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31.5.12

Uma agenda para os ruralistas

A se julgar pelas defesas feitas pelos ruralistas do desmatamento amplo, geral, e irrestrito, não é - como poderia parecer - a sorte de grandes latifundiários que lhes preocupa, mas um rol de questões humanas, econômicas e sociais relevantes. Ora, os pobres coitados, pelo visto um pouco confusos, não sabem que existem jeitos melhores de se resolver essas questões do que o desmatamento de qualquer área maior do que o jardim da casa da velhinha de Taubaté. Assim, vão aqui algumas sugestões:


"Sem o desmatamento, estará ameaçada a segurança alimentar brasileira" : de si, a alegação é estranha, porque a fronteira agrícola não planta gêneros alimentícios em geral, mas carne e soja para exportação. Mesmo a carne consumida no Brasil não é um gênero alimentício de primeira necessidade, nem um do qual o Brasil precise aumentar a produção. Mas vamos lá, se a preocupação é com a mesa da brasileira, acho que deveriam se preocupar antes com o desperdício de alimentos no transporte e distribuição, que afeta mais da metade das hortaliças colhidas. Sério, daria para alimentar dois Brasis apenas zerando os desperdícios, e aumentar a disponibilidade de comida para o Brasil em 40% apenas levando eles para níveis europeus.

Se o problema é preservar os pequenos agricultores, a solução não é liberar que eles desmatem, nem isso é algo com poucas consequências. Ao contrário da visão pastoral idílica que até parte da esquerda encampa, os pequenos produtores desmatam sim, e muito - 67% do desmatamento brasileiro na década de 2000. Por isso, e não por um azar de um deus vingativo, que a bancada ruralista tem muito poder: porque seus interesses e os dos pequenos produtores se alinham na rejeição à regulação ambiental. Ora, há uma coisinha de somenos consequência na qual os interesses de pequenos produtores e os dos grandes divergem radicalmente, e que ajudaria muito mais os pequenos do que a anistia ao desmatamento: trata-se do ITR, que graças aos incentivos à produtividade (portanto ao desmatamento) deixa de ser progressivo. Com um imposto progressivo, os pequenos agricultores teriam muito mais chances de competir com os grandes sem desmatar tudo.

Se a questão é a balança comercial brasileira, vejam bem: os grandes superávits da balança comercial atual não são uma coisa boa. Ao valorizar o dólar, criam uma forma de doença holandesa, prejudicando as condições de sobrevivência de todo o resto da economia, e principalmente a indústria.

Se a questão é a sorte do trabalhador rural, os ruralistas seriam a favor, e não contra, a PEC do trabalho escravo, ora pois.

Se se preocupam com a soberania nacional frente às ONGs internacionais, poder-se-ia acusá-los de hipocrisia, devido ao fato de o agronegócio ser em boa parte posse de grandes empresas multinacionais, como Louis Dreyfus, Archer Daniels Midlands, Cargill, Bunge (esta o supra-sumo da transnacional, já que não possui dono (o maior acionista é a própria Bunge, via ações na tesouraria) e tem sede nas Bermudas) & Co. Mas deixando a acusação de lado, a soberania nacional implicaria, creio, não permitir que corporações estrangeiras se façam essenciais para o funcionamento da agricultura nacional, como é o caso de Monsanto e Basf, fornecedoras únicas das sementes (geneticamente modificadas ou não) usadas pela agricultura industrial e dos insumos a elas associados.

Não lembrei de mais nada em dez minutos. Alguém tem mais sugestões para nossos queridos amiguinhos ruralistas?

30.5.12

Eu, Tiago Thuin, eleitor da UDN

O PSoL, nascido como dissidência do PT, sempre foi acusado por este de "fazer o jogo da direita." Em geral, a acusação serve para toda e qualquer ação que vá contra o que o partido-mãe faz, aí incluídas as denúncias, corretíssimas, de cooperação entre este e a direita - ruralista, evangélica, industrial, a que seja. É mais difícil, entretanto, deixar de achar que o PSoL faz o jogo da direita quando assina embaixo, junto com os líderes dos Democratas, do PPS, e do PSDB de uma representação criminal contra Lula elaborada por Álvaro Dias, baseada numa entrevista de Gilmar Mendes, à Veja.  

Reparem em rigorosamente todos os nomes mencionados. A defesa do PSoL da ação é nas linhas do "quem não deve não teme," e que o partido já havia pedido o impeachment de Gilmar, ao contrário do PT. Ora, se o partido realmente acreditar que a representação é um passo investigativo, e não uma ação política, que ajuda a blindar - de novo, politicamente - Gilmar Mendes e seus companheiros na Veja e no PSDEMB, é de uma ingenuidade incrível. Literalmente incrível, para qualquer político, quanto mais um partido político inteiro, o que leva a duas possibilidades: ou bem o PSoL, como alega o PT, está cego de raiva por este, e considera a sua derrota o bem maior, mesmo que isso implique na vitória de partidos que lhe estão à direita (não acreditar que exista diferença entre PT e DEM é outra ingenuidade que, de novo, não cabe bem em nenhum político), ou bem o PSoL ignora as repercussões políticas do fato político ao qual se associou, porque sua vantagem e vontade é a de aparecer, qual promotor com ambições políticas de filme B, sempre acusando.* Como, digamos, a UDN.

Neste segundo caso, o cálculo é inteiramente correto: a esquerda propriamente dita tem muito pouca força no Brasil, e aparecer como UDN rediviva é algo que dá votos; tanto que até os DEMos, de resto mais afetos ao idéario da UDN do que o PSoL, mas em compensação de reputação um pouquinho menos que imaculada, já tentaram fazê-lo; não só a Globo já deu demonstrações de afeto pelo candidato do PSoL à prefeitura carioca, Marcelo Freixo, conhecido por uma luta que é meritória, mas não particularmente de esquerda,** como este pediu e recebeu o apoio da vereadora do PSDB, higienista, e irmã do presidente eterno da Firjan Andrea Gouvea Vieira.

Inteiramente correto,  mas no mínimo problemático em termos do avanço de uma agenda de esquerda; mesmo com os votos dos cidadãos de bem indignados, o PSoL não ganhará eleições nacionais tão cedo, e a radicalização do udenismo ameaça deixar de lado, como na candidatura Heloísa Helena, essa agenda. Não que Plínio tenha sido o candidato dos meus sonhos - ele se juntou ao "amigo Serra" contra Dilma e Marina no debate, e encampou uma proposta de redução de imposto de renda para a classe média - mas pelo menos em linhas gerais dessa armadilha ele fugiu. Mas a atração do udenismo é forte - é algo que junta o retorno pragmático com a satisfação da indignação (que todo mundo sente - eu, você, a Heloísa Helena ou o ACM Neto, todo mundo. Ok, talvez não o Keanu Reeves).

