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25.7.14

O ovo da anfisbena

A Anfisbena é uma cobra lendária, descrita por Plínio, o velho, como tendo duas cabeças "como se não fosse suficiente uma para que se escoasse o veneno de seu corpo." Também estrela os bestiários do Borges e do TH White. Também poderia descrever a polícia brasileira, com alguma liberdade.  Afinal, a polícia que mata na favela é a que reprime na rua, como ficou demonstrado pela ópera bufa (libreto de Philip K. Dick) encenada no Rio de Janeiro, em que meia dúzia de pessoas que sonhavam em ser revolucionários e acreditavam que o Mujica do Facebook iria lhes salvar foram pintados como terroristas perigosos a partir do depoimento de outros tantos descompensados.  Bem, mais ou menos.

A polícia brasileira é das que mais matam no mundo. Possivelmente a que mais mata, em termos absolutos - é o tipo de estatística que é difícil de auferir com certeza, mas não se tem notícia de policiais tão violentos em nenhum país com tamanho similar ao nosso ou maior; os únicos concorrentes, no Caribe, Venezuela, e Colômbia, são países com população menor que a de São Paulo. Não que a polícia de, digamos, Mumbai seja gente boa, só mata menos do que a daqui. Os EUA, então, considerados o símbolo do Sistema duro por gente que ama e odeia isso, mata menos de um terço. Por que exatamente a polícia brasileira mata tanto é uma resposta difícil de se atingir, com uma longa história; tem a ver com a sociedade hierárquica e racista, com a guerra às drogas, com a legitimidade da violência, com a falta de supervisão, com a organização militar, com a desigualdade de renda... o que se sabe é que mata. Mata e tortura. Muito. Mas não mata, em hipótese alguma, de forma indiscriminada; pelo contrário, é de maneira extremamente discriminatória. Morre-se às pencas na favela da Rocinha; na Gávea, ali ao lado, cada assassinato é uma notícia de jornal.

E isso pode ser dito também da repressão às manifestações de classe média que vêm se estendendo desde Julho. A polícia que mata pode ser o mesmo organismo que reprime, pode ter os mesmos membros, mas definitivamente não é a mesma. Fosse a mesma, Sininho, Eloisa, Camila, e companhia  não estariam neste momento livres da cadeia, mas livres das amarras da carne (pra não falar dos destinos de Caio e Fábio, que mataram mesmo o cinegrafista Santiago); pela média estatística, nos dias que durou sua prisão foram 72 mortos pela polícia, sem uma sombra de gritos. Nem a repressão às manifestações é um desenvolvimento orgânico da violência genérica; pelo contrário, a polícia brasileira, por conta daquela hierarquia muito bem delimitada, reprime manifestações de gente branca, com acesso a advogado, à luz da imprensa, com infinitamente mais pudores do que reprime - bem, qualquer coisa na favela. Incluindo manifestações; é muito etnocentrismo da Vila Madalena achar que não havia manifestações constantes no Brasil antes de Junho do ano passado, é que o título da matéria era "moradores de lugar x queimam ônibus."

A repressão violenta às manifestações, antes de ser uma consequência natural da polícia militarizada de sempre, é uma importação de países com trabalho cotidiano de polícia muito mais civilizado, mas que desde os anos 90 têm militarizado e sofisticado o aparato de repressão a manifestações políticas, e a polícia em geral. As táticas como o kettling - encurralar ao invés de dispersar a manifestação - e o uso de câmeras para intimidar vieram diretamente da Europa, e foram ensinadas por instrutores ingleses, alemães, e americanos. O mesmo pode ser dito dos amplos poderes de vigilância eletrônica (aliás, ampliados no Reino Unido durante o desenrolar do Minority Report carioca). Se trata de uma luta específica contra um inimigo externo muitas vezes imaginário, e que não faz parte das práticas ensinadas e costumeiras; as práticas são sujas e antidemocráticas, mas não são algo que "nem a ditadura fez," mas sim algo que foi importado diretamente do que é considerado o estado da arte em democracia. Curiosamente, num paralelo próximo à importação de técnicas dos soldados anticoloniais do general Massu contra a luta armada, durante a ditadura. E até na mesma Manaus. De novo, se trata de ensinar a uma polícia e um exército toscos e brutos algo mais sofisticado.

E é aí que mora o perigo. Se no momento as duas modalidades de repressão caminham em estratos separados, com alvos separados, não há nada que impeça que, no futuro, elas se misturem, como o saber dos torturadores franceses e a visão do território como guerra se espalharam e tornaram assassina a polícia que já era brutal. Não foram os milicos que inventaram a polícia militar; ela existe desde os tempos coloniais, em paralelo à civil e diretamente subordinada a um executivo que se confundia com o poder militar; a separação dos poderes no Brasil, historicamente, foi mais entre civil e militar que a de Montesquieu. Mas foi com a repressão ao comunismo aprendida da CIA e da Legião Estrangeira, mais a guerra às drogas aprendida com o ATF, que ela mudou a marcha das mortes (e superou, como hoje supera em ordens de grandeza, a pistolagem interiorana que antes respondia pela maioria das mortes "de emboscada antes dos vinte.")

As chances de que isso signifique a migração das mortes e torturas do morro para o asfalto não é tão grande - acho, não tendo os poderes precognitivos da polícia fluminense; haverá as exceções dos exaltados, como aquele policial do vídeo que é puxado por seus próprios pares enquanto tenta chutar uma menina com um cartaz. Não estamos no mesmo contexto da ditadura, em que torturar e matar os rebeldes era parde explícita das aulas, chancelada por todos os níveis da hierarquia, e tem que ser dito novamente que o que a polícia faz não é porque os policiais são doidos, mas porque são legitimados e apoiados por governo e sociedade. Mas as chances de que isso represente um grau de repressão muito maior nas favelas são muito boas; mesmo em países com um grau de respeito aos direitos humanos e instituições de controle muito mais sólidos que os nossos, a Guerra ao Terror vem resultando num rosário de presos. Dilma, no medo de que a Copa desse errado, ajudou a chocar o ovo da anfisbena.

