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29.2.12

O Príncipe

Lula, dizem-nos, é um operador político de rara inteligência e raro maquiavelismo. Pois a desastrada aproximação entre o PT e Gilberto Kassab, em São Paulo, faz-nos supor que ou bem ele cometeu uma imbecilidade, ou bem não estava presente. Ou quer que o PT perca uma chance de atingir o terceiro ou quarto cargo eletivo mais poderoso do Brasil. (O município de São Paulo administra um orçamento próximo do do governo estadual do Rio de Janeiro.) Afinal, alguém acha que Kassab realmente se aliaria ao PT contra o PSDB? Achando isso, acha que os eleitores do Kassab votariam no PT, quando esses eleitores (que votariam nele apesar da rejeição) se definem justamente como antipetistas? Que é uma boa idéia pressionar os tribunais eleitorais a aumentar o poder do Kassab (via fundo partidário e horário na TV) para ter ele como aliado político? Que mesmo com Kassab aliado a Serra, a simples aproximação balão de ensaio já serve para acusar o PT de oportunista e antiético (acusação que será feita por quem vota no Serra-Kassab)?

Ou tem algum maquiavelismo muito profundo mesmo aí, ou não entendi nada. Ou muita fé na Realpolitik, aquela em que o oportunismo se torna algo bom em si mesmo, em que se algo que você faz é questionável deve ser o certo.



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Como fazer uma reportagem de denúncia em tom de elogio: na Folha, Eike Batista terá que enfrentar ambientalistas e proprietários das terras em que fará sua cidade. Com milícias e desapropriações ilegais, e suspeitas de suborno, o jovem (ok, o grisalho-e-careca-mas-usa-peruca-acaju) empreendedor vencerá!


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O que mais me impressiona da lei da copa não é o "AI-5 do futebol" que andam denunciando. Que as liberdades individuais não valem muito comparadas aos interesses endinheirados é sabido. O que me impressiona é a abdicação pelo Estado brasileiro de suas próprias prerogativas em prol da FIFA; a elite brasileira não parece prezar muito os próprios poder e influência, prática ou simbolicamente. Exemplo: a pena prevista para quem falsificar material da FIFA (e isso inclui fazer uma festa dizendo que é "da Copa") é de dois a seis anos de cadeia. Ora, isso é equivalente, na atual legislação, a falsificar documento público. A FIFA, uma empresa suíça (a FIFA há muito deixou de funcionar como uma associação sem fins lucrativos), ganhou papel de Estado no Brasil.

23.2.12

Sherlock Holmes e o mistério da Pirâmide Truncada

A opinião de que a desigualdade no Brasil é um escândalo de alta é algo bem próximo da unanimidade. Pergunte, e concordarão com ela, não só pessoas de esquerda, como até empresários, deputados do PSDEMB e jornalistas da Folha ou da Veja. (OK, talvez não os jornalistas da Veja.) Mas às vezes, ou sempre, alguém pode ter a impressão de que não se sabe bem o que significa essa desigualdade de renda. Ou melhor, as pessoas têm a noção (inteiramente natural) de que só quem está ganhando "demais" é quem ganha mais do que elas. Por isso é que podemos ter matérias como a da Folha de ontem, que alerta, escandalizada e escandalizando (inclusive militantes de esquerda):

Curso superior não tem elevado renda, diz estudo do IBGE

A matéria, solicitamente, além de mostrar um gráfico com as evoluções de renda ( mostrando uma correlação linear e inversa entre nível educacional e evolução da renda), também mostra quais são as rendas médias por grupo. Infelizmente, ela não fala do tamanho de cada categoria, mas isso podemos achar no IBGE guglando um pouco.

A matéria, portanto, pode ser lida como "entre os trabalhadores formais, diferença salarial entre os 20% com menos estudos e os demais diminui."

Ora, a diferença entre um país "rico," pouco desigual, e um país pobre, ou muito desigual, nunca foi a abastança das suas classes abastadas. Pelo contrário, em termos relativos a classe média de países menos desenvolvidos tem acesso a luxos, como empregadas full-time, indisponíveis a seus congêneres em países mais desenvolvidos. Em outros termos: Eike Batistas há em qualquer canto do capitalismo - mesmo na Suécia tem o Ingvar Kamprad.