E sabe o que é o pior? Esse partido que estou chamando de UDN vai ganhar meu voto no primeiro turno, assim como o PT vai ganhar no segundo, até onde possa prever.  Por absoluta falta de opções, em ambos os casos. Porque o voto no PSoL, mal ou bem, significa um voto num partido que foi contra o "veto" meia-boca de Dilma ao código desflorestal, que fala abertamente de direitos humanos, inclusive os GLBT, enfim, que eu gostaria que tivesse muito mais poder do que tem. (O Bispo Macedo teve três vezes mais votos contra o código desflorestal, versão Piau, do que o PSoL.) Quem sabe até, se tivesse mais poder, prescindisse do udenismo?


*Claro que, aí, poderia ter feito representação em separado, pedindo a investigação de ambos, ao invés de subscrever a do bloco de direita.
**Petistas que denunciaram o fato para justificar seu apoio a Eduardo Paes, candidato preferido da Globo, sofrem de um pequeno problema de dissonância cognitiva. Petistas que falam que ele "se aproveita politicamente" da luta contra as milícias deveriam se juntar aos antipetistas que falam que Lula se aproveita politicamente do próprio câncer, e passar umas férias na Arábia Saudita vestidos de mulher.


PS Menção honrosa ao deputado Jean Wyllis, que já declarou ser contra a subscrição da representação do Álvaro Dias.

PPS e atualização: o PSoL protocolou (dessa vez, sem os aliados da primeira representação DEM, PPS, e PSDB) também uma representação contra Gilmar Mendes. Provando que é o udenismo, mais do que o ódio ao PT, que importa. A não ser que alguém ache que qualquer uma das representações tem efeitos práticos e investigativos, ao invés de políticos, o que de novo é ingenuidade demais.

29.5.12

Verde, amarelo, azul e branco

A ONG SOS Mata Atlântica tem como símbolo uma bandeira do Brasil em que o verde - que representaria as matas - está pela metade comido. Não deixa de ser uma representação realista: é mais ou menos essa a proporção de cobertura vegetal desmatada no país. (Se representassem a cobertura desmatada da própria Mata Atlântica, o verde estaria restrito a um cantinho da bandeira, visto que desta só sobraram uns dois porcento.) Não deixa de ser interessante perguntar pelo que representam as outras cores da bandeira. O ouro, já se sabe, há muito se foi, fosse para pagar as dívidas de Portugal, fosse para pagar os faustos de Donas Beijas, Xicas da Silva, e congêneres. Também pode ser encontrado nas igrejas do Brasil e da Península Ibérica, e graças a estas nas casas da aristocracia tupiniquim, já que a talha tanto das igrejas demolidas quanto das que continuam de pé adorna apartamentos na Vieira Souto e mansões no Morumbi.

E o azul? Bem, o azul não vai lá muito bem. O mar brasileiro já é pobre por natureza, graças aos azares das correntes mundiais; as águas mornas de boa parte da costa, não compensadas em geral por nenhuma abundância de sedimento, significam uma escassez de vida marinha. Só há uma abundância de vida na costa de Santa Catarina, Pará, e Maranhão; ou mais rente à terra, nas áreas de mangues, que estão sob ataque da ocupação humana, tanto da urbana quanto da carcinocultura, ambas anistiadas no código desflorestal sancionado semana passada. Mesmo assim, o governo fez, para acomodar aliados, um bizarro ministério da Pesca, como se estimular uma exploração já no limite fosse uma boa idéia. Bizarramente, e apesar de esse "no limite" ser sabido, o ministério não tem uma estrutura de pesquisa digna do nome.

Tampouco pode-se dizer que, apesar de todas as praias e baías, as universidades do Brasil são lá muito bem equipadas em termos de pesquisa oceanográfica. A USP comemora a vinda de um novo navio, o Alpha Crucis, para substituir o antigo que já era o maior de qualquer universidade do Brasil. Ora, o Alpha Crucis tem um quatorze avos do tamanho do Almirante Irizar, maior navio de pesquisa oceanográfica da Argentina - que, lembremos, tem a mesma população e PIB do Estado de São Paulo. Tem mais: há dois outros navios oceanográficos argentinos maiores do que o Alpha Crucis.  Mas esperem, universidade não é tudo. Afinal, a Marinha do Brasil tem barcos maiores que o Alpha Crucis. O maior deles, o Almirante Maximiano, chega a um pouco mais de um terço do tamanho do Almirante Irizar...

O desconhecimento das condições do mar territorial brasileiro dá vazão ao descaso, que também se estende ao policiamento desse mar. Dizia o oceanógrafo David Zee, em introdução ao seu livro procurando arrecadar fundos para um aquário marinho na zona portuária do Rio: "o Carioca tem muita cultura de praia, mas pouca cultura de mar." Não é só o carioca.

PS Não sei muito bem o que representa o branco. Imagino que a cocaína que irmana frequentadores de baile funk na periferia e boates putsputs de filhos dazelite. Essa vai bem.

25.5.12

Projeto Hudson redux

Num post anterior, comentei aqui sobre o megalomaníaco projeto do Instituto Hudson, think tank americano que pretendia criar um mar interior na Amazônia represando o rio-mar em Óbidos, transformando em um mediterrâneo cheio de lavouras e cidades o ermo (wasteland - nos anos 60 ainda estava em curso a transição pela qual a palavra passou de significar área não aproveitada pela humanidade, incluindo qualquer mato, para querer dizer área desolada, sem vida). Pois bem, é curioso como a proposta do atual governo brasileiro para a região, mutatis mutandis e sem a megalomania descomunal, parece cada vez mais ser a do Instituto Hudson. Com vernizes, evidentemente, já que declarar tal coisa a peito aberto não é muito popular hoje em dia.

Vejamos a última comunicação do governo sobre o setor de energia elétrica: a de que estão canceladas as usinas nucleares propostas, e a base da expansão será a energia hídrica. Não se trata exatamente de um terceiro excluído; mesmo com geração eólica bem maior do que a prevista pelo governo, um Brasil com crescimento médio que seja não poderia dispensar outras usinas de algum tipo, e principalmente aquelas, como a hidrelétrica e a nuclear, que funcionam na base - o tempo todo e previsivelmente. Eólicas têm um limite de confiabilidade, que funciona com outras usinas para suprir a defasagem quando o vento não sopra. E energia solar ainda é caríssima, e mesmo com todos os aumentos de eficiência do mundo, o Brasil ainda precisa de muito mais metrô, trem, computador, e todas essas coisas que consomem energia elétrica.