19.12.12

O menino que gritava lobo

Se aproxima (na verdade era pra já ter chegado há um mês, atraso que deixa desesperada nossa presidenta elétrica) a estação das chuvas na Serra do Mar. Com ela, mais uma vez ficará patente a balela que é a declaração de que "o Brasil não tem desastres naturais." Choverá mais do que no Furacão Sandy que arrasou os EUA, sobre solos finos cobrindo a pedra gneiss íngreme, e isso resultará na - quase inevitável - morte de dezenas. Talvez centenas. Possivelmente milhares. É uma tragédia recorrente: em 2010 foram S. Luiz do Paraitinga e Angra, além do Rio de Janeiro,  em 2011 foi a Serra dos Órgãos e em Santa Catarina. E esses são os grandes, os que ganham notícia; mortes em menor escala, nas periferias e ocupações, não ganham os jornais. As mortes recorrentes são recorrentemente atribuídas, como explicação universal, à "moradia em situação de risco," com tal força que apenas recentemente começou a se cogitar coisas como alarmes, evacuações, e alertas de desastre nessa serra propensa a desastres e com 80 milhões de pessoas em cima. Assim, parece à primeira vista paradoxal que quando se fala em remover pessoas de situações de alto risco, as próprias pessoas resistam, e ainda sejam apoiadas por muitos.

Os boatos que "explicam a verdadeira razão" das remoções parecem coisa de paranóico. Especulação imobiliária, no fundo de uma favela? Hotel do Eike Batista, a ser alcançado só pelo plano inclinado da mesma favela? As soluções alternativas, pouco razoáveis, propugnando uma contenção de encostas sem remoção dos atuais barracos (pode até ser feita, provavelmente a preço de ouro, uma contenção ali, mas durante a obra os barracos teriam que pular fora). Mas por que as pessoas, se sabem da tragédia recorrente das chuvas, se inclinam a esse tipo de explicação? Bem, talvez seja porque a prefeitura, que pode até ter razão nesse caso, mente como um tapete, no feliz trocadilho inglês, sobre remoções. Depois de gritar lobo falsamente por duas vezes, o menino foi devorado na terceira; Dudinha (e todos os prefeitos antes dele) gritou o lobo da remoção essencial muito mais de duas vezes, e quem pode ser devorado não é ele.

Assim, as pessoas removidas para a obra da Transoeste, justificada como instalação de um transporte de massa ligando o eixo oeste da cidade, realmente extremamente necessária (junto foram umas pistinhas de carro, que ninguém é de ferro), continuam sem lar até hoje, e os terrenos foram usados para outros fins. Assim, a Vila Autódromo, já parcialmente urbanizada, sem nenhum risco ambiental, e que o plano do parque olímpico aprovado em concurso preservava, vai pro saco com justificativas nebulosas (ora é a olimpíada, ora BRT, ora meio ambiente). E por aí em diante.  Como confiar numa prefeitura dessas? Como não acreditar que quer remover algo precioso para dar ao Eike, se é exatamente o que o aliado Cabral quer fazer no Maracanã?

E como não dar razão a quem não quer ser removido, se as remoções, até hoje, são para depósitos de gente - talvez menos longínquos e carentes de infraestrutura do que foi Cidade de Deus, mas igualmente desprovidos de qualquer planejamento urbano? Um imenso conjunto-bairro sem espaço para o comércio ou outras atividades além da moradia não apenas é um lugar desagradável de morar: para quem não tem carro nem tempo, é inviável mesmo. Sem cabelereiro (e vá conseguir um emprego sem cabelo arrumado, especialmente se o cabelo for "ruim"), sem igreja, sem bar, sem mercadinho que deixa comprar fiado... (a imprensa, ao invés de reconhecer a carência urbanística, denuncia os que tentam preenchê-la). Isso tudo, claro, supondo que há um conjunto habitacional habitável esperando os removidos, o que está longe de ser sempre verdade, como mostra esta reportagem d'O Globo:

Depois de quase três anos vivendo em situação precária no 3º Batalhão de Infantaria (BI), em São Gonçalo, parte das 89 famílias sobreviventes da tragédia do Morro do Bumba, em Niterói, vê a possibilidade de enfim se mudar para uma casa própria se distanciar. A entrega de apartamentos do programa Minha Casa Minha Vida prometida para julho deste ano deve ser adiada pela construtora, após dois dos 11 prédios erguidos no bairro do Fonseca apresentarem rachaduras, como mostrou ontem o “RJ-TV”, da TV Globo. Pelo menos um deles terá que ser inteiramente demolido e reerguido. Em relação ao outro, ainda está sendo analisado se será posto abaixo ou se há possibilidade de ser recuperado. Cada edifício custou R$ 2 milhões da verba total de R$ 27 milhões liberada pela Caixa Econômica Federal para a construtora Imperial Serviços Limitada


Favelas são, realmente, muitas vezes construídas em áreas de risco, por motivos óbvios: são as áreas que a cidade formal não quis ocupar. São áreas ruins, por algum motivo (favelas na lonjura da periferia têm mais chances de serem erguidas em terrenos razoáveis - nesse caso a condição negativa é a própria lonjura).  Se não fossem, estariam certos os reacionários que acham que favelados são "folgados" inescrupulosos que simplesmente querem morar bem sem pagar pelos terrenos. Então é, mais que verdade, quase axioma que muitas favelas são complicadas de resolver urbanisticamente, e uma proporção nada insignificante tem que ser removida mesmo. O problema é quando se mistura essa proposição com o preconceito, a truculência, e os interesses velados, que fazem com que a remoção de gente que atrapalha os negócios ser mais comum do que a de gente que está em risco. Num exemplo paulistano em que se mistura a razoabilidade da remoção com o interesse escuso, a favela do Moinho, que pegou fogo duas vezes este ano, é realmente um lugar inabitável. Foi construída sobre terreno contaminado; não se guarda água no lugar por causa disso. Mas o motivo que move a sua remoção (e, quem sabe, os incêndios) é, antes, o interesse na área pela CPTM, bem como a desvalorização que a favela causa no entorno. Qualquer alegação ambiental fica ridícula, quando o bosquinho da favela, que escapou ao fogo, foi desmatado por uma empresa de estacionamento.

E assim se vão os lobos a devorarem aldeias.

PS Este post, de 19 dezembro de 2012, foi anterior em exatamente 3 meses às chuvas torrenciais que atingiram Petrópolis com mais água do que o Katrina em Nova Órleans. Quando fui pegar o outro post para apensá-lo a este, além de fazer este pós-escrito, sobre como "área de risco" em algum grau é toda a Serra do Mar, descobri que Kassab em 2011 fez exatamente a mesma coisa que Dilma em 2013. A única diferença é que não se sabe o que foi fazer depois da declaração - Dilma continuou seu passeio turístico em Roma.

