unificando o país, o que às vezes resulta em explosões de xenofobia que assustam os próprios governantes. E é um passado imperial bem fake, como fica claro quando se pensa que a outra grande figura homenageada além de Confúcio foi Qin Sihuangdi, o Primeiro Imperador.

Durante a maioria das dinastias imperiais chinesas, o (neo-)confucianismo foi a ideologia oficial, com direito aos famosos concursos públicos de admissão à classe dos funcionários-cavalheiros (antecedendo a elite das grandes écoles francesas em quase um milênio), que eram concursos de redação e conhecimento dos clássicos confucianos. E um dos vilões oficiais, tiranos terríveis da história lendária, perfeitamente equivalente aos Nero, Calígula, Héliogábalo romanos, ou ao Faraó X ou Nabucodonosor bíblicos, dessa narrativa oficial imperial foi justamente o homem que primeiro unificou o país. Não sem motivo; não apenas ele foi mesmo um tirano sanguinário, tanto que o império unificado por ele sobreviveu poucos anos após sua morte, como (e talvez mais importante) a versão radical da ideologia legalista que ele professava era diametralmente oposta ao confucianismo. Enquanto este eleva a família acima de tudo e a harmonia social com obrigações recíprocas entre as pessoas e instituições, ambas num modelo hierárquico gradado, o legalismo dos duques de Qin era, basicamente, uma ideologia do totalitarianismo, com direito a alguns filósofos seguidores dele falando em mudar a língua para torná-la mais apta ao comando e à obediência.

Não importa muito: ambos representam "a antiga e poderosa nação chinesa," numa apresentação rasa como um pires - ou melhor, como um pôster de propaganda, onde Mao seria malvisto fora das fronteiras. A pergunta é saber, nessa recuperação do passado imperial, se a língua a ser ensinada vai mesmo se chamar, como hoje, putonghuá, "língua comum," ou, como em Taiwan, guoyu, "língua nacional," ou huayu, "língua chinesa." Ou vão escancarar logo e chamar pelo nome antigo, guanhuá?

A outra coisa interessante da iniciativa é que, enquanto os países europeus ocidentais têm esses institutos, os EUA, que a China quer suplantar como potência mundial, não. Pode-se argumentar que nem todos os institutos culturais do mundo chegam aos pés de Hollywood, e que a difusão cultural americana é um quesito no qual o país ainda é, como queriam os ideólogos da hegemonia pós-guerra fria, a "hiperpotência," que não necessita de manifestar sua força desmesurada. E que os EUA subiram a esse píncaro muito antes da idéia dos institutos culturais.

A pergunta aí, fica sendo: "e as outras potências emergentes"? Não seria o caso do Brasil, por exemplo, criar um Instituto Machado de Assis para divulgar suas língua e cultura pelo mundo? Interesse há, como o demonstram as inumeráveis aulas de "brasileiro" anunciadas Europa afora. Ou cooptar o Instituto Camões? :p

19.1.11

Give me your tired, your poor, your trained

Geralmente, eu desconfio - e muito - de discursos em que a virtude não apenas é desprovida de custos econômicos como gera vantagens econômicas, como em todo o discurso "ecoempreendedor," incluído o turismo ecológico. No mais das vezes, o que se vê é que a virtude não é tão econômica assim, ou sobrevive à custa de um prêmio pago (isto é, vira característica de luxo), ou ao contrário que a economia não é tão virtuosa assim, como quando a Natura ou a Refavela chamam de virtude pagarem uma merreca a gente miserável. A tentação de se dizer que a sua afinidade ideológica é também simples bom senso é grande, e por isso mesmo deve ser combatida. Mas aqui vai um exemplo de um caso em que eu - com ressalvas - faço exatamente esse argumento.

O Brasil, aparentemente, tem um déficit de pessoal qualificado da ordem de um milhão de vagas de emprego por ano. A resposta para isso, claro, é investir muito mais do que se investe hoje em treinamento e qualificação. Mas vamos lá: nem todas essas vagas são de empregos para os quais pode se treinar gente facilmente. Nem todas elas são em locais onde haja gente não qualificada disposta a encarar esse emprego específico.