Face a essas duas alternativas impalatáveis, o governo optou (como tem optado sempre, em qualquer ocasião) pela usina hidrelétrica, apesar de deixar aberta a porteira para a termelétrica a carvão do amigo Eike Batista, a pior opção possível em termos ambientais. Mas não precisam se preocupar, serão Usinas Plataformas, similares à operação de plataformas de petróleo em alto mar, e por isso não causarão danos ao meio ambiente, ou só causarão danos mínimos! A alegação é no mínimo bizarra, por uma série de motivos:

1 - Plataformas, em que pese sua popularidade, estão longe de "não causarem danos ao meio ambiente." Causam, e muito, desde a fase de prospecção, em que animais são mortos pelas ondas de choque, passando pela perfuração, em que vaza fluido de broca e há risco de acidentes catastróficos, até a operação, em que manchas de óleo próximas são comuns.

2 - Se não há milhares de operários numa plataforma no meio do mar, é por dois motivos simples: o mar é péssimo para se morar, e ótimo para arrastar cargas pesadas sobre ele. Ninguém vai implantar um canteiro de obras no meio do oceano, e ninguém vai arrastar por terra uma barragem hidrelétrica construída - como o são as plataformas - num estaleiro urbano.

3 - A alegação de que "não haverá estradas permanentes" não faz sentido. O problema é a própria construção, e não a operação, e ninguém imagina que se levará operários e cimento de helicóptero. Falar de "novas tecnologias de manutenção" é outra baboseira; de novo, o problema é a construção, como pode ser abundantemente visto na hidrelétrica de Belo Monte.

4 - A alegação de que a área ao redor, desmatada durante a construção, será reflorestada e "rigidamente controlada" pela União é, no mínimo, curiosa. Ora, se a União conseguisse fazer cumprir as atuais leis (ainda não foi sancionado o código desflorestal), desmatamento não seria problema nenhum, nem violência, nem doenças, nem nada. Se não consegue agora, qual a credibilidade que tem em dizer que conseguiria em torno dessas usinas plataforma?

5 - Mesmo que as tais usinas funcionassem como alegado, com feéricos dirigíveis gigantes largando a barragem do céu, a interrupção no fluxo do rio - e portanto de tanto peixes quanto sedimentos - por um enorme muro de concreto tem efeitos ecológicos importantes.  Se assemelha, é verdade, às plataformas no quesito "não dá pra ver na foto," o que imagino seja a maior preocupação... e olha que nem mencionei que, se a Dilma está preocupada, como alegou, com reservatório, essas usinas não vão ser, como Belo Monte, Jirau, e Santo Antônio, a fio d'água, mas criarão imensos lagos.

Ora, ninguém crê que Maurício Tolmasquin ou Dilma Rousseff sejam imbecis. Então por que estão vendendo um modelo de usina patentemente falso, e que vai, na verdade, intensificar o desmatamento e promover etnocídios? A resposta é óbvia: porque para eles, as mesmas ações tomam valor positivo, e se chamam integrar territórios e gentes à nação e à economia brasileiras, numa perpetuação dos ideais amazônicos da ditadura. Como o Instituto Hudson, que queria fazer great lakes brasileiros, o ideal deles é uma imensa Minnesotta, com umas florestinhas cênicas aqui e acolá sendo invadidas no verão pelos suburbanitas de Manaus e Porto Velho. Não é por nada que, neste momento, está no Congresso, além do código desflorestal, uma proposta de abrir territórios indígenas à mineração.

Atualização: o governo já está andando com as usinas do Tapajós. Que, lembrando, são mil vezes piores do que Belo Monte. Belo Monte, assim como as usinas do Madeira, está sendo construída numa área que já é parte do arco do desmatamento, já é largamente degradada, e aonde os conflitos da fronteira agrícola já são parte do cotidiano. As usinas do Tapajós vão levar essa realidade para áreas de floresta intocada.

Atualização 2: as empresas elétricas já encamparam de peito aberto a defesa dos reservatórios. Que, convenhamos, são mais lógicos mesmo; uma usina hídrica, com todos os seus impactos, só é superior a uma eólica por conta do reservatório. Usina hídrica a fio d'água, no mais das vezes, só dá lucro em condições amigas (governo participando do consórcio, dando o empréstimo, contratando a outra sócia como empreiteira, e pagando pela transmissão), como em Belo Monte. É o reservatório que permite à usina funcionar ao mesmo tempo como usina de carga-base e de reforço, evitando sobreoferta ou acionamento de térmicas (que é denunciado por jornais como "novela deixará eletricidade mais cara").

24.5.12

Ali Kamel e seus discípulos

O diretor de jornalismo das organizações Globo Ali Kamel ficou famoso pelo livro Não Somos Racistas, um dos muitos livros lançados para se contrapor ao reconhecimento oficial de que existe racismo no Brasil, durante a conferência de Durban. A opinião parece ser popular na mídia brasileira; afinal, como diria Roberto Civita, “As pessoas que não concordam, veem o mundo de outro jeito, acabam não ficando, são meio rejeitadas pelo organismo," e o organismo em questão é a vontade de um patrão que, em geral, apoiou o golpe militar de 64 ou é filho (filho mesmo, biológico) de gente que o fez. Há exceções honrosas, como Elio Gaspari e Míriam Leitão, no que concerne à política de ação afirmativa e ao reconhecimento do racismo, mas elas são exceções, em geral de jornalistas que chegaram a medalhões (seguindo as orientações dos patrões em outros respeitos, no caso da Míriam Leitão).

É nesse contexto que é curioso, no mínimo, que na semana em que dois casos fragorosos de racismo são relatados no Brasil, o assunto não tenha merecido repercussão particular. No caso dos estudantes angolanos que foram chamados de macacos e baleados em São Paulo, a matéria da Folha sequer faz alusão aos detalhes do caso. A matéria do Estadão fala da injúria racista, mas ainda leva o título Discussão de bar deixa universitária morta e angolanos feridos no Brás. Não achei nada no site dO Globo. O assunto é tratado como se fosse mais um caso de páginas policiais internas, e a dimensão do racismo, que todavia é crime constitucional no Brasil mesmo sem o assassinato, esquecida. E olha que mesmo sob a definição de crime racial muito mais estrita americana, isso é um caso mais do que claro. Faz sentido; se você quer dizer que não existe racismo no Brasil, não é bom que as pessoas sejam lembradas de que uma mulher grávida foi baleada por um homem que lhe chamava de macaca.