14.9.12

Holocaustos aos deuses

A usina de Belo Monte recebeu nesta quarta autorização do Ibama para construir suas ensecadeiras. Traduzindo: para desviar o curso do Xingu, e o rio morre, como ecossistema, a partir deste momento. Não, não é exagero: o Ibama comentou, mas não considerou impeditivo, sobre o fato da correnteza no novo leito ter uma velocidade de 2,5m/s. O número não significa muita coisa assim, para a maioria das pessoas, pouco acostumada a falar em velocidades de metros por segundo, mas vamos traduzi-lo também: nove quilômetros por hora, ou, se preferirem o jargão náutico, cinco nós. É a velocidade de uma pessoa trotando, ou quase o triplo do Michael Phelps batendo um recorde. A área toda da Volta Grande (aquela que não vira um leito seco) vira uma enorme corredeira, em que não será possível nadar, e embarcações de pequeno porte terão dificuldades para se deslocar.

O momento é particularmente importante porque Belo Monte não é apenas uma represa: é o começo de um grande projeto de ocupação da Amazônia, sonhado desde a Guerra Fria, que inclui mineração, agricultura, e estradas. E os habitantes atuais do lugar - índios, bichos, caboclos, ribeirinhos - que se danem.  Votamos numa guerrilheira torturada para ela realizar os sonhos dos militares que a torturaram. Como foi mesmo que isso aconteceu? Dilma teve o cérebro trocado pelo de Geisel numa operação paranormal da CIA? Pior que não. A explicação é mais prosaica, menos divertida, e o pior: mais difícil de lutar contra. Dilma não encampa o projeto de ocupação/devastação da Amazônia por maldade nem por burrice, mas por uma conta bastante simples: a classe média que se importa com os índios é menor do que a classe média que reclamaria de um aumento de impostos (algo paradoxalmente, em muitos casos é a mesma). Não dá pra continuar o projeto petista de diminuição da pobreza (com resultados admitidamente impressionantes em uma década) sem ou bem dividir o bolo, ou bem fazê-lo crescer rápido; e a conversão de capital natural acumulado é uma fórmula de crescimento rápido, como muito bem demonstrado, no caso da destruição das florestas e pradarias americanas, pelo William Cronon.

Dividir o bolo não significa apenas tirar dinheiro dos muito ricos e abastados, o 1% do movimento Occupy Wall Street. A classe média de que falamos, os 20% mais ricos, já possui renda média 3x superior à renda per capita brasileira, ou 12x superior à dos 20% mais pobres. Apenas para situar, uma igual fatia da Itália de Berlusconi recebe 6,5x a renda do quintil mais baixo. Na Rússia da "máfia ultracapitalista," são 7,6x. Estamos - sublinho - falando de uma estatística que ignora o 1%. Não é o Eike Batista, é alguém que ganha 4000 de salário bruto por mês e se acha pobre, ou alguém que ganha 10.000 e se acha remediado. Porque sim, o Brasil ainda é um país pobre, na média. Para continuar fazendo dos muito pobres menos pobres, sem fazer crescer a renda total (o que não é fácil, ainda mais que estamos na fase descendente de Kondratjev), só aumentando impostos, inclusive sobre a classe média, e/ou diminuindo as transferências de dinheiro público, de novo incluindo para a classe média.

Ora, apesar das evidências em contrário, (a carga tributária líquida, contando impostos e transferências diretas, brasileira é baixa E regressiva) a classe média continua achando que paga muitos impostos para sustentar vagabundo; a diferença entre a esquerda e a direita é basicamente o nome que se dá ao vagabundo, se banqueiro ou favelado. Não que eu discuta que banqueiros ganham muito dinheiro às custas do estado, mas o enfrentamento com a Febraban mostra que não foi os banqueiros que Dilma decidiu priorizar. O que faz todo o sentido pragmático - banqueiros, e as forças do capital em geral, não têm exatamente muita lealdade política: apoiarão o governo, qualquer governo, mas ao primeiro sinal de fraqueza voltam a seus candidatos do coração. Enquanto isso, não enfrentar a classe média fez com que Dilma - autoritária, sem carisma, tecnocrata, burocrata, o que mais se quiser xingá-la, aí incluídos os xingamentos homofóbicos e misóginos - superasse Lula em popularidade.

Não é só em nome da alegria dos banqueiros e ruralistas que a Amazônia está sendo jogada na fogueira. É, também para conciliar uma equação em que convivem o iphone e o bolsa-família, o vinhozinho e o cohab. É para dar o direito do pobre ao saneamento sem sacrificar o direito do "pobre" à viagem internacional.

23.7.12

Fly Dilma Fly

Dilma Roussef planeja adquirir um Jumbo para termos um avião presidencial "à altura do Brasil Potência." Pobre quando come melaço se lambuza mesmo. Esclarecendo: em 2005, quando a presidência da República comprou um avião, apelidado na imprensa de Aerolula, fui dos que defenderam a medida da acusação de gastança desnecessária. O Brasil, à época, não possuía propriamente um avião presidencial que prestasse; o Sucatão, com esse apelido carinhoso, era perigoso o suficiente para que FH, entre 99 e 2002, deixasse-o de lado e fretasse (a preço de ouro) aviões da TAM.  Não é o caso agora, como uma lista das datas de aquisição de aviões presidenciais brasileiros demonstra:

1941
1954
1968
1976
1986
2005

Reparem que o único a adquirir um avião antes do antigo completar uma década foi Ernesto Geisel - que, curiosamente, assim como Dilma, apesar disso conseguiu deixar nas mentes uma imagem pessoal austera. Sarney comprou um avião quando o velho tinha dez anos, mas era um avião usado, e tinha a vantagem do alcance transcontinental que os 737s comprados por Geisel não tinham.  Aliás, falando em alcance, a alegação de que o Jumbo, além de ser dahora, tem mais alcance é besteira. O A319JC Aerolula tem alcance de 12500km, e o Jumbo tem 14800km. Em outras palavras, um pode voar sem reabastecimento até:

Todo o Hemisfério Ocidental
Toda a África
Toda a Europa
Todo o Oriente Médio

E o Jumbo até, além dos anteriores, apenas parte da Ásia Central, e todo o subcontinente indiano. Em outras palavras, alcance a mais só para viagens à Índia. Porque Dilma vive em Délhi, né? Por outro lado, o desnecessário jumbodilma seria a jóia da coroa da Força Aérea Brasileira, para combinar com o (sempre parado) porta-aviões São Paulo, da Marinha, e integrar com orgulho o enorme Grupo de Transporte Especial da FAB (a FAB tem mais jatinhos para ôtoridades do que aviões de transporte de tropas...). Porque país rico é país sem pobreza.