OK, estou exagerando - o número de bilionários no Brasil ser comparável ao do Japão também é, sim, um sinal de desigualdade. Mas não aparece no índice de desigualdade. Aquele índice de Gini, que figura nas tabelas da ONU. Isso porque o índice de Gini mede a desigualdade de renda, principalmente do trabalho, e esse povo não tem renda, tem propriedade. A desigualdade do índice de Gini é exatamente a desigualdade de renda entre o pequeno-burguês ou o profissional liberal e o gari. É a desigualdade, entre outras coisas, da escolaridade.

Em outras palavras, o escândalo do aumento da renda dos menos "cultos" é só o Brasil chegando menos longe (mais perto não dá pra dizer, mesmo com as reformas liberais ocorridas lá nos anos 90) da Suécia.

10.2.12

Calaus

Muita retórica vem sendo gasta para decidir se as concessões de aeroportos pelo governo federal constituem ou não "privatizações." Sinceramente, a semântica me é indiferente, apesar de notar que concessões de energia elétrica e telefonia sob o governo FHC, além do fim do monopólio do petróleo, foram chamadas de privatização pelo PT, o que daria razão aos tucanos e tecnocratas que tripudiam em cima da primeira grande concessão do governo Dilma. (Sob o governo Lula, uma data de rodovias federais foram concedidas.) Sinceramente, a semântica me é indiferente, assim como o dado em si da concessão. Concessões de serviços públicos são um fato da realidade sob o capitalismo, que não tem ligação direta, aparentemente, nem com o quão "à esquerda" um país é, nem com a qualidade desses serviços. Há empresas públicas e mistas, operando concessões ou com estrutura própria, mundo afora, e podemos encontrar tanto bons exemplos quanto porcarias em todas as situações.

O que preocupa mais é que as bases da operação de concessão dos aeroportos, ao contrário das concessões de rodovias feitas pelo Lula, são em muitos pontos parecidas com as da "privataria" tucana. Vamos a elas:

- o edital foi extremamente complexo, coisa de que os representantes do governo se orgulharam. Ora, regras para serem transparentes e monitoráveis têm que ser é simples, não complexas. Um processo bizantino é coisa de quem quer passar a perna no alheio, e não creio que esse alheio sejam os grupos que venceram as licitações, que têm à disposição os melhores economistas e advogados que o dinheiro pode comprar, pra fazer a análise.

- O preço dos aeroportos, a ser pago ao longo de décadas, é curiosamente próximo dos lucros anuais deles (130 milhões vs. 127, no caso de Viracopos). Assim, o que terá que ser pago pelos próprios compradores, e não a partir do lucro que terão, serão os investimentos. Que, tchan tchan tchan tchan, serão bancados pelo BNDES.

- Os consórcios vencedores são formados por empresas de idoneidade e procedência duvidosas. E não, não se trata de nenhum terceiromundismo - meu problema não é com as compradoras incluírem operadoras de aeroportos no terceiro mundo, mas com as composições societárias delas incluírem construtoras sobrecapitalizadas (atoladas de dívidas) e fundos sediados em países pouco transparentes. Mais, claro, os fundos de pensão públicos, que assim falseiam um pouco a "privatização."

Em todos os três itens, a situação é menos extrema que em algumas privatizações ocorridas sob o tucanato. Para comparar, o preço total pelo qual foi adquirida a Vale pôde ser pago com o lucro dela de três anos, e não três décadas; o edital mais bizantino ainda incluiu venda casada de toda a infraestrutura de escoamento de minérios do Brasil; e o consórcio era majoritariamente formado pelos fundos de pensão, mas dentro de um acordo pelo qual eles não tinham voz, apesar disso. Assemelha-se mais, nesse sentido, à curiosa engenharia financeira das usinas amazônicas, em que de novo fundos de pensão, mais a Eletrobrás, pagam a conta e assumem o risco, e as privadas entram com o lucro.

E é graças às referidas usinas, e às concessões de rodovias, e a tantos outros exemplos, que se pode dizer que a comemoração tucana é indevida - faz tempo que o PT privatiza. Ou, pelo menos, tem bico de tucano, se não a cauda e a plumagem. E uma boininha. Mas tem, evidentemente, mais sangue popular do que o pé na cozinha de FHC. Hmmm...