No outro caso, mais espetacular porque caiu no youtube, quem cometeu o crime de racismo foi a própria imprensa, na pessoa de uma repórter da retransmissora baiana da Bandeirantes. Com a repercussão que o caso tomou, incluindo ação do Ministério Público, a rede de TV rapidamente sacrificou a repórter e usou a defesa da maçã podre - não questionada por nenhum outro órgão de imprensa, apesar de a matéria, evidentemente, ter passado por algum editor. Ainda mais considerando-se que já eram passados mais de oito dias entre sua veiculação na TV e o começo da gritaria no youtube.

Em ambos os casos, a conclusão é clara: não existe racismo no Brasil. E se existir, será ignorado. Não dá pra deixar de achar que é o inverso da máxima de Goebbels: uma verdade, suficientemente ignorada, ganhará foros de mentira.

23.5.12

O mulato inzoneiro

No confronto novamente ocorrido entre neopentecostais e advogados de direitos humanos para gays, lésbicas, bissexuais, e transgêneros*, é inescapável, pelo menos para qualquer pessoa honesta, a constatação de que um dos lados alega perseguição quando não tem tudo que quer, enquanto o outro é perseguido mesmo - alvo de violência cotidiana e mesmo números assustadores de assassinatos. Muito mais, aliás - por mais que as estatísticas não sejam muito confiáveis - do que na maioria dos países, e, curiosamente, principalmente muito mais do que em outros países em que a homofobia não é uma bandeira oficial.

Sim, porque, com todas as abdicações e mimos à bancada evangélica, o Brasil não é um país oficialmente homofóbico. Mais ainda: de jure, o Brasil está à frente da maioria dos países do mundo, e mesmo de muitos países do mundo "desenvolvido." As duas bandeiras principais de conquista em termos de lei, a criminalização da homofobia e o casamento, stricto sensu e como algo diferente da união civil estável, são algo que não se encontra em quase lugar algum, principalmente a primeira. Há união civil, há reconhecimento de parceiro para fins de tratamento de saúde, herança, e adoção, há cirurgias transgênero grátis... "De jure" ganha um significado adicional porque a maioria das conquistas foi obtida via judiciário ou executivo, e portanto é muito mais frágil do que uma conquista via legislativo, mas elas estão aí.

Nem parece, pelos usos que se vê na mídia da questão, que a sociedade brasileira seja, em geral, particularmente homofóbica. É radical e horrivelmente homofóbica, sim, mas não mais do que outras. O que explica, então, o índice de mortos por homofobia tão mais alto? Não é que os gays assassinados o tenham sido, como alegado pelos que tentam minimizar a questão, pela violência circuncidante: estou falando das mortes que podem ser atribuídas diretamente à homofobia.

Aqui vai uma tentativa de resposta, que sem pesquisa não pode ser chamada de hipótese: é que a sociedade brasileira é (talvez em parte por culpa da ditadura militar) caracterizada por um alto grau de legitimidade da violência. Não é apenas que a violência grasse, por conta de questões como tráfico de drogas, autoritarismo policial, ou quejandos, mas que ela seja considerada em geral legítima, e como parte de um movimento geral de radicalidade no tratamento de quem está errado (aos olhos de cada um, claro). Paradoxalmente, é a mesma atitude que faz com que ensejemos criminalizar o discurso homofóbico (como já é criminalizado, em tese, o discurso racista ou misógino); o brasileiro acha simples criminalizar, punir, prender e arrebentar o errado. A distância entre o discurso homofóbico e, digamos, a prática homofóbica (a morte, a tortura, a lâmpada na cara, a castração com anzóis, e outras delicadezas praticadas contra gays) é, aqui, mais curta do que na maioria dos países.

Juridicamente, a maior radicalidade dessa atitude está na facilidade com que se sugere que, para tal ou qual categoria de crimes, a suspensão de direitos básicos de qualquer cidadão, como não ser preso antes do julgamento. Assim, quando o STF, já não sem tempo, declara que a lei que torna tráfico inafiançável é inconstitucional, a mídia quase em peso reportou isso como "Supremo julga que mesmo traficantes presos em flagrante não poderão ser presos." Nem a lista de crimes inafiançáveis permite que se atribua o uso do dispositivo apenas aos reacionários: lá estão racismo, tráfico, não-pagamento de pensão, "Falsificação ou adulteração de produto para fins terapêutico ou medicinal"... a lista soa como a enciclopédia chinesa do Borges. O que permite isso: a facilidade com que se retira uma garantia básica, desde que o suspeito tenha feito (suspeitosamente) algo errado. A aprovação da violência contra os maus.

E por isso mesmo - voltando à homofobia - a radicalização de uma agenda antihomofóbica nas leis não vai ter resultados diretos tão expressivos assim em relação à violência homofóbica. Porque enquanto a homofobia for comum entre as forças da ordem, vai haver, de facto, um alto grau de tolerância em relação à homofobia violenta, mesmo que o discurso homofóbico seja criminalizado. E leis não são lá muito importantes na formação das noções brasileiras de certo e errado. Por outro lado, temos uma imprensa inteirinha, inclusive as TVs que são concessão estatal, todinha à direita da Fox News (a Folha é considerada moderada, e tem devotos de Ayn Rand como Pondé e Coutinho escrevendo no caderno de Cultura; todos os grandes órgãos de imprensa foram entusiastas da ditadura). E temos os pastores neopentecostais, pregando ódio e recolhendo o dízimo...

*era tão mais fácil chamar tudo de gay...

18.5.12

Prioridades da defesa nacional

Uma das coisas que mais me deixam curioso - caso a nova lei de acesso à informação realmente dê em algo - é saber dos gastos detalhados do Ministério da Defesa. E algo que ouvi outro dia sobre as plataformas da Petrobrás me deixou ainda mais curioso:

As plataformas de extração de petróleo, a 100, 200km da costa, são verdadeiros recifes artificiais que, isolados da maioria das fontes poluidoras, atraem um sem-número de peixes e moluscos. O lugar seria ainda mais seguro para eles porque a plataforma - uma estrutura do tamanho de alguns quarteirões, com linhas de âncora para todo lado, tubos de petróleo, e rebocadores do tamanho de um navio médio girando em torno - não é exatamente segura para seres humanos. Além de ser proibida a estes, claro, ela e um raio de 500m no entorno.