E sim, é verdade que fazendo as contas, a aquisição de um avião novo, ainda que um jumbo, não é muito dinheiro para o governo brasileiro. Não daria para aumentar os salários dos professores federais nem em dez reais por mês. Mas o simbolismo dessa compra quando se fala em crise econômica para cortar gastos do governo é curiosamente ignorado, quando a única justificativa para a compra que não é uma mentira é, justamente, o simbolismo.

25.5.12

Projeto Hudson redux

Num post anterior, comentei aqui sobre o megalomaníaco projeto do Instituto Hudson, think tank americano que pretendia criar um mar interior na Amazônia represando o rio-mar em Óbidos, transformando em um mediterrâneo cheio de lavouras e cidades o ermo (wasteland - nos anos 60 ainda estava em curso a transição pela qual a palavra passou de significar área não aproveitada pela humanidade, incluindo qualquer mato, para querer dizer área desolada, sem vida). Pois bem, é curioso como a proposta do atual governo brasileiro para a região, mutatis mutandis e sem a megalomania descomunal, parece cada vez mais ser a do Instituto Hudson. Com vernizes, evidentemente, já que declarar tal coisa a peito aberto não é muito popular hoje em dia.

Vejamos a última comunicação do governo sobre o setor de energia elétrica: a de que estão canceladas as usinas nucleares propostas, e a base da expansão será a energia hídrica. Não se trata exatamente de um terceiro excluído; mesmo com geração eólica bem maior do que a prevista pelo governo, um Brasil com crescimento médio que seja não poderia dispensar outras usinas de algum tipo, e principalmente aquelas, como a hidrelétrica e a nuclear, que funcionam na base - o tempo todo e previsivelmente. Eólicas têm um limite de confiabilidade, que funciona com outras usinas para suprir a defasagem quando o vento não sopra. E energia solar ainda é caríssima, e mesmo com todos os aumentos de eficiência do mundo, o Brasil ainda precisa de muito mais metrô, trem, computador, e todas essas coisas que consomem energia elétrica.

Face a essas duas alternativas impalatáveis, o governo optou (como tem optado sempre, em qualquer ocasião) pela usina hidrelétrica, apesar de deixar aberta a porteira para a termelétrica a carvão do amigo Eike Batista, a pior opção possível em termos ambientais. Mas não precisam se preocupar, serão Usinas Plataformas, similares à operação de plataformas de petróleo em alto mar, e por isso não causarão danos ao meio ambiente, ou só causarão danos mínimos! A alegação é no mínimo bizarra, por uma série de motivos:

1 - Plataformas, em que pese sua popularidade, estão longe de "não causarem danos ao meio ambiente." Causam, e muito, desde a fase de prospecção, em que animais são mortos pelas ondas de choque, passando pela perfuração, em que vaza fluido de broca e há risco de acidentes catastróficos, até a operação, em que manchas de óleo próximas são comuns.

2 - Se não há milhares de operários numa plataforma no meio do mar, é por dois motivos simples: o mar é péssimo para se morar, e ótimo para arrastar cargas pesadas sobre ele. Ninguém vai implantar um canteiro de obras no meio do oceano, e ninguém vai arrastar por terra uma barragem hidrelétrica construída - como o são as plataformas - num estaleiro urbano.

3 - A alegação de que "não haverá estradas permanentes" não faz sentido. O problema é a própria construção, e não a operação, e ninguém imagina que se levará operários e cimento de helicóptero. Falar de "novas tecnologias de manutenção" é outra baboseira; de novo, o problema é a construção, como pode ser abundantemente visto na hidrelétrica de Belo Monte.

4 - A alegação de que a área ao redor, desmatada durante a construção, será reflorestada e "rigidamente controlada" pela União é, no mínimo, curiosa. Ora, se a União conseguisse fazer cumprir as atuais leis (ainda não foi sancionado o código desflorestal), desmatamento não seria problema nenhum, nem violência, nem doenças, nem nada. Se não consegue agora, qual a credibilidade que tem em dizer que conseguiria em torno dessas usinas plataforma?

5 - Mesmo que as tais usinas funcionassem como alegado, com feéricos dirigíveis gigantes largando a barragem do céu, a interrupção no fluxo do rio - e portanto de tanto peixes quanto sedimentos - por um enorme muro de concreto tem efeitos ecológicos importantes.  Se assemelha, é verdade, às plataformas no quesito "não dá pra ver na foto," o que imagino seja a maior preocupação... e olha que nem mencionei que, se a Dilma está preocupada, como alegou, com reservatório, essas usinas não vão ser, como Belo Monte, Jirau, e Santo Antônio, a fio d'água, mas criarão imensos lagos.

Ora, ninguém crê que Maurício Tolmasquin ou Dilma Rousseff sejam imbecis. Então por que estão vendendo um modelo de usina patentemente falso, e que vai, na verdade, intensificar o desmatamento e promover etnocídios? A resposta é óbvia: porque para eles, as mesmas ações tomam valor positivo, e se chamam integrar territórios e gentes à nação e à economia brasileiras, numa perpetuação dos ideais amazônicos da ditadura. Como o Instituto Hudson, que queria fazer great lakes brasileiros, o ideal deles é uma imensa Minnesotta, com umas florestinhas cênicas aqui e acolá sendo invadidas no verão pelos suburbanitas de Manaus e Porto Velho. Não é por nada que, neste momento, está no Congresso, além do código desflorestal, uma proposta de abrir territórios indígenas à mineração.

Atualização: o governo já está andando com as usinas do Tapajós. Que, lembrando, são mil vezes piores do que Belo Monte. Belo Monte, assim como as usinas do Madeira, está sendo construída numa área que já é parte do arco do desmatamento, já é largamente degradada, e aonde os conflitos da fronteira agrícola já são parte do cotidiano. As usinas do Tapajós vão levar essa realidade para áreas de floresta intocada.

