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24.1.12

Corvos num pinheiro

O Big Brother Brasil ganhou por breve tempo um concorrente de audiência: a expulsão dos seis a nove mil moradores da favela Pinheirinho, em San José Ocampo, levada a cabo por dois mil policiais, mil integrantes da guarda civil, uns 200 cachorros, e 600 cavalos. Isso antes da Rota chegar da capital.

As cenas são dantescas: casas pegando fogo, balas de borracha na cabeça, idosos com AVC jogados no pátio dum abrigo improvisado, pulseirinhas para identificar fora do abrigo os moradores da comunidade(não se sabe se nelas estava escrito "Jude"), gás jogado em gente já confinada. Não se sabe exatamente (as declarações oficiais não inspiram confiança) se houve mortes. Moradores foram impedidos de retirar seus pertences, incluídos os documentos.

O processo foi confuso e antidemocrático: a justiça paulista determinou a desocupação sem que o caso estivesse bem explicado, a justiça federal ordenou que isso fosse sustado. O governador tomou para si a competência, que é do STJ, de entre duas ordens conflitantes escolher a que mais lhe convinha; não importa que o STJ depois tivesse confirmado a decisão - em desacordo com súmula vinculante anteriormente emitida pelo mesmo STJ sobre a questão do conflito entre a justiça federal e a estadual.

As entrelinhas são suspeitas: os beneficiários da ação de desocupação são a própria prefeitura da cidade, que ao invés de pensar em solução de moradia para os favelados incitou a xenofobia contra eles ao dizer que eram "estrangeiros," e o "investidor" (como tem sido chamado nos jornais) Naji Nahas. Este vem a ser, caso alguém pergunte, dos maiores estelionatários da história do Brasil, responsável sozinho pela quebra da Bolsa do Rio de Janeiro, que foi de metade do mercado brasileiro de ações para traço em um ano. Há indícios de que o terreno pode na verdade ser do estado, e ter sido simplesmente grilado pelo "investidor."

Mas com tudo isso, Pinheirinhos é excepcional? Só em grau, e mesmo assim não tanto quanto se gostaria; a notoriedade vem mais da (acidental ou não) bem feita ação de propaganda dos moradores, que ganharam notícia de jornal pelo insólito de se armarem em "exército de Brancaleone" (foi a alcunha mais comum) para resistir à polícia. Desocupações pelo batalhão choque de favelas e outras áreas de moradia, algumas com posse formal da terra, são comuns, ousaria dizer diárias no Brasil inteiro. Com requintes de crueldade em muitos casos. São, até, mais notórias no exterior do que no Brasil; fotos de moradores andrajosos na frente de paredes de escudos policiais são presença rotineira em listas das melhores fotos jornalísticas do ano. O Brasil, para os mais pobres, é mais violento e arbitrário, tem menos direitos humanos, do que a URSS no período pós- ou pré-Stalin.

A banalidade do mal é sua regra; ele é burocrático e sem graça, como alertava Hannah Arendt, mas também é banal por cotidiano e recorrente. Nesse lodaçal, governo federal não teve participação direta nos acontecimentos, dessa vez (vejamos quando algum lugar no Rio for desocupado "para as Olimpíadas"), mas ao lavar suas mãos do caso, com a simbólica aprovação que provavelmente será dada pela presença de Dilma na festa do aniversário da capital, ajuda a impedir que um dia essa situação mude. Não que as forças conservadoras que assim são ajudadas por um governo dito de esquerda vão em algum momento agradecer a ajuda. Cría cuervos, que te comen los ojos.

19.1.12

Prioridades do governo brasileiro na virada do século

É curioso ver as prioridades do governo. Por exemplo:

Para geração de energia através de imensas usinas hidrelétricas em locais remotos, ecoando Nikita Kruschev, que dizia* que iria afogar o capitalismo em rios de eletricidade, tem dinheiro - a engenharia econômica de Belo Monte, mais ainda que a das usinas do Madeira, não é a de uma usina elétrica comum, com retorno pela própria atividade, mas a de um enorme enterro de dinheiro público. Para investimento em eficiência energética, que será necessário no século XXI e pode gerar novas tecnologias, não tem. Apesar do custo ser menor. Mas eficiência energética não é grandioso. Não tem graça posar de capacete ao lado dum sujeito com aquecimento solar no chuveiro.