O perigo, obviamente, não afasta os pescadores atraídos por estas lajes artificiais, nem os comerciais nem os amadores. Estes, levados por embarcações que anunciam a atividade ilegal na internet, fazem pesca com arpão dentro da plataforma, se expondo a perigo de morte e arriscando furar com seus arpões algum sistema importante  - e causar um desastre ambiental sem tamanho. Os profissionais, principalmente atuneiros, causam desastre ambiental desde o começo: é que, para espantar as gaivotas que concorrem com eles pelos peixes arpoados, espalham óleo no mar à sua volta.

Para a Petrobrás, ambos os tipos são problemáticos acima de tudo porque atrapalham, ou até interrompem, a produção. A Marinha, chamada pela empresa, explica que não tem recursos para fazer o patrulhamento. Ora, a mesma Marinha que não tem recursos para mandar uma lancha patrulhar cada campo (mais ou menos uns 20 milhões de investimento total, 1 milhão por ano de gasto) está comprando uma nova base de submarinos/estaleiro, mais um pacote de submarinos, a oito bilhões de reais em Itaguaí. Apesar de já ter ali ao lado um estaleiro apto a construir qualquer submarino do mundo.

O Ministério da Defesa, com orçamento de 50 bilhões, é dos maiores da Esplanada. Perde só para a Saúde e a Previdência Social. Apenas o custeio e investimento valem uns 10 bilhões (o que por si só já mostra o quanto é desperdiçado nos soldos e pensões de oficiais). E não dá pra achar 10 milhões pra proteger tanto a economia quanto o meio ambiente brasileiros em larga escala? Será porque os 1,7 bilhão (por ano) do submarino nuclear e base de submarinos são prioritários? Ou a manutenção do nosso porta-aviões?  Outra coincidência: lendo sobre a reconstrução francesa no pós-guerra, acho uma menção ao São Paulo, que na época chamava-se Foch: foi o primeiro casco francês construído depois da Segunda Guerra Mundial. Por isso que, apesar de ter sido comprado por um bilhão à França (na mesma época em que seu irmão mais novo, o Clemenceau, foi barrado de entrar na Índia para ser desmontado), vive parado - a tal ponto que a primeira guerra do Brasil no século XXI será contra, provavelmente, a prefeitura do Rio de Janeiro, que se cansará dos rolos de fumaça negra emitidos sempre que tentam ligar o porta-aviões.

Repetindo: o orçamento do Ministério da Defesa é de 50 bilhões por ano. É o segundo maior orçamento militar do hemisfério ocidental, e um dos dez maiores do mundo. Mas Canadá, Peru, Chile, Colômbia, e outros países das Américas com orçamentos muito menores do que o brasileiro têm armas mais avançadas e em maior quantidade. Aonde está sendo usada essa grana toda? Mesmo descontando todos os projetos que fazem gosto à vaidade de almirantes e generais, ainda sobram os quatro quintos do orçamento que não são nem investimento nem custeio; são o quê, já que bons salários e alimentação para os recrutas é que não são?

A caixa-preta das forças armadas continua fechada, um quarto de século depois do fim da ditadura. Já seria hora de abri-la.

16.5.12

Os Cincinatos tupiniquins

Cincinato foi um patrício romano que, tendo sido Cônsul e tribuno, voltou à sua fazendinha para mandar apenas nos próprios escravos e ser feliz sem maiores ambições. Virou sinônimo de retidão e probidade quando, depois de aclamado ditador duas vezes pelo Senado, recusou-se a ficar no cargo mais tempo do que o necessário para resolver a crise e, nas duas vezes, voltou pra fazenda. Menos edificante, mas mais humana, é a estória segundo a qual, muito mais tarde, seu filho fez besteira e inocentado, simplesmente porque ninguém tinha coragem de contar ao velho Cincinato sobre a condenação.

Pois bem, um dos tópicos recorrentes nas bocas dos defensores da Ditadura é a de que "não sei de nenhum general ficou rico," em contraste com a atual roubalheira; seriam um bando de Cincinatos. Ora, o problema aí é esse "não sei": o  fato é que à época qualquer revelação de um podre presidencial poderia resultar num editor torturado e morto. Mesmo hoje em dia, os grandes órgãos de imprensa brasileiros são favoráveis à ditadura, um deles, a Folha de São Paulo, tendo chegado a emprestar veículos de distribuição para os oprichniks do regime. Não custa lembrar que a mesma frase do "não sei" se aplicava até há pouco ao senador Demóstenes Torres, igualmente querido da grande imprensa.

Não custa refazer a pergunta: se não há nada que não seja sabido para se aprender nos arquivos da ditadura - e mortes e torturas de militantes esquerdistas são sabidas - por que então os militares têm tanto medo de abri-los? Não que imagine que todo tipo de falcatrua tenha sido consignado em arquivo, ou que todos os que tenham sido registrados tenham sobrevivido às queimas empreendidas nos últimos 30 anos.

Mesmo sem a abertura dos arquivos, temos uma certa quantidade de evidência circunstancial à mão. Por exemplo: Falam que é suspeito Lula ter uma cobertura em São Bernardo. Figueiredo deixou para a viúva uma cobertura triplex na praia de São Conrado. A diferença do metro quadrado entre o município da RMSP e o bairro carioca é de umas 5 vezes. Ah sim, e um haras. Fora que a ditadura, afinal de contas, não se compunha apenas de militares. Os ladrões mais famosos da Nova República foram todos pessoas que se iniciaram na política como agregados dos militares, se não diretamente como governantes biônicos, indicados pelos generais-presidentes. Collor, Sarney, Maluf, Antônio Carlos Magalhães, Jader Barbalho... alguém acha que eles só começaram a roubar depois de 1985, 1988, ou 1989 (dependendo de onde você queira situar nossa volta à democracia).

Ah sim, quanto ao outro lado supostamente cincinático dos generais-presidentes, o de que nenhum tentou - como outros ditadores - se perpetuar no poder: alguém realmente acha que um deles, se pensasse que conseguiria fazê-lo, não o teria feito? Castello Branco morreu de acidente de avião (até hoje suspeito de ter sido assassinato). Costa e Silva de derrame. Médici levou um golpe interno. Geisel estava desmontando o regime para manter os dedos (e os anéis). Figueiredo só faltou fugir na calada da noite.

11.5.12

Maquiavel pinel

Neste post sobre a aproximação entre o PT e o PSD, eu comentava sobre como a coisa, para além da falência moral, era um primor de imbecilidade. Afinal, só sendo muito burro para acreditar que Kassab ficaria contra Serra nas eleições paulistanas, ou que, mesmo que o ficasse, a base eleitoral dele (que base eleitoral?) votaria no PT. Pois o PT parece decidido a repetir a dose ao jogar as bichas aos leões.