Atualização 2: as empresas elétricas já encamparam de peito aberto a defesa dos reservatórios. Que, convenhamos, são mais lógicos mesmo; uma usina hídrica, com todos os seus impactos, só é superior a uma eólica por conta do reservatório. Usina hídrica a fio d'água, no mais das vezes, só dá lucro em condições amigas (governo participando do consórcio, dando o empréstimo, contratando a outra sócia como empreiteira, e pagando pela transmissão), como em Belo Monte. É o reservatório que permite à usina funcionar ao mesmo tempo como usina de carga-base e de reforço, evitando sobreoferta ou acionamento de térmicas (que é denunciado por jornais como "novela deixará eletricidade mais cara").

19.4.12

Dark Fantasy

A presidenta Dilma Rousseff nos explica que aqueles que são contrários à instalação de grandes hidrelétricas na Amazônia estão vivendo num mundo de fantasia. Verbatim: "Ninguém numa conferência dessas também aceita, me desculpem, discutir a fantasia. Ela não tem espaço para a fantasia. Não estou falando da utopia, essa pode ter, estou falando da fantasia." A frase, canhestra, é curiosa porque a amiga do peito de Dilma Graças Foster, presidenta da Petrobrás, havia declarado que a empresa não implantaria novas usinas térmicas porque estas não seriam capazes de competir, no custo, com usinas eólicas. E olha que usinas eólicas ganham benefícios do governo, sem dúvida. Mas muito menos do que os benefícios espalhados sobre as usinas hidrelétricas na Amazônia, principalmente Belo Monte.*

Mas esperem, o preço não é o principal motivo alegado por Dilma para sua oposição à energia eólica. É que "Reservatório de água a gente faz. Mas não faz reservatório de vento." Ora, tem toda a razão a presidenta! Louvemos seu apuro técnico! Er... se não fosse por um detalhezinho. As usinas sendo feitas na Amazônia - Santo Antônio, Jirau, Belo Monte - não têm reservatório. São todas usinas a fio d'água, que se aproveitam do curso corrente do rio. Nesse sentido, são tão vulneráveis aos caprichos da natureza quanto uma usina eólica, e não comparáveis a Itaipu ou Sobradinho, em que se pode acumular energia gravitacional pra converter depois. Por isso mesmo, a geração firme de Belo Monte é um terço da sua geração máxima. Nem isso acontece apenas por pinimba dos ambientalistas malvados que impediram os grandes reservatórios; a topografia da Amazônia faz com que uma usina com reservatório por lá signifique um reservatório desmesurado - e caríssimo - como em Balbina. E sim, tem gente propondo esses reservatórios muito maiores e mais danosos.

Fantasia, de verdade, parece ser o mundo em que habitam Dilma e outros proponentes da salvação do Brasil pelo represamento das águas amazônicas, seguindo os passos do pantagruélico projeto Hudson americano, que pensava em represar o próprio Amazonas, na altura do estreito de Óbidos, para criar um mar interior e facilitar a navegação. (Tema para uma tese de ecólogo: calcular as emissões de metano da vegetação apodrecendo e outras consequências ambientais nesse mar, caso tivesse sido feito nos anos 70.) Lula chegou a falar de usinas-plataformas, alimentadas por helicópteros e sem desmatamento, como se pudéssemos comparar as poucas dezenas de trabalhadores numa plataforma de petróleo com os milhares e dezenas de milhares numa obra de usina. A plataforma também é construída por muita gente, o que ocorre é que ela depois pode ser rebocada até seu sítio de operação. Fantasia é ignorar contente as barbáries cometidas nessas obras gigantes.  Fantasia é dizer que barrar um rio não lhe afeta o ecossistema, que obras com dezenas de milhares de operários não afetam a fronteira agrícola. Fantasia é dizer que não existe outra alternativa.

Tem até um nome específico essa fantasia, e não é o que ostenta o título deste post, que se refere ao gênero do qual a saga Crepúsculo é a versão pop, anódina, e de sucesso. Chama-se o continuum Gernsback, de um conto epônimo do canadense William Gibson, aquele que sem saber o que era um computador inventou o ciberespaço. No conto, um fotógrafo é contratado para registrar imagens de arquitetura "espacial" do começo do século; diners e postos de gasolina com antenas e radiadores, os EUA que se prepararam para um futuro que não foi. Nas palavras do próprio personagem [During the 1930s] ... they put Ming the Merciless in charge of designing California gas stations. Favoring the architecture of his native Mongo, he cruised up and down the coast erecting raygun emplacements in white stucco. Lots of them featured superfluous central towers ringed with those strange radiator flanges that were a signature motif of the style, and made them look as though they might generate potent bursts of raw technological enthusiasm, if you could only find the switch to turn them on."

Influenciado pela arquitetura, o protagonista acaba deslizando - se é delírio ou realidade não fica claro - para dentro daquele futuro, o futuro limpo e perfeito dos engenheiros, pregado por Hugo Gernsback e outros entre os primeiros escritores de ficção científica. A realidade alternativa, de autoestradas de 15 pistas por sentido e togas brancas, eugenia e tecnocracia, é aquela na qual parece que querem viver Dilma (que já se declarou fã de Jornada nas Estrelas, série que foi dos últimos grandes expoentes dessa tradição na ficção científica), e outros que pregam a cura dos males do mundo pela ciência - e eles querem dizer engenharia e economia, e não nenhuma outra, sequer as outras ciências "duras." (A economia foi singularmente bem-sucedida, dentre as ciências humanas, de se ver encampada pelas "duras," talvez pela matematização mais completa.) O problema, é claro, é que o outro lado do continuum Gernsback é nada mais nada menos do que a realidade. Para cada torre impossível com engenheiros togados, há um batalhão de Untermenschen mortos, torturados, desaparecidos. O sonho dos engenheiros lhes permite cometer, sorrindo, mais uma empreitada colonial.

PS pra deixar claro que os problemas causados pelas hidrelétricas não são apenas invenção de esquerdista radical, aqui reportagens do Valor Econômico (jornal dos grupos Folha e Globo) sobre a opinião das populações urbanas próximas a Belo Monte e do Madeira. (A segunda reportagem abre com as palavras "Falar bem das usinas de Santo Antônio e Jirau não é uma boa estratégia de campanha para quem quer ser prefeito de Porto Velho.")


* A prova de que as hidrelétricas em questão não são financeiramente viáveis a baixo custo, como alegado,  é que, mesmo depois de anunciar um pacote de bondades (empréstimos com carência do BNDES, isenções tributárias, prioridades alfandegárias, transmissão digrátish), o governo não encontrou empresas privadas dispostas a investir; ao invés disso teve que pôr pra investir as subsidiárias da Eletrobrás, com as construtoras que estavam sendo pagas pela obra de sócias - num claro conflito de interesses. (Se a construtora-como-consórcio paga um quarto da obra e a construtora-como-construtora ganha por ela toda, tem interesse em aumentar ao máximo o preço.)