A resposta óbvia a esse déficit, no curto prazo, é trazer gente qualificada de fora. Afinal, o Brasil tem uns 3% da população mundial, então é lógico pensar que nesses 97% haja alguém qualificado e disposto a se mudar pra cá, certo? O problema é que o mercado de trabalho brasileiro é protegido; só se pode "importar" trabalhadores após provar que não existe similar no mercado nacional, e mesmo assim é complicado. A solução proposta pelas empresas é liberar geral; o ministério do trabalho contesta que se fizermos isso vamos prejudicar os trabalhadores brasileiros.

Ora, é ridiculamente difícil imigrar no Brasil. Ironicamente, já que a classe média brasileira é em boa parte descendente de imigrantes europeus, árabes, e japoneses trazidos para "melhorar a raça," e que têm um orgulho quase racial das suas raízes imigrantes. As leis de imigração, derivadas do nativismo getulista e da paranóia militar, fazem com que seja difícil se naturalizar brasileiro mesmo se você tiver pais brasileiros e tiver morado boa parte da vida aqui.

Se facilitarmos a imigração propriamente dita após um período de residência, e alterarmos as regras de trabalho para que as dificuldades fossem suspensas em caso de compromisso de residência de longo prazo, parte (difícil de calcular) dos estrangeiros que se encaixam no problema acima descrito poderia se transformar em brasileiro. Assim, agregaríamos - de graça - uma massa importante de brasileiros qualificados. É o que fazem os países ricos, estimulando o brain drain de boa parte do terceiro mundo.

Claro que no meu mundo ideal, as regras de imigração seriam bem mais fáceis ainda ("quer ser brasileiro? Não tem ficha corrida (por crime que seria considerado crime no Brasil) no país de origem? Valeu."), bem como as de asilo, mas isso já seria um passo no sentido de regras de imigração mais justas.

18.1.11

Belo Monte

Já que Belo Monte está por aí na blogosfera, eu, que sou preguiçoso, simplesmente ponho links aqui pra meia dúzia das muitas vezes que falei sobre ela.

http://sambadoaviao.blogspot.com/2010/10/da-unanimidade-burra.html

http://sambadoaviao.blogspot.com/2009/07/descascando-o-pac-iii-energia.html

http://sambadoaviao.blogspot.com/2010/02/homens-invisiveis.html

http://sambadoaviao.blogspot.com/2010/04/minas-e-energia.html

http://sambadoaviao.blogspot.com/2010/05/there-is-no-alternative.html


Resumindo:

1) Belo Monte não vai gerar 11GW, mas entre 2,4 e 6,6GW, dependendo da estação, porque 40% da energia vai se perder pelo caminho até São Paulo.
2) Belo Monte só pode vender essa energia ao preço que venderá porque o governo, e não o consórcio, vai erguer essas linhas de transmissão enormes. E mesmo assim, ninguém quis investir sem a Eletrobrás de sócio arcando com os riscos.
3) O desmatamento a ser causado não é apenas o dos 500Km2 em volta, mas o induzido, pelo mundaréu de gente que se muda pra lá durante a construção. E aquela área tem parques nacionais e reservas indígenas em volta.
4) Os danos ambientais com a destruição da volta grande e a interrupção do rio não se restringem ao desmatamento; perguntem aos felahim do Egito como anda a lavoura cantada desde Menés desde a barragem de Nasser. (Dica: muitos fertilizantes importados.)
5) O peso do modelo institucional brasileiro e da experiência e visão profissional vigentes nos ministérios e empresas geradoras, estatais ou não, significa que Belo Monte está longe de ser a última barragem na margem direita do Amazonas. E quiçá na esquerda. E as consequências disso pro ecossistema e até para o clima são difíceis de se prever.
6) O Pará não vai "se desenvolver" com a usina. Vai aumentar o PIB, nas contas, sem que isso reverta em renda para a população. Para ter uma idéia do que isso significa, enquanto o Rio de Janeiro cresceu mais rápido que o Brasil no período 1990-2010 em PIB, em renda mediana ele declinou.
7) A diferença é que pelo menos o governo fluminense auferiu alguma renda através de royalties; como os royalties da eletricidade são pífios e o ICMS, como no caso do petróleo, cobrado no estado consumidor, nem impostos o Pará vai ganhar com a usina.
8) Admitindo-se que precisamos de mais geração de energia, e de preferência que não emita gases de efeito estufa, precisaremos de mais usinas nucleares, se se quiser evitar os problemas acima, além de muito mais geração de resíduos de biomassa e eólica.
9) Usinas nucleares seriam necessárias até porque usinas hidrelétricas a fio d'água, ao contrário das com reservatórios grandes, não servem de geração básica. Afinal, a vazão do rio varia, às vezes imprevisivelmente.
10) Além de Belo Monte, outro absurdo ambiental que está recebendo menos ibope são os 10GW de geração térmica com carvão de combustível, em Maranhão e no Norte Fluminense, sendo construídos pelo Eike Batista.