A defesa dos direitos LGBT é uma bandeira histórica do PT. Foi o partido que introduziu no Congresso projetos de defesa do casamento igualitário, foi sob o PT que paradas do orgulho gay pararam de ser perseguidas e foram estimuladas (até virar micareta, mas isso não vem ao caso); foi sob o PT, e especificamente sob Haddad, que se preparou um kit anti-homofobia para ser distribuído em todas as escolas brasileiras. E o PSDB, não crendo que nenhuma bandeira das suas era palatável à população, agarrou-se à bandeira da homofobia com força nas eleições de 2010, denunciando o "kit gay" e associando-se aos piores pastores televangelistas.

O PT, ao invés de defender suas bandeiras históricas, preferiu mostrar a barriga aos evangélicos, aproximando-se deles e negando os gays três vezes. De novo, mesmo ignorando inteiramente o lado moral, é uma decisão problemática do ponto de vista político. Os evangélicos e homofóbicos em geral continuam achando que o PT é o partido gay, e a negação da propaganda negativa (como marqueteiros em geral sabem muito bem) não adianta de nada. Enquanto isso, os dividendos eleitorais que o partido poderia conseguir se apresentando como um partido progressista vão pro saco. Até eleitores do PSDB se sentem no direito de criticar a homofobia do governo petista.

A estratégia, já errada a nível nacional, se torna ainda mais idiota quando se trata da eleição à cidade de São Paulo. A quantidade de pessoas que vai na parada gay é de alegados 4 milhões de pessoas. Descontados os turistas (no máximo, pelo tamanho da rede hoteleira, uns 300.000) e o exagero (vamos tirar 2 milhões), sobram uns 1,7 milhões. 1,7 milhão de paulistanos são LGBT ou simpatizantes, e isso não conta os simpatizantes e gays que querem distância daquela micareta do inferno. Enquanto isso, os neopentecostais somam 1,2 milhão, contando crianças de colo.

Alguém faz essa conta pro Haddad, na próxima vez que ele quiser renegar a sua própria (e boa) iniciativa?

Mineradoras e a falsa noblesse oblige

Nem só com usinas hidrelétricas se destrói uma amazônia: está em tramitação no Congresso uma lei que abre as reservas indígenas à mineração. Não custa lembrar que as implantações dos grandes projetos de mineração da Vale, à época estatal e chamada Companhia Vale do Rio Doce, tanto no vale epônimo quanto na serra dos Carajás, envolveram verdadeiros genocídios, mas ok, ok, vamos pensar a lei com seus próprios méritos. Afinal, se as comunidades indígenas vivem à míngua, dois a três porcento do faturamento bruto de uma mina estilo Carajás é uma dinheirama bem-vinda, não? Pois bem, não exatamente. A questão é que uma situação como essa, em que uma pessoa ou uma comunidade se vê simultaneamente tolhida da possibilidade de se virar sozinha e beneficiária de uma caridade alheia sobre a qual ela não tem nenhum poder, é profundamente paralisante e (no sentido clínico meio) deprimente.

De certa forma, é essa a história da conquista pelos "civilizados" de povos menos poderosos e mais esparsos, seja aqui ou do outro lado do mundo. Em "the conquest of Ainu Lands," [pelos japoneses] Brett Walker narra um caso que serve quase de manual, tanto pela extensão e profundidade do ocorrido quanto por se dar fora da narrativa-padrão sobre esse contato, que é a européia - e mesmo assim as similaridades são impressionantes. Os Ainu de hoje são, ainda, descritos como um povo moribundo, com uma melancolia do fait accompli que irrita os ainu que ainda resistem, agrada as sensibilidades japonesas, e é eivada de vitalismos racistas dignos dos anos 20. Seria a falta de "vitalidade" deles que teria tanto permitido quanto tornado moralmente justo que os japoneses invadissem as ilhas ainu (Hokkaido, metade de Sakhalin, e as Curilas - o Japão ao norte de Honshu, a ilha principal, todo) para ajudar os coitados.

Walker mostra, em seu livro, como é mais ou menos exatamente o contrário. Os ainu de antes da conquista eram guerreiros que enfrentavam os samurais de igual para igual, limitados pelo fato de haver muito mais gente no Japão agrário do que em suas terras. A perda de vitalidade estava ligada à integração às esferas econômica e patológica japonesas, sem os recursos tanto biológicos quanto técnicos para enfrentá-las. O povo ainu "subserviente e doente" que demandava a benemerência japonesa havia sido tornado assim por trezentos anos de política do Estado japonês, muitas vezes deliberada. Se você é obrigado a rastejar na frente de um oficial colonial se não quiser ser morto por duzentos anos, uma hora vira algo natural; se está exposto a epidemias de um povo urbano sem ter os médicos urbanos para enfrentá-la, vai ser doente.  A economia ainu não era capaz de se sustentar sozinha porque, sob pressão japonesa, havia deixado de ser uma economia de subsistência e comercial para se tornar uma economia de extração de recursos naturais para o mercado japonês.

A similaridade com as colônias européias se estende às "tomadas de consciência." Assim como os holandeses que, impactados pela popularidade do romance-denúncia Max Havelaar, trocaram o sistema de culturas (parecido com a mita espanhola, só que pior) pela "política ética," os japoneses do fim do período Edo e começo do período Meiji, ocidentalizado, declaravam que sua política em Hokkaido e nas ilhas do norte se pautava pela butsu, benevolência. Tão bonzinhos esses colonialistas... às vezes, é verdade, faziam umas experiências epidemiológicaszinhas, ou, no caso dos europeus na África, espalhavam a AIDS via agulhas reutilizadas, mas isso é de somenos importância, né?

A voltinha ao mundo foi só para deixar claro: as condições sociais vigentes nas repúblicas indígenas não são naturais, não são o que eles, incapazes, conseguiram sozinhos enquanto os virtuosos europeus e seus descendentes, de sangue ou espirituais, chegaram mais longe. São resultado direto do contato e da conquista, conquista essa que continua acontecendo, a ferro e fogo. Reparações aos índios não são uma questão de caridade ou bondade, mas de justiça mesmo. Reservas indígenas não são mais "dar" algo aos índios do que o fato de os EUA não invadirem o Brasil significa que estão dando o território brasileiro aos nativos.