21.3.12

Realpolitik e a pata manca

Talvez seja exagero chamar Dilma de pata manca precoce, mas isso só o tempo dirá. Que, hoje, tem cara, tem. Seu governo se restringe a tocar o barco e a defenestrações ministeriais. A alegação é, sempre, satisfazer as bases, fazer o possível - apesar das "bases," em ambos os significados de aliados políticos e massa militante, não estarem nem um pouco satisfeitos. É um leitmotif dos argumentos em defesa de ações governamentais, no mundo inteiro, a necessidade, o pragmatismo. Não se faz o ideal, mas o possível. Ora, essa alegação é, inegavelmente, sempre verdadeira, sendo virtuosos ou escusos os objetivos do governo; ninguém, nem mesmo o mais férreo autocrata, jamais vê suas vontades integralmente efetivadas no mundo real. Nem Quéops, nem Gengis Cã, nem Qianlong, Alexandre Magno ou o autocrata de sua preferência. A questão é que o pragmatismo é usado como desculpa para encobrir dois grandes vícios de governo, a mediocridade e o que vou chamar de teriomania, e que com uma assustadora frequência leva o nome de Realpolitik.

A mediocridade é simples, se danosa: a lógica do poder - como qualquer coisa que é vista como amealhável, como capital - é a acumulação. Não se gasta capital político, mas se consolida. Não se deve gastá-lo nesta ocasião, porque deve ser reservado para assuntos importantes. Nem nesta. Nem nesta. E assim se vai perpetuando uma situação de imobilismo, ou melhor, de inércia (movimentos anteriores são perpetuados). Assim, Dilma tem a maior base parlamentar de qualquer presidente da história do Brasil - mas nunca impõe à sua base que vote desta ou daquela maneira, porque isso significaria perder seu apoio. Nem tampouco abre mão dessa base em momento algum. Não há o julgamento pragmático de quando isso vale a pena, mas a necessidade quase atávica de acumular deputados, como um esquilo se preparando para um inverno que nunca virá.

A teriomania é um pouco mais curiosa. Ela se desenvolve a partir do momento em que alguém identifica coisas moralmente condenáveis que por outro lado são vistas como necessárias. Ora, como aquele que vai em frente e comete o malfeito necessário não tem, em geral, vocação para aquele Judas do conto de Borges, que redimia os pecados do mundo sendo condenado ao inferno, convertem em uma ação particularmente moral a transgressão moral. São virtuosos porque se dispuseram a tomar para si os pecados, para que a sociedade sobrevivesse. São melhores do que aqueles que não se dispõem a tomar esses golpes morais em nome do bem maior. A progressão tem uma conclusão lógica: aquele que empreende ações imorais por fins morais é superior àquele que para os mesmos fins apenas usa meios morais.

Assim é que ninguém fala que em nome da Realpolitik, talvez devamos limpar o meio ambiente. Talvez seja uma ação de Realpolitik tirar as bases americanas do Oriente Médio. A Realpolitik não faria com que um grupo numeroso e politicamente amorfo como os homossexuais valesse mais em termos de cortejamento eleitoral do que um grupo igualmente numeroso, mas politicamente definido e influenciável por líderes definidos como os evangélicos. A Realpolitik não faria com que se aumentasse o IRPF no começo do mandato, para melhorar as finanças do governo. Etc. etc. etc... Essa noção de pragmatismo sempre irá, preferencialmente, seguir pelo caminho considerado moralmente questionável. É por isso, em parte, que partidos de esquerda, quando estão no poder em posições não tão seguras, são muitas vezes mais realistas do que o rei mercado.

Não é a única coisa que faz Dilma se acochambrar tanto com os interesses obscuros da política, claro. Existem casos de pragmatismo real. Existem avaliações erradas. Existem problemas de incapacidade pessoal. Dilma, afinal, não é política. Estreou em cargos eleitos como presidente. Está acostumada a mandar, o que podia fazer como ministra, mas não sabe o que fazer quando o esporro é devolvido e não pode mandar - ou seja, na relação com os outros poderes da República.

O novo Código Florestal, ou a adulteração dos royalties de hidrocarbonetos, são questões reais da relação de forças no Congresso. A bancada ruralista é mais coesa do que a imensa maioria dos partidos brasileiros (sim, coesa de parlamentares votarem contra seus próprios interesses e opiniões, se for fechada questão), representa um terço do Congresso, e tem interesse direto no desmatamento. Os royalties do petróleo são cobiçados pelas três quartas partes dos deputados e oito em cada nove senadores. Dilma não se opõe diretamente porque sabe que seria derrotada, e tegiversa.

Por outro lado, a constante reação assustada à bancada evangélica é uma combinação de leitura errada, covardia, e teriomania. Leitura errada porque a bancada evangélica é superestimada e mal avaliada - não é coesa em absoluto, nem é tão forte assim. Nem é, em sua maioria, particularmente avessa aos mesmos incentivos materiais que seduzem o resto da "base aliada." Não foi eleita, em muitos casos, como evangélica. Os 71 parlamentares listado como "da bancada evangélica" (menos de metade do número dos ruralistas) são todos aqueles que participam da Frente Parlamentar Evangélica, o que não significa mais do que uma carteirinha de clube; cada parlamentar participa de várias "frentes." (Tem Frente Parlamentar até de apoio a hidrovias.) Mesmo se você tirar da conta do neopentecostalismo deles o preconceito que é a única coisa que defendem, e que é defendido por outros, não há indicação - para além do barulho - de que seria eleitoralmente problemático. Mas a covardia confunde barulho com força; a teriomania torna prazeroso o ato de tapar o nariz para sentar-se à mesa com Edir Macedo, dono da Record e de Crivella. E assim temos os afagos e mimos aos evangélicos.

PS diga-se, sobre Crivella, que o ministério da Pesca não significa p. nenhuma. Além de não dever existir. O que dói nos afagos aos evangélicos é o abandono de programas de direitos humanos.

PPS que o preconceito não se restringe aos evangélicos, e que o tom de histeria anti-LGBT não é de agora deve ser admitido vide esta cena de 2005.