17.1.11

Nossos Balmorais

Abortado - mas não inteiramente - pela imensidão da tragédia na Região Serrana, o grande factóide do início do ano na nossa imprensa libre pero no mucho ameaçava ser a expedição de passaportes diplomáticos para Lula e sua família. Digo factóide porque a imprensa tratou isso, implicitamente nas manchetes e explicitamente em inúmeros editais, como uma prova de que Lula subvertia nossas nobres tradições republicanas, esgarçando as fronteiras entre o público e o privado e imprimindo um personalismo nefasto à política. O que soa bonito nos editoriais da Folha e d'O Globo, até você se lembrar que o exército protegeu a fazenda invadida do FHC, cujo genro era presidente da Petrobrás, e que aliás recebeu, junto com toda a família, passaporte diplomático quando deixou de ser presidente, assim como Itamar e Sarney antes dele.

Não é que não seja errado - eu acho que é, e que o cidadão que deixa o cargo deveria deixar imediatamente de auferir quaisquer vantagens dele. É que, ao contrário do que pinta a grande imprensa, é um errado no qual Lula é igual aos outros. (Que a imprensa esteja apenas dando vazão ao fígado fica claro com a "denúncia" de que Temer, vice-presidente na ativa, tenha pedido passaporte diplomático para a mulher e o filho pequeno. Como se eles devessem, quando o acompanham, pegar fila separada.) Um errado, aliás, que em muitos casos, como no da vitaliciedade do acesso aos planos de saúde para presidente e congressistas, está engastado na lei.

Fica particularmente aparente o jeito como o tratamento diferenciado para "ôtoridades" no Brasil é banal, ao menos quando se trata de ôtoridades sem anel de doutor nem sobrenome ilustre, no editorial da Folha assinado pelo ex-governador de São Paulo Alberto Goldman, no qual ele, criticando acertadamente Lula por, já ex-presidente, passar férias em instalações do exército, comenta que "é como se eu agora quisesse passar férias no palácio de Campos do Jordão" - sem se dar conta do absurdo que é o governador de São Paulo possuir palácio de campo. Aliás, um não, um de verão e um de inverno, além do palácio de governo. Nem isso só existe em SP; no Rio também o governador tem à disposição uma trinca de palácios.

E nem são os governadores os piores perpetradores, coletivamente. Afinal, de contas, Lula não é Nelson Jobim para passar férias em base militar porque gosta de fardas. Nossas forças armadas, que estão na penúria quando o assunto é material de guerra ou logística, são em compensação, para dizer o mínimo, faustosas quando se trata do conforto do oficialato, entre as bases (clubes de campo) e os círculos militares (clubes urbanos).

Como sói acontecer, a grande mídia desencavou um problema grave brasileiro, e ignorou ele completamente graças à obsessão com o Lula-Stálin da cabeça deles.


PS Outro caso de mira pouco calibrada foi o de Elio Gaspari, que criticou (acertadamente) o fato de Dilma Rouseff e Sérgio Cabral terem falado em ocupação irregular quando visitaram as áreas afetadas pelos deslizamentos de terra, sem se dar conta de que todas as matérias em volta de sua coluna falavam a mesma besteira que os governantes.

PPS SP: Verão - Horto, Inverno - Campos, Bandeirantes. RJ: Trabalho - Guanabara, Residência - Laranjeiras, Verão - Brocoió.

PPPS Nem vamos comentar nada sobre a Tebas mineira erigida pelo Aecim. Vai ver é mania de mineiro.

13.1.11

À Natureza o que é devido

Existe uma noção, amplamente propagada, de que no Brasil "não existem desastres naturais." Noves fora os mortos anuais das chuvas devido à incúria governamental, como em São Paulo, desastres naturais de verdade como na Região Serrana do Rio de Janeiro provam que isso não é verdade. Ao contrário de São Paulo, em que a chuva mais intensa até agora despejou 60mm de água, na Região Serrana foram 260mm em menos de um dia. Água equivalente a um furacão pequeno, numa zona de morro íngreme com solo frágil e raso sobre o gneiss. O único jeito de evitar qualquer desastre seria abandonar toda a região serrana. O que não exime os governos de culpa, mas não por não evitar, como tem gente reclamando, mas por não saber como enfrentar um desastre natural.