 E é por isso esse projeto de mineração é problemático. Ele tira ainda mais a agência dos índios, seu poder sobre os próprios destinos. Quem decide se pode fazer a mina? O governo federal, após "ouvir" os índios - e sabemos o quanto o governo ouve os afetados por grandes projetos de infraestrutura em terras indígenas: nem com facão. Quem gere os royalties "entregues aos índios"? De novo, o governo federal, via FUNAI. É que eles, ao contrário de banqueiros e especuladores, correm um demasiado risco moral, de usarem mal o dinheiro, se simplesmente for entregue a eles.

Não dá pra deixar de contrastar com outro tipo de empreendimento controverso, de grandes lucros e grandes prejuízos, em terras indígenas: os cassinos indígenas nos EUA. Noves fora concordar-se ou não com a idéia do artigo linkado, de que os efeitos finais dos cassinos foram positivos, uma diferença importante pode ser notada: são os próprios índios de cada reserva que decidem sobre e administram o cassino. Não importa se são chefes tribais corruptos ou não (como se a política não-índia fosse imune): o poder sobre suas próprias terras e vidas está nas mãos dos índios.

Uma lei de mineração em terras indígenas aceitável imporia como condição a concordância dupla dos índios, com a decisão tomada tanto em bases tradicionais de chefia, conselho, moidades ou o que fosse, quanto em sufrágio universal dos maiores de dezesseis anos. Os 2-3% seriam um mínimo, que seria adicional aos royalties-padrão federal e não lhe substituiria, e seriam pagos diretamente aos índios. E outro condicionante mínimo seria a manutenção de uma estrutura adequada de mitigação ambiental e suporte social.

Claro que aí o minério ficaria um pouco mais caro de extrair, e a maior atração da proposta, a possibilidade de se minerar a baixo custo, sem as exigências ambientais e sociais feitas por comunidades mais poderosas e/ou organizadas, vai embora.Tadinhas das mineradoras.

8.5.12

X Votos

Não, não os do Eike Batista no Congresso e na ALERJ, que devem ser muitos, mas os dos X-Men, continuando a brincadeira do post anterior. E, de lambuja, os da Liga da Justiça.


Professor X - Democratas.
Jean Grey - Democratas.
Cíclope - Varia.
Kitty Pryde (dupla cidadania) - Partido Socialista Americano, Labour (costumava ser libdem).
Rainha Branca - não vota nunca. Teve affairs com diversos políticos de ambos os partidos.
Wolverine - não vota.
Anjo - Republicanos.
Fera - Democratas.
Homem de Gelo - Libertarian.


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Super Homem - criado como republicano, mas não gosta do militarismo e do "conservadorismo com compaixão." Acaba votando democrata, e odeia discutir política.
Batman e Lanterna Verde (Hal Jordan)- republicanos convictos.
Arqueiro Verde - comunistas.
Mulher Maravilha - gosta do conservadorismo e militarismo republicanos, mas se recusa a votar neles por conta da ginofobia.
Lanterna Verde (Kyle) - libertarian.
Ajax - Democratas, quando vota. Como Clark, tem uma dor de cabeça quando discute política.

Votos Vingadores

Nell Scoven, no Huffington Post, tenta adivinhar os votos dos Vingadores. Ela está errada e eu, na minha versão alternativa, certo, evidentemente. Porque mamãe falou que eu sou inteligente, esse é o porquê. Então, vamos lá, por ordem de idade:


Thor, depois de ganhar cidadania americana e tentar aprender numa tarde sobre política terráquea, votaria no partido Libertário Nacional Socialista Verde, porque todas essas coisas são boas, não!? E eles têm meu martelo na bandeira! Mais cerveja, taberneiro!

Nick Fury vota no candidato que prometer mais dinheiro para a SHIELD, ou sobre o qual ele tiver mais influência (leia-se material de chantagem).

O Capitão América era um fã do presidente Roosevelt, de uma família proletária durante a Grande Depressão. Ele provavelmente votaria democrata mas, como muitos proletários democratas, desiludidos com seu abandono pelo partido, não mais para presidente. Votaria em deputados e vereadores, mas não em Obama ou Hillary Clinton.

Natasha e Coulson fazem todo tipo de truque sujo e têm nojo dos políticos para quem trabalham, mas no fundo no fundo sonham com um candidato puro, e às vezes votam em eleições locais.

Tony Stark se considera um "futurista" superracional. Seu raciocínio é de que no tempo perdido preenchendo um voto, ele poderia, com sua fortuna, influenciar milhões, e é o que faz; Pepper Pots é quem vota por ele. Costumava ser um dos mais importantes financiadores republicanos, mas com sua rejeição do militarismo agora é neutro. Um pundit chamou ele de "America's biggest swing state."

Bruce Banner vota verde, pela ironia da coisa e porque menos dinheiro pro exército é interesse pessoal dele. Por correio, porque chegar perto das urnas poderia deixá-lo nervoso...

O Gavião Arqueiro é republicano convicto, e só não bate boca com o Capitão porque seria como questionar Jesus Cristo.




Alguns que não estão no filme:


Hank Pym não vota; tampouco o fazem Ms. Marvel, o Sentinela, ou Magnum.

A Vespa vota, como o faz sua família há oito gerações, nos democratas.

A Mulher Hulk é democrata convicta, e faz campanha.

Hércules vota contra os republicanos por conta da questão do casamento gay. Ares apóia Hércules.

Jarvis vota nos republicanos por conta da retórica de volta ao passado.

A capitã Marvel participou da campanha "vote for the Crook, it's important" na Louisiana

4.5.12

Um armário cheio de esqueletos

O ex-torturador do DOPS Cláudio Guerra lança um livro que ajuda a explicar por que os militares não querem que se abra o que restou dos arquivos da ditadura. Não, não estou falando do trecho em que Guerra explica como militantes foram barbaramente torturados e depois icinerados numa usina de cana, apesar desse ter sido o que chamou mais a atenção, mas de quando ele fala de como a ditadura matou um de seus próprios expoentes, o delegado Fleury. Também não creio que o planejado assassinato do Brizola impressione alguém (curioso seria se não houvesse o planejamento), mas a intenção de culpar a Igreja Católica, sim.

  É que a opinião pública comum é pródiga em avalizar quaisquer ações tomadas contra "oponentes." Assim, nem os próprios milicos nem a maioria dos brasileiros considera particularmente errado que se tenha cometido atrocidades contra militantes de esquerda, e esse é o discurso-padrão de apoio à ditadura, o de que as pessoas por ela atacadas apenas tiveram o que mereceram. Por isso mesmo, qualquer reinvindicação pela verdade e justiça que parta do pressuposto de que funcionará como propaganda apenas anunciando os malfeitos cometidos tocará mais ou menos tantos corações quanto uma vilã de novela se ferrando. Não existe a necessidade de justiça que seja sentida pelo país, como no Chile, na Argentina ou na África do Sul, porque ao contrário desses países aqui a noção geral é de que as vítimas da ditadura não foram o povo, mas um "outro," jovens de classe média radicais.