Para uma ponte rodoviária da escala da Rio-Niterói ligando Manaus ao subúrbio de Iranduba (pop. 40.000) e ao município de Manacapuru (pop. 85.000, a 68km de distância), tem dinheiro. Afinal, Washington Luís já dizia que governar é abrir estradas. Para pesquisar o maglev-cobra, tecnologia que permitiria, se desenvolvida, cortar os custos de implantação de transporte de massa em cidades enormemente (o maglev-cobra pesa metade do peso de um monotrilho por passageiro transportado, é 3x mais eficiente em gasto de luz, e não faz barulho), não tem. Cientista é tudo maluco e pouco confiável, ao contrário de empreiteiro.

Trezentos e vinte e oito mil portugueses virem morar no Brasil, somando-se ao milhão que já estava aqui, pode, assim como 100.000 cada de italianos e espanhóis. Quatro mil haitianos no Brasil é uma invasão contra a qual o governo deve fechar as porteiras. Não que eu ache que essa diferença tenha sequer alguma possibilidade de se dever a um tipo de preconceito que o Ali Kamel, da Globo, já demonstrou em livro não existir no Brasil.

Para pesquisa agrícola aplicada (e fornecida de graça ao agronegócio), tem 5 bilhões por ano, dois só na Embrapa. Para pesquisa científica de ponta, incluindo o ESO e o ITER, que podem revolucionar a ciência (e, se der certo, no caso do último, a economia), e mesmo ganhando desconto na fatura, o Brasil não paga o que devia. 170 milhões por ano para o conjunto dos projetos internacionais. Menos de um décimo do que se gasta melhorando a eficiência da soja na terra pela qual os fazendeiros não pagam imposto vai para tentar descobrir fusão nuclear. Ou melhor, iria, se fosse pago.

Brasil, bravamente caminhando rumo ao século XX.



*Non è vero. Ma va, è bene trovatto.

12.1.12

Dama de ferro tropical

Dilma costuma ser chamada, na imprensa internacional, de "dama de ferro dos trópicos." Eu achava que era só pelo estilo, mas agora ela vem e fala, durante uma cerimônia de entrega de [plano de entregar] casas populares, junto com o Alckmin*:

Ninguém é de classe média se não tiver sua casa. Ninguém.

A idéia (que ignora todos aqueles apartamentos pra alugar a 20.000 por mês nos Jardins) parece um eco longínquo da frase e do espírito de Margareth Thatcher, ao promover a ownership society, de que "if a man at thirty is still riding a bus, he has failed at life."

Já tinha a impressão de que Dilma se deixava pautar pela imprensa. Agora vejo que pelo menos ela também lê a imprensa internacional. Só tenho medo da filha dela, como o da Maggie, virar traficante de armas.


*Deixo pra lá a afirmação de que as divergências com o Alckmin, passadas as eleições, inexistem, que acho que pode ser debitada na conta de salamaleques com relação ortogonal com a verdade.

11.1.12

Dilma, devolve meu voto?

OK, continuo achando que com o Serra seria muito pior, provavelmente vou votar na reeleição dela (mas não no primeiro turno), mas pqp. O último afago à Veja do governo Dilma desmente meu antepenúltimo post, sobre imigração, e toma medidas de corar um republicano dos EUA para barrar os haitianos.

Para não explanar que a idéia é atender aos gritos xenófobos da nossa mídia, haverá quem defenda que é uma questão "humanitária," haja vistos os problemas com coiotes e superlotação na fronteira. Ora, se assim fosse, não seriam restringidos os vistos concedidos já no Haiti. A maneira de se esgotar a imigração ilegal não é - fora do sonho alucinado de algum Le Pen - fechando as portas da imigração legal, mas sim as escancarando. Abra-se as portas do Brasil, e vai ter um monte de coiote na fila do desemprego.

Bem, OK, Dilma perdeu meu voto, ganhou o de uns 500.000 tiozinhos leitores da Veja que votaram no Serra contra a terrorista comuna. Acho que é lucro. Mas também é uma traição a si mesma. Pra fazer a mesma coisa que o Geisel, não precisava ter sofrido tortura, era só se filiar ao MDB.


EDIT - outra coisa que aproxima a Dilma do PSDB: na propaganda, e imagino que também na autoimagem, seu diferencial é a "gestão." Pois bem, como bem apontado pela colunista Rosângela Bittar, do Valor, assim como a do PSDB a gestão da Dilma é falha:

Apagões pequenos, médios e grandes, do Oiapoque ao Chuí; epidemia grave de dengue; mortes novamente por catástrofes da natureza esperadas mas não prevenidas por governos municipais, estaduais e sobretudo federal, a quem compete muito; caos aéreo persistente, resultado de incipientes medidas; erros repetidos na administração da Educação; baixa execução de PACs I ou II; reforma agrária sem resultados; invisível avanço em desempenho na área de segurança. Problemas, esses e muitos outros, do primeiro ano do governo Dilma, todos, de gestão.