E é por isso que, cada vez mais, o Brasil deveria ter uma Defesa Civil que soubesse não prevenir (porque isso é, em casos assim, impossível), mas lidar com desastres naturais. Por exemplo, hoje fala-se de "habitação em local inseguro," geralmente de habitações mais pobres, que deveriam ser removidas, e ponto. Mas é óbvio que existem vários níveis de segurança, frente a vários fatores, e habitações deviam ser classificadas em relação a esses fatores. Assim, poderia haver um alerta de chuva (como existem alertas meteorológicos em diversos países do mundo), com graus de intensidade, pelo qual pessoas em cada nível de alerta seriam convidadas a sair de casa e dirigir-se a locais seguros. Até e incluindo, sim, dependendo do caso, a evacuação total da cidade. Eg, se caísse na Região Serrana a quantidade de chuva que caiu no Rio de Janeiro no começo do ano passado, seria o caso.

Claro que, para fazer isso, precisaríamos investir muitíssimo mais do que hoje se investe em georreferenciamento, meteorologia, e simples mapeamento. Até hoje o Brasil não tem um mapeamento do seu território (nem no Sudeste) equivalente ao que a Itália (que convenhamos, não é exatamente paíszinho perfeito) tinha, nas plantas do Instituto Geográfico Militar, em 1916. Mas mesmo sem esse investimento, já se poderia, e seria relativamente barato, fazer o esqueleto de um tal sistema.

PS O mínimo que se espera de governantes é que, mesmo que sejam culpados mesmo por uma tragédia, como no caso de São Paulo, expressem solidariedade com as vítimas. Alckmin ao invés disso se justificou sem falar delas. Kassab ao invés disso pôs a culpa pela tragédia nas próprias vítimas. Como se alguém que mora numa favela às margens da Billings o faça porque não achou o Jardim Paulista agradável o suficiente.

PPS O assustador é que, com o aquecimento global, cujo nome mais apropriado seria "aumento antropogênico da energia total contida na atmosfera terrestre," aguaceiros como os que vitimaram Santa Catarina, Rio de Janeiro, e Região Serrana fluminense se tornarão cada vez MAIS frequentes. Em alguns modelos, até 3 aguaceiros desse porte castigarão o litoral da Serra do Mar todo ano a partir de 2025, mais um ou dois furacões anuais a partir de 2035.

PPPS Na verdade possível seria escudar toda a Região Serrana contra uma chuva dessas. A um custo módico de uns três ou quatro trilhões para se fazer barreiras de contenção nível muro de cais em todas as encostas perigosas.

12.1.11

Cui bono, Hyperborea?

Que no aquecimento global muita gente vê, não um problema grave causado pelo petróleo, mas uma oportunidade de se extrair mais óleo, no mar ártico (ex-calota polar ártica), já é tão sabido que já virou até um cartum desenhado por uma adolescente (e muito bom). Agora o curioso é que essa idéia - que qualquer ambientalista necessariamente vai considerar no mínimo de mau gosto - pode beneficiar gente que tinha feito um casamento por afinidade mútua com os ambientalistas nos anos 80.

Assim, a Groenlândia, que é atualmente a maior colônia ainda existente, pensa que pode conquistar, com o petróleo polar, a independência financeira e, a partir daí, a independência política. E assim como a Groenlândia, boa parte do círculo polar está nas mãos, formal ou informalmente, de povos tradicionais; o fato daquelas terras não serem até agora lá muito atraentes significa que foi relativamente fácil para a pressão moral e política exercida por eles ter resultado nos parlamentos dos países nórdicos e do Canadá, e até um pouquinho na Rússia e nos EUA. Claro que uma das opções a partir de agora é esses povos simplesmente serem escanteados na corrida pelo ouro negro, mas a idéia de que eles possam lucrar algo não é necessariamente otimismo ingênuo. E olha que precisar precisam - a combinação da depressão e alcoolismo comuns em povos tradicionais confinados em reservas ou equivalentes, lá, se soma à depressão e ao alcoolismo comuns em povos que não vêem o sol por meses a fio para fazer da vodka e do uísque itens da cesta básica.