Ora, se essa operação de desqualificação teve tanto sucesso, não é a comprovação de quaisquer malfeitos contra esses grupos que preocupa os militares, sequer os preocuparia sua multiplicação até a náusea e o holocausto. Não deixa, afinal, de ser uma multiplicação da tortura e assassinato oficiais até quase o genocídio a que acontece nos bairros pobres e pretos do Brasil de hoje, com milhares de vítimas todo ano, e não falta emprego para Datenas dedicados a implorar por mais. O que preocupa os milicos com a abertura dos arquivos é, muito pelo contrário, o que vai além disso.

São as querelas internas mortíferas, que (como soi acontecer nas ditaduras) se multiplicavam. São os atentados contra grupos respeitados, como a Igreja Católica (não custa lembrar que o período também é aquele em que a Igreja foi relativamente progressista, e portanto alvo). São as falcatruas que desmantelariam a noção de que "sob a ditadura houve pouca corrupção" (como se Maluf e ACM fossem pouco). São, enfim, não os esqueletos no armário literais, mas os figurados que preocupam os militares.

Afirmando os outros

Uma das peculiaridades da briga brasileira sobre a ação afirmativa é a autossuficiência dela. Em geral, não se lança mão da experiência estrangeira sobre o assunto, seja para defender a ação afirmativa ou (através de algum tour de force, haja vista dos resultados) atacar. Quando muito, se fala da experiência americana. Ora, o programa de ação afirmativa americano não é nem o maior nem o mais velho que há por aí. Nos dois maiores países do mundo, por exemplo:

A China tem o seu programa desde 1949, tendo sido reestruturado nas bases atuais nos anos 1980. Ele afeta as minorias étnicas não-Han (Han é o que chamaríamos de "chinês"), que são apenas 12% da população chinesa. Míseros 150 milhões de pessoas. Se destina tanto a áreas de maioria não-Han quanto a indivíduos não-Han. Aquelas recebem infraestrutura, inclusive educacional, extra; os indivíduos recebem "...preferences for family planning (exemption from the minimum marriage age and one-child strictures); education (preferential admissions, lowered school fees, boarding schools, remedial programs); employment (extra consideration in hiring and promotion of cadres); business development (special loans and grants, exemptions from certain taxes); and political representation (proportionate or greater numbers of minorities in "people's congresses" and among minority area leaders)." Não acaba aí - a lista chega a 150 itens, em alguns casos. Mas o mais curioso é que, ao contrário da cantilena sobre a divisão racial engendrada pela ação afirmativa, a idéia chinesa é justamente a de que a ação afirmativa permitirá a integração e pacificação de povos apenas recentemente conquistados. (Você não achou que os velhinhos de cabelo asa-da-graúna estavam sendo bonzinhos, né?)

A escala do programa indiano é muito maior. Ele beneficia todos membros de "classes atrasadas." São 52% da população, ou 600 milhões de pessoas. O principal sistema de ação afirmativa é o sistema de reservas, aka de cotas. Ao contrário do Brasil, as cotas não são apenas para educação terciária, mas também incluem serviço público, incluindo no parlamento. Imaginem se alguém sugere algo do tipo no parlamento brasileiro - os DEMos não seriam os únicos a soltar tantas ADINs que o Supremo morreria soterrado. Na educação terciária, as cotas reservam 49,5% das vagas para as "classes atrasadas." Ou melhor, dentro disso, tantos para tais, outros tantos para outros, e por aí vai; o sistema pretende aproximar a proporção na faculdade à na população de cada grupo específico, e não dos desprivilegiados em geral. Entre 1959, ano de implantação do sistema, e 1995, a disparidade de renda entre BCs e FCs ("classes avançadas") diminuiu em mais de quatro vezes (conquanto ainda seja enorme). Contra a acusação (ainda hoje feita na própria Índia) de que o sistema engessaria as castas, nos estados do Sul, e em particular Kerala, as proporções são constantemente revisadas porque o sistema funciona (classes que vão se aproximando em perfil socioeconômico das FCs vão sendo retiradas). Não que o governo ache que é o bastante - tanto que já ameaçou instituir cotas também para a iniciativa privada.

Na Europa, ação afirmativa étnico/racial ainda não é muito popular - se bem que na França, que não permite sequer a identificação étnica ou racial no censo (para desespero de alguns demógrafos), tentaram fazer um arremedo de ação afirmativa com base na geografia, ZEPs; e na Escandinávia, os sami (aka lapões, mas o segundo termo é um xingamento) têm direito a metade das vagas nos parlamentos provinciais relevantes, além de preferências educacionais; na Rússia, desde os tempos soviéticos há sistemas de preferências educacionais para minorias. Por outro lado, ação afirmativa de gênero existe em quase todos os países da Europa e, como no caso da étnica na China e Índia, não se restringe às faculadades.

2.5.12

Brasil País do Chá II

A única menção ao imposto de renda no site do PSoL é um projeto para isentar o gasto com livros técnicos. (Ie subsidiar a educação privada.) A proposta progressiva de impostos se resume ao imposto sobre grandes fortunas. O PDT só fala em impostos progressivos de maneira genérica. No site do PT, até fala-se sobre o tema aumento de imposto de renda, mas de concreto, só a isenção de participação nos lucros por trabalhadores. PSB: Niente.

Guglando, vê-se dúzias de projetos de isenções, alguns revogando isenções, mas nenhum aumentando as alíquotas de impostos sobre renda e propriedade (IRPF, ITR, ITCMD, IPTU). O governo petista diminuiu os impostos sobre ganhos de capital e não aumentou nenhum imposto, fora taxas de importação.

Nem o governo de centro-esquerda nem nenhum dos partidos de esquerda com alguma projeção, com exceção do PSTU, defende aumento de imposto de renda, que dirá algo comparável ao possível futuro presidente da França, que pretende levar a alíquota máxima para três vezes a brasileira (hoje é o dobro).

Enquanto isso, meu aumento na prestação do plano de saúde foi inteiramente pago pelo Leão, e a conta de luz brasileira tem os encargos mais caros do mundo.

Depois o país do Tea Party são os EUA. Aqui eles nem gritar precisam - apesar de toda a ladainha da imprensa sobre "carga tributária" (ladainha feita de meias-verdades, já que aumento de carga não quer dizer aumento de impostos), político nenhum pensa em aumentar impostos individuais.