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19.2.18

Preto no branco

Neste carnaval, a questão da adequação moral de se usar fantasias foi uma das que mais ocuparam as classes tagarelantes das redes sociais brasileiras; dentro dessa questão, muito se falou sobre apropriação cultural, falando sobre as fantasias de índios (com direito a índios propriamente ditos se manifestando pró e contra; não vi ninguém do Cacique de Ramos se pronunciando ou sendo perguntado). O curioso dessa discussão, ao menos pra mim, foi que o grosso dela, entre as classes tagarelantes - ou melhor, entre o que eu vejo das classes tagarelantes - se deu de um ponto de vista branco e ocidental. Tanto as pessoas que denunciavam a apropriação cultural quanto aquelas que rejeitavam a noção o faziam a partir do ponto de vista de fazer parte de uma cultura branca e ocidental e majoritariamente como, eles mesmos, brancos.

Essa discussão já estava morrendo quando vi um chilro no twitter que comentava que "pelo visto só aqui no twitter reparamos e condenamos o blackface," condenando o fato de os jurados do Estandarte de Ouro terem entregue um estandarte ao Salgueiro, apesar da escola ter incorrido naquela prática condenável. O curioso dessa declaração é que, bem, presumivelmente os jurados do estandarte de ouro têm mais intimidade com a cultura popular brasileira, e especificamente a negra, do que a média das redes sociais. O chilro condenando, então, então é um caso particularmente explícito de um movimento antiracista que tem os EUA como norte, vide o próprio uso do termo em inglês blackface, que tem uma história específica naquele país associada aos minstrel shows, o que não elimina o valor negativo das caricaturas de negros perpetradas por atores brancos em outras plagas, mas faz uma diferença na tradução que é muitas vezes ignorada; não que, por sua vez, como nada disso é imutável, blackface, sendo ou não um problema genérico dentro do racismo brasileiro antes da influência americana, seja hoje aceitável, porque o problema é a ofensa presente, e não a verdade histórica (que por sua vez é sempre contingente). Só do que estou falando é que as visões do racismo e de seu enfrentamento, tanto por companheiro de viagem quanto pelos próprios negros, são mutáveis, e dependem tanto de vivências diretas quanto de influências culturais e intelectuais, históricas e internacionais. E, no Brasil, a maior dessas influências é a americana. 

Não estou falando disso, bem entendido, para entrar na discussão como mais um dos "nacionalistas do racismo" que rejeitam as noções americanas sobre o tema, seja para pregar uma visão única nacional, seja pra propalar as balelas da democracia racial pseudo-freyreana (nem Freyre acreditava numa democracia racial efetiva). Pelo contrário, o que acho curioso da assimilação dessas noções no Brasil é que essa influência é, quando se pensa na demografia brasileira, extremamente conveniente para os brancos. Afinal, o Brasil, que recebeu mais de treze vezes mais africanos cativos do que os EUA, e menos da quinta parte de imigrantes livres, não é, demograficamente, um país em que os negros, descendentes de escravos ou não, são uma minoria entre outras que convivem com uma maioria privilegiada branca. Pelo contrário, é um país em que negros e mestiços (de negro e índio) constituem a maioria da população. Por pouco, segundo o IBGE, mas há mais de um estudo demonstrando o quanto a autoidentificação para o IBGE embranquece o sujeito em relação a como ele é visto por seus pares e, mais ainda, pela minoria branca que domina o país.

É uma diferença bem grande de horizonte programático que sai dessa diferença demográfica. Uma minoria entre outras almeja, junto com as outras no melhor dos casos e junto com a maioria opressora no pior, representatividade, ser reconhecida, integrar-se. Uma maioria oprimida por uma minoria violenta almeja uma revolução em que tome o poder. O modelo, ao invés de ser o do extermínio indígena no século XX, é o do Apartheid; passamos dos EUA à África do Sul. Não se tem cotas para ter representação em caminhos de busca pessoal da felicidade, mas para dar acesso da maioria ao controle dos recursos nacionais; não se fala em aplainamento, mas em reparação. (A ação afirmativa americana, imitada aqui, como antes dela as dos grandes países da Eurásia, se direciona a minorias.) Se você conseguisse fazer no Brasil, não uma setorial negra dos partidos tradicionais ou grupo de discussão negro no parlamento, mas um partido de libertação negra e mestiça, que fosse visto como o legítimo representante de um anseio legítimo ao protagonismo, os partidos tradicionais é que seriam, todos, secundários - como ocorre na África do Sul.

Não estou dizendo, pra deixar claro, que os brancos antiracistas brasileiros, e muito menos o movimento negro, fazem isso de caso pensado, no interesse dos blankes. Simplesmente, o que acontece é que essa visão é privilegiada pelas disparidades de poder, prestígio, e geração e transmissão de conhecimento acadêmico, tanto a nível nacional quanto global. Global, porque é tanto mais fácil quanto mais prestigioso seguir os ícones culturais, políticos, e acadêmicos americanos do que africanos. Mais fácil porque conhecimento e ativismo, como tudo mais numa sociedade hierarquizada, se movem mais facilmente em linhas verticais do que horizontais. Mais prestigioso porque, igualmente, o prestígio está muito mais associado, salvo casos excepcionais, ao que acontece nas áreas centrais.

A nível nacional, é curioso notar que o centro de poder econômico e acadêmico do país é justamente o lugar em que o modelo de sociedade americano, com diversas minorias dentro de uma sociedade de maioria branca, está mais próximo de se aproximar da verdade. São Paulo tem menos de um terço da sua população de pretos e pardos, e uma proporção de imigrantes de todo canto, mas especialmente da Ásia oriental, literalmente dezenas de vezes maior do que as da maior parte do país. Assim, adaptar a visão americana ao que se passa em SP gera menos dissonância do que geraria mais ao norte, e mesmo do que ao Sul, que também tem uma maioria branca. E as redes sociais, longe de eliminar a importância dos centros, parecem pelo contrário maximizar essa influência.

Não deixa de ser interessante a ideia de um Brasil onde fosse impensável um presidente branco-branco (já que os campesinos dos sertões nortistas, apesar de serem classificados como brancos, são um problema de racismo e preconceito étnico à parte).