Da Bloomberg:
O objetivo da Groenlândia de ganhar independência plena da Dinamarca está mais próximo de se concretizar, uma vez que a alta dos preços do petróleo e o derretimento do gelo provocado pelo aquecimento global despertam o interesse nos combustíveis fósseis que o país tem, da parte de companhias como a Royal Dutch Shelle a Statoil.

"As descobertas recentes de possíveis jazidas de petróleo aumentaram a discussão sobre a questão da independência", disse em uma entrevista na segunda-feira, em Oslo, o primeiro-ministro da Groenlândia, Kuupik Kleist, depois de um encontro com o ministro das Relações Exteriores da Noruega, Jonas Gahr Stoere. "Esse é um objetivo que temos e a cada dia chegamos mais perto dele."

A Groenlândia está apostando que o desenvolvimento de suas reservas de petróleo vai ajudá-la a encerrar quase 300 anos de domínio dinamarquês.

A ilha, no extremo norte do planeta, está despertando "um enorme interesse" na indústria petrolífera para as rodadas de licenciamento de exploração previstas para 2012 e 2013, segundo informação de sua agência de energia, e recebeu um recorde de 17 inscrições de 12 companhias no processo de apresentação de propostas para a Baía de Baffin no ano passado, que incluíram, entre outras, a Cairn Energy, Statoil, Royal Dutch Shell e A.P. Moeller-Maersk.

"Não é um mecanismo automático o de se tornar economicamente autossuficiente e ser um Estado soberano. São duas questões diferentes", afirmou Kleist. "Mas é claro que, se você for economicamente autossuficiente, isso ajuda muito."

O nordeste da Groenlândia tem reservas equivalentes a 31,4 bilhões de barris de petróleo, enquanto que outros 17 bilhões de barris podem estar sob o leito do mar entre a Groenlândia e o Canadá, segundo a United States Geological Survey, uma agência do governo americano.

A Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) produziu 29,2 milhões de barris de petróleo por dia em dezembro, segundo estimativas da Bloomberg. Cairn começou a perfurar petróleo ao largo da costa da Groenlândia no ano passado e informou que encontrou petróleo em um de seus poços.

"Se tudo ocorrer conforme desejamos, entre 5 e 10 anos provavelmente será o cronograma" para o início da produção de petróleo, disse Kleist. Após uma série de tentativas fracassadas de exploradores de encontrar petróleo comercialmente viável na Groenlândia nos últimos 30 anos, companhias de petróleo estão agora voltando ao país porque o aquecimento global está tornando a exploração no Ártico mais viável, levando-se em conta também que as reservas em outras partes do mundo estão se esgotando.

Com os preços do petróleo atingindo o maior nível em 27 meses - chegou a US$ 92,58 o barril na semana passada - e com a legislação mais dura no Golfo do México ameaçando dificultar a exploração na região, as companhias de petróleo estão se voltando para regiões menos hospitaleiras. A Groenlândia concedeu sete licenças no ano passado para oito companhias, que incluíram a Statoil, Royal Dutch Shell e Maersk.

A Dinamarca concede à Groenlândia um subsídio anual de cerca de US$ 608 milhões, ou US$ 10.700 por habitante. A ilha na região ártica, com uma população de 57 mil habitantes, conseguiu autonomia em 1979 e um aumento dos poderes locais em 2009. Segundo a agência de estatísticas da Groenlândia, cerca de metade da economia de US$ 2 bilhões da ilha depende das exportações de camarão.

Kleist não quis comentar sobre quanta receita de petróleo a ilha precisaria para não depender mais dos subsídios da Dinamarca, mas ele disse que a região precisa "urgentemente" ampliar suas fontes de receita. "Estamos tentando desenvolver uma economia mais diversificada, estamos olhando para o turismo, para os recursos minerais e é claro, continuamos olhando para o desenvolvimento dos recursos vivos", disse Kleist. "Da maneira como estamos hoje, estamos muito vulneráveis."

Kleist, que lidera o partido socialista Inuit Ataqatigiit da Groenlândia (que compõe o governo junto com os partidos Demokraatit e Kattusseqatigiit desde junho de 2009), encontrou-se com o ministro do Exterior da Noruega para discutir "questões árticas", incluindo a administração dos recursos naturais, as mudanças climáticas e a cooperação energética, segundo disse Gahr Stoere em uma entrevista.