Hoje é o aniversário do "Act for the Abolition of the Slave Trade," de 1807, no qual a Grã-Bretanha proibiu o tráfego de escravos em seu império. A escravidão em si ainda seria legal por mais um quarto de século. O ato foi o resultado, mais do que (como aprendi na escola) de alguma pressão capitalista oriunda da inexorável marcha da história, de uma campanha ativa e basicamente ideológica contra o tráfego; tanto ainda era lucrativo que ainda havia muitas companhias de negreiros em Bristol, Londres, e Liverpool, mesmo com a grande