12.1.12

Dama de ferro tropical

Dilma costuma ser chamada, na imprensa internacional, de "dama de ferro dos trópicos." Eu achava que era só pelo estilo, mas agora ela vem e fala, durante uma cerimônia de entrega de [plano de entregar] casas populares, junto com o Alckmin*:

Ninguém é de classe média se não tiver sua casa. Ninguém.

A idéia (que ignora todos aqueles apartamentos pra alugar a 20.000 por mês nos Jardins) parece um eco longínquo da frase e do espírito de Margareth Thatcher, ao promover a ownership society, de que "if a man at thirty is still riding a bus, he has failed at life."

Já tinha a impressão de que Dilma se deixava pautar pela imprensa. Agora vejo que pelo menos ela também lê a imprensa internacional. Só tenho medo da filha dela, como o da Maggie, virar traficante de armas.


*Deixo pra lá a afirmação de que as divergências com o Alckmin, passadas as eleições, inexistem, que acho que pode ser debitada na conta de salamaleques com relação ortogonal com a verdade.

11.1.12

Dilma, devolve meu voto?

OK, continuo achando que com o Serra seria muito pior, provavelmente vou votar na reeleição dela (mas não no primeiro turno), mas pqp. O último afago à Veja do governo Dilma desmente meu antepenúltimo post, sobre imigração, e toma medidas de corar um republicano dos EUA para barrar os haitianos.

Para não explanar que a idéia é atender aos gritos xenófobos da nossa mídia, haverá quem defenda que é uma questão "humanitária," haja vistos os problemas com coiotes e superlotação na fronteira. Ora, se assim fosse, não seriam restringidos os vistos concedidos já no Haiti. A maneira de se esgotar a imigração ilegal não é - fora do sonho alucinado de algum Le Pen - fechando as portas da imigração legal, mas sim as escancarando. Abra-se as portas do Brasil, e vai ter um monte de coiote na fila do desemprego.

Bem, OK, Dilma perdeu meu voto, ganhou o de uns 500.000 tiozinhos leitores da Veja que votaram no Serra contra a terrorista comuna. Acho que é lucro. Mas também é uma traição a si mesma. Pra fazer a mesma coisa que o Geisel, não precisava ter sofrido tortura, era só se filiar ao MDB.


EDIT - outra coisa que aproxima a Dilma do PSDB: na propaganda, e imagino que também na autoimagem, seu diferencial é a "gestão." Pois bem, como bem apontado pela colunista Rosângela Bittar, do Valor, assim como a do PSDB a gestão da Dilma é falha:

Apagões pequenos, médios e grandes, do Oiapoque ao Chuí; epidemia grave de dengue; mortes novamente por catástrofes da natureza esperadas mas não prevenidas por governos municipais, estaduais e sobretudo federal, a quem compete muito; caos aéreo persistente, resultado de incipientes medidas; erros repetidos na administração da Educação; baixa execução de PACs I ou II; reforma agrária sem resultados; invisível avanço em desempenho na área de segurança. Problemas, esses e muitos outros, do primeiro ano do governo Dilma, todos, de gestão.

A presidente da República gastou seis meses iniciais na montagem do governo e os seis meses finais na desmontagem. Perdeu, na tessitura, dois pilares, Antonio Palocci, chefe da Casa Civil, e Nelson Jobim, ministro da Defesa, dois mais importantes colaboradores. Titubeou, demorou, negaceou, até trocar ministros política e administrativamente inviabilizados nos cargos, levando o governo à paralisia. Quando tomou providências o fez de forma acanhada - pois ainda há áreas no vácuo -, e já era o fim da primeira etapa.



PS minha esperança de uma refomra tributária aumentando IRPF e ITR em troca de zerar IPI? Zero.

9.12.11

Trifecta

Num curto espaço de tempo, o governo Dilma soltou, diretamente ou por conivência com o congresso, três coliformes de vulto: o novo código florestal, a neutralização da lei antihomofobia, e o programa nacional contra o crack. O primeiro acaba com garantias contra o desmatamento que até estados feudais tinham, o segundo não tem muito efeito mas significa uma capitulação aos preconceituosos pseudo-religiosos (algum deputado da "bancada católica" votou contra o código florestal, como recomendado pela igreja?), o terceiro é a reabertura dos manicômios, para se isolar os doidos dos olhares de gente de bem(ns).

Não, não estou arrependido de ter votado na Dilma. Porque votei mesmo foi contra o Serra, e ele pregava todas as três coisas na campanha. Ombro a ombro com Silas Malafaia, Kátia Abreu, e Jair Bolsonaro. Mas que dá raiva, dá. A desculpa sempre é a necessidade de preservar o capital político para votações importantes, mas que votações importantes seriam essas? Até o Obama, que também usa essa desculpa, passou o seu plano de saúde pelo Congresso, mas não vejo nada além do ramerrame banal de orçamento, DRU, e outras cotianidades ser tentado pelo governo Dilma. Sem jogar (mesmo admitindo a possibilidade de derrota) por nenhuma bandeira, o PT dá razão à acusação de que sua única função no poder é manter-se no poder.

Do código florestal já falei bastante. Mas para explicar as outras duas indignações:

Não há nada de concreto no evisceramento do PLC 122 que me preocupe. Pelo contrário, A) mesmo neutralizado pela cláusula que permite a homofobia religiosa, ele continua sendo mais estrito do que a realidade hoje, e B) eu não acho que a criminalização do preconceito seja uma forma eficaz de lutar contra ele. Estamos comemorando os sessenta anos da lei Afonso Arinos, que proíbe o racismo, e continuamos tendo elevadores de branco, o crime de dirigir enquanto preto, cabelos ruins, e uma diferença salarial entre pretos e brancos maior do que a americana. Mas se nãoé um problema concreto, é uma sinalização - como tantas outras - de capitulação à bancada evangélica. O que os evangélicos mandarem, que não seja contra a CNA ou a Fiesp, o governo fará. E a esse povo, como aos ruralistas, o poder subiu a cabeça. Cada vitória deixa eles mais radicais, ao ponto de daqui a pouco o MEC ter que ensinar criacionismo nas escolas. (Seria irônico o primeiro museu de ciências de grande porte do Brasil ser criacionista... ok, tô exagerando.)