A presidente da República gastou seis meses iniciais na montagem do governo e os seis meses finais na desmontagem. Perdeu, na tessitura, dois pilares, Antonio Palocci, chefe da Casa Civil, e Nelson Jobim, ministro da Defesa, dois mais importantes colaboradores. Titubeou, demorou, negaceou, até trocar ministros política e administrativamente inviabilizados nos cargos, levando o governo à paralisia. Quando tomou providências o fez de forma acanhada - pois ainda há áreas no vácuo -, e já era o fim da primeira etapa.



PS minha esperança de uma refomra tributária aumentando IRPF e ITR em troca de zerar IPI? Zero.

10.1.12

Quem lê o quê

Em 2010, foram vendidos 258,6 milhões de livros no Brasil - pouco mais de um por habitante, incluindo bebês, e um aumento de 18 milhões, ou 8,3%, em relação a 2009. Tirando os 30 milhões de habitantes de menos de 10 anos, foram quase um livro e meio por habitante. O faturamento total das editoras foi de 3,48 bilhões - menos do que a rede Globo.

Desses 258 milhões, foram 100,9 milhões de interesse geral, 73,8 milhões de religiosos, 58,2M de didáticos, e 24,6M de científicos/técnicos/profissionais. O crescimento se concentrou nos didáticos (14,35%) e religiosos (17,74%). Quase não houve crescimento no setor "interesse geral."

O faturamento total cresceu apenas 2,99%, isto é, os livros estão ficando mais baratos. Os livros que baratearam foram os gerais e didáticos; os outros ficaram estáveis (técnicos) ou aumentaram de preço (religiosos). Não avisem a Cosac & Naify. Os livros geralmente mais baratos são os religiosos, mas seu faturamento aumentou 23,9% entre 2009 e 2010.

Os dois livros mais vendidos no Brasil são a Bíblia (dã), com mais de 20 milhões de exemplares, e Ágape, do Padre Marcelo, com 7,2 milhões.

6.1.12

Noção: não trabalhamos

Já foi dito que a religiosidade brasileira é "intensa, mas difusa." Isto é, crê-se ciosamente em Deus, mas não se busca muito coerência ou intelectualidade nessa crença. Eu adicionaria "e pode-se pôr Deus em qualquer lugar."

Um exemplo disso é o "monumento ao Holocausto" planejado pelo estado do Rio de Janeiro.

O Mirante do Pasmado, em Botafogo, vai ganhar um memorial em homenagem às vítimas do Holocausto. Localizado no parque Yitzhak Rabin, batizado com o nome do premiê israelense assassinado em 1995, a construção terá uma torre dividida em 10 partes. A estrutura simboliza os mandamentos e, em sua base, será escrito "Não matarás". O projeto será executado pela secretaria estadual de obras.


Repare que será o primeiro memorial do Holocausto do mundo a não fazer menção alguma ao Holocausto. Ao invés disso, faz uma citação religiosa que é judaica, mas também poderia ser, olha que coincidência, evangélica. O detalhe maravilhoso disso tudo? YITZHAK RABIN ERA AGNÓSTICO. (E quando político diz que é agnóstico, é ateu convicto.)

Abaixo, maquete do monumento:

5.1.12

Do Valongo à Luz

Poderia ser o nome de uma linha férrea - era, aliás, o trajeto da primeira estrada de ferro paulista, a São Paulo Railway, entre o cais de Santos e os arrabaldes de São Paulo. Mas também são dois pontos da repetitiva história do higienismo brasileira, um o mais recente (mas não creio que seja o último), outro o mais antigo de que me lembro (mas não creio que seja o primeiro), e que é no momento o maior sítio arqueológico do Brasil - graças, curiosamente, a outro, terceiro, ponto dessa história.