Sobre o plano de combate ao crack: ele não é mais do que o higienismo de tirar os indesejáveis das ruas. Internação compulsória não ajuda em nada os malucos (e toxicômanos são uma categoria de maluco), só atrapalha. Por isso que o Brasil, entre outros países, eliminou os manicômios ao longo dos anos 90, culminando na lei Paulo Delgado, de 2001. Por isso que a verdadeira função desse plano não é ajudar os craqueiros, mas sim retirá-los das vistas alheias. O neo-amigo Kassab agradece a ajuda para seu plano de valorização imobiliária da região da Luz. E o complemento do plano é uma intensificação da guerra às drogas, num momento em que até o presidente da Colômbia (um dos marechais dessa guerra no mundo, portanto) está questionando ela.

Anfã.

5.12.11

Motosserras a postos

O governo federal anuncia que, apesar de muito pior do que o atual, o novo código florestal (aprovado no Senado por vergonhosos 59 votos a 6) pelo menos será, ao contrário do atual, cumprido, porque vão investir em fiscalização. Há rumores de que uma senhora em Taubaté acreditou, ainda a serem investigados. Os ruralistas, que comemoraram efusivamente o novo código, não acreditaram nem um pouco, e alguns deles já ressuscitaram neste ano uma prática que não se via desde 2003: o corte raso com correntão. Explico: enquanto os desmatamentos realizados desde 2003, quando começou a haver alguma, ainda que incipiente, fiscalização foram velados, coisa que só aparece quando é um fato consumado, alguns fazendeiros no Pará e Mato Grosso estão desmatando pelo método de se amarrar uma corrente de navio entre dois tratores e sair pondo a mata abaixo. Mais descarado impossível. E um tal descaramento só pode ter uma origem: a certeza da anistia.

A certeza se justifica pelo comportamento do Executivo, revelando uma das poucas mudanças políticas reais entre o segundo governo Lula e o governo Dilma. O governo foi contra a primeira versão do código desflorestal, aprovada pela Câmara, dizem-nos, mas foi contra naquelas, tanto que o seu relator, Aldo Rebelo, continua sendo um dos líderes governistas. Da nova versão, só 99% a favor do desmatamento, foi a favor. Não custa lembrar que Marina Silva pulou fora do ministério do meio ambiente justamente por conta dos atritos com a então ministra da Casa Civil. (Não custa, também, reclamar da Marina Silva que, com sua atitude olímpica no segundo turno, pode ter preservado seu capital eleitoral udenista, mas abdicou de influência em prol do meio ambiente. Fosse apoiando Serra ou Dilma, essa seria bem maior.) Diga-se, pra ser justo, que nem todos os senadores governistas votaram a favor desse aborto. Pra ser exato, Lindinho e Requião foram contra, além de Randolfe Rodrigues e Marinor Mendes, do PSOL, e Paulo Davim, do PV. (E, bizarramente, de Fernando Collor.)

Não é que a Dilma seja o Blairo Maggi. Mas nem precisa; quando a maior e mais coesa bancada do Senado, além do poder econômico, estão a favor de algo, ser neutro já é o bastante para a catástrofe se anunciar. Não custa lembrar que o desmatamento anual sob o FH, que também não era o Blairo Maggi, e tenho certeza de que tem em privado até maiores convicções ambientais do que a Dilma, era mais de quatro vezes maior do que hoje em dia. E o que é pior: assim como os ingleses que eram contra a Guerra do Iraque, que não tinham alternativa porque o partido de oposição era mais a favor da guerra ainda, o PSDEMB é muito mais a favor do desmatamento ainda. Afinal, se apenas dois senadores governistas tiveram coragem de se opor ao governo, nenhum da oposição de direita se opôs.

21.11.11

Bela Cordilheira

A força que ganhou o tema "Belo Monte" depois da adesão de estrelas da Globo à campanha contra a construção da usina comprova, talvez, que a era dos virais da internet ainda não suplantou a dos velhos mídias. Belo Monte, de problema de ecochato e gringo, virou cause cèlebre nacional. E eu, que sou do contra e falava mal da represa desde muito antes, e em especial do silêncio dos candidatos presidenciais, Marina incluída sobre a questão, vou ser do contra de novo: agora a Inês é morta, os cavalos escaparam pela porteira, o leite derramou. Os maiores problemas socioambientais derivados de hidrelétricas na Amazônia não são os causados pelo lago*, mas aqueles derivados do fluxo habitacional temporário e da interrupção do curso do rio, partindo em dois um ecossistema integrado (muitos peixes, eg, se reproduzem nas cabeceiras de um rio, mas vivem sua vida adulta no curso principal, ou mesmo no mar).

O segundo fator continua sendo preocupante em Belo Monte, sem dúvida, mas escadinhas de peixe, como a que existirá, amenizam ele bastante. Não é fácil quantificar se Belo Monte vai ser mais danosa aos peixes do Xingu do que um parque eólico equivalente seria às aves marítimas do Nordeste. O primeiro, que é o pior deles, é que essa imensa massa humana (em Belo Monte, fala-se de 100.000 pessoas - mais do que a população atual de Altamira - ou de Corumbá, ou de outros cinco mil municípios brasileiros - é transiente e desocupada. A usina não precisa durante sua construção de todos aqueles que são atraídos pela notícia dela, e depois da construção, de quase ninguém. E aí você tem dezenas de milhares de pessoas sem ocupação nem como voltar pra casa, cuja única alternativa é a agricultura de subsistência no que um dia foi floresta. O que, é claro, gera poluição e desmatamento, e conflitos com os índios e ribeirinhos.

Ora pois, a essas alturas o povo já se mudou pra Altamira. Cancelar a obra não faria tanta diferença assim. Belo Monte não será um problema ambiental, já foi um problema ambiental. Por isso é que eu não me importo mais tanto assim com ela. Por outro lado, e infelizmente sem nenhuma atenção global (será que vão fazer vídeo depois de feito o estrago?), o novo, e retrógrado, código florestal caminha para ser aprovado no Congresso. O novo código, não custa lembrar, causaria o desmatamento de uma área literalmente 500 vezes maior que a do lago de Belo Monte, na projeção mais otimista. Centenas de vezes maior, mesmo incluindo o desmatamento induzido. Sem vídeo da Globo avisando que a parolagem ambientalista de que a legislação ambiental brasileira é rigorosa é uma mentira deslavada, e que o contrário é verdade - na maioria dos países, o desmatamento permitido é zero, não 20 a 80% de uma propriedade.

*a não ser que se cometa a burrice de deixar a floresta lá para ser alagada, caso em que a usina emite metano em proporção pior, para o efeito estufa, do que se fosse uma usina de carvão do mesmo tamanho.