Pondo os is nesses pontos: São o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, desenterrado pelas obras da revitalização da Zona Portuária, e o projeto Nova Luz, em São Paulo. O Cais do Valongo pode parecer que remete a um mercado colonial, mas foi justamente causado pela ânsia de apagar a realidade colonial de um país que já era independente e se sonhava europeu. À medida que o Brasil ia se tornando o maior importador de escravos do mundo, e a escravidão era vista com olhos cada vez mais severos pela Europa (e em particular pela Inglaterra), o espetáculo dos navios tumbeiros descarregando sua mercadoria humana Rio de Janeiro afora, andrajosa e doente da viagem, foi se tornando intolerável para as autoridades do agora Reino Unido. Assim é que, em 1811 (no mesmo ano em que a Grã-Bretanha aboliu o tráfico), foi construído o cais do Valongo, nas bordas da cidade de então (e a alguma distância de onde hoje fica a linha do mar, graças ao aterro de 1910). Nesse cais, o que se via como uma operação moderna e higiênica no começo do século XIX foi instalado; as instalações, com lazaretos e covas coletivas anexos ao cais e às "casas de carne," prefiguram um pouco os os Vernichtungundkonzentrationslager alemães de século e meio mais tarde, mas em registro comercial ao invés de industrial. O cemitério abrigaria 20.000 dos 570.000 africanos que ali desembarcaram.

O cais do Valongo falhou em sua tentativa de criar uma metrópole européia. Pereira Passos tentaria de novo, um século mais tarde, e ainda se queixando da cidade africana que podia ser vista nas fotos e fotografias feitas no Rio ao longo do século XIX. O motivo não é muito difícil de discernir: as elites luso-brasileiras, que tanto ansiavam pelas aparências européias e pelo respeito europeu, não tinham nenhuma intenção de abdicar de seus poderes e privilégios, que dependiam por sua vez justamente do povo que queriam esconder. Os prefeitos do Distrito Federal ainda se preocupavam em proibir atabaques e capoeiras durante o Estado Novo, ao mesmo tempo que o Samba começava a ser enaltecido oficialmente como ritmo nacional.

Exatamente duzentos anos depois de o Marquês do Lavradio ordenar a criação do cais do Valongo, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, prometeu "limpar" a cracolândia em um mês. "Limpar" de seus ocupantes humanos indesejáveis, como admite, algo envergonhado, o Tenente Rafael Kato. A idéia é, por um lado, redutível ao mais crasso interesse material: a operação urbana Nova Luz, da prefeitura de São Paulo, se admite abertamente uma operação de valorização imobiliária, em que um consórcio privado tem o direito inclusive à desapropriação de imóveis para seus privados fins. E a classe média e alta não vai querer comprar um apartamento ou frequentar um shopping se tiver que chegar lá passando pelo meio de viciados em crack. (Não que os craqueiros sejam os únicos pobres a serem expulsos - a antiga rodoviária, demolida para dar lugar ao Centro de Dança, era um centro de comércio de roupas popular com movimentação diária várias vezes maior do que a prevista para o Centro de Dança. Sim, perfeitamente legalizado.) Por outro lado, a popularidade mais ampla que leva essa idéia a ser não só aceitável como aplaudida tem a mesma origem do cais do Valongo. Como diz a Susanita à Mafalda, aos pobres basta escondê-los.


PS Que isso ocorra logo na Luz é interessante. Afinal, foi a Luz que recebeu "your huddled masses, yearning to be free." Por outro lado, ao contrário dos EUA onde eram vítimas de racismo, no Brasil essas huddled masses européias foram trazidas em ainda mais um esforço de europeizar o Brasil, no caso pelo embranquecimento da população.


PPS É curioso que, guglando para este post, descobri que em 2008 a cracolândia já não existia.

PPPS Como diabos alguém consegue dizer que vai infligir dor e sofrimento em massa sem usar um quepe das SS Totenkopferbanden?

4.1.12

A tale of two waters

Durante o governo Lula, um dos maiores exemplos de que, se não existe almoço grátis, existe almoço melhor e mais barato foi o programa de construção de cisternas do governo federal. O programa, muito mais barato do que a transposição do Rio São Francisco, beneficiava muito mais famílias no semiárido nordestino. Consistia na construção, com materiais e mão de obra locais e treinamento da própria família usuária na sua construção, de cisternas capazes de armazenar a água da chuva por até dois anos, para uso residencial ou agropecuário dependendo da cisterna. É que no semiárido nordestino, ao contrário do que acontece em desertos verdadeiros, chove até bastante. Em Teresina, chove tanto quanto em São Paulo, e mais do que o dobro de Londres, anualmente. No semiárido propriamente dito, o "polígono das secas," a precipitação é parecida com a de Londres, uns 600mm por ano. Em Cabaceiras, município mais seco do Brasil, chove 300mm por ano - em Madri, são 430. O sertão é seco, apesar disso, porque as chuvas são rápidas e fortes, concentradas em poucos meses, o solo é pobre e raso, e as pedras debaixo dele são impermeáveis, o que impede que a água seja armazenada. As cisternas armazenam essa água e voilá: o semiárido deixou de sê-lo, sem nenhuma transposição necessária. (OK, deixou de ser semiárido é exagero. Mas passa a haver água para consumo humano e agricultura.)

Outro programa que evidencia o quanto o barato pode sair barato é a instalação de equipamentos, treinamentos, e protocolos de defesa civil no estado do Rio de Janeiro. Alarmes de chuva, pra resumir. Neste começo de ano (ou seja, em 62 h, já que a notícia é de ontem às 2 da tarde) choveu quase 200mm na região serrana do estado; se você olhar pros índices pluviométricos anuais aí em cima, vai ver que choveu em menos de três dias o que na chuvosa Londres não chove em cem. Apesar desse aguacéu todo, numa região de montanhas íngremes, o número de mortes na região, em contraste com as mais de mil do ano passado, não passou de três infortunados. Isso se deve a barreiras de contenção e planos habitacionais, as soluções caras exigidas à época da tragédia do ano passado? Não, esses não avançaram quase nada. O que foi feito, infinitamente mais barato e eficaz, foi instalar uma rede de alarmes meteorológicos e pontos seguros, aos quais as pessoas que moram e/ou trabalham em pontos de risco deveriam se dirigir quando ouvissem os alarmes.

As diferenças operacionais e de relações de poder entre os dois baratos que saem barato permitiriam prever seu futuro, se o do primeiro já não tivesse sido selado. As cisternas no semiárido transferem uma independência e poder sobre o próprio destino para as populações locais; os alarmes dependem do poder político constituído. Assim, as cisternas foram recentemente canceladas pelo governo federal, em troca de um programa que fornecerá, sem envolvimento da população local a não ser pelo recebimento da benesse, mas com envolvimento de prefeituras locais (o que não ocorria até agora), cisternas prontas, de PVC, menos duráveis e com o dobro do custo. E cuja manutenção não pode ser feita pela própria família. Já os alarmes provavelmente serão instalados Brasil afora, a partir do plano nacional de defesa civil (SUD?).

3.1.12

Yes we have no xenophobias

O Globo anuncia que o Acre sofre com invasão de imigrantes haitianos. À primeira vista, pode-se encarar isso apenas como sinal de que o Brasil, com crescimento econômico maior do que outras economias médio pra ricas, está se juntando novamente ao clube dos atratores de imigrantes, com a consequente xenofobia. O título dO Globo não ficaria mal num Daily Mail, numa FOX News da vida. Mas a leitura do subtítulo (sequer da matéria) revela que "Sobe para 1.400 o número de haitianos em Brasileia. Maioria é de profissionais qualificados." Vamos lá. Acre sofre com invasão de 1400 pessoas, a maioria profissionais qualificados. (O estado, para situar, tem 730.000 habitantes.)

Lendo a matéria propriamente dita, descobre-se que há, com efeito, uma mini-crise humanitária, em que os imigrantes, importados por coiotes (traficantes de gente) mexicanos, foram despejados todos sem ter o que fazer nem como comer em um único município acreano, e não podem fazer nada porque a burocracia da PF não deixa. O título poderia ser, mais realisticamente, "imigrantes ilegais haitianos sofrem com burocracia." (Olha aí, para fazer um agradinho à direita até enfiei o "ilegais" no meio.) O título não é o único nessa linha, nem dO Globo nem do resto da mídia. E assim põe-se em questão o pretenso Brasil, não apenas cordial, mas xenômano.

O Brasil é xenômano, naquelas, pelos cidadãos de países do "primeiro mundo," superiores na escala social. Num país obcecado por status, a simples associação, ainda que distante, com um superior é buscada como medalha de honra (vide a importância das viajens ao exterior no imaginário e discurso dativo da classe média, descrita por Gilberto Velho em Anjos e Heróis). Quando some essa necessidade do status por associação, o país é aquele que consegue ter skinheads atacando imigrantes sem ter imigração expressiva de estrangeiros, com imigrantes do próprio país mesmo.

Por sorte, a população como um todo, ou o governo, não praticam esse preconceito exatamente da mesma forma que os círculos da imprensa e da classe média; no Haiti, a preocupação principal das autoridades parece ser mesmo a da crise humanitária, e ainda não vi muita gente fazendo campanha política em cima da necessidade de se erguer uma cerca na fronteira com a Bolívia. O que assusta é que nossa imprensa já se traveste de Daily Mail com uma imigração minúscula de gente de classe média. Imagina se o país ficar rico e, como os países ricos, começar a atrair imigrantes em escala expressiva, e parte deles mais pobres? (Sem nem tocar na questão do racismo, já que Ali Kamel nos informa que por cá ele não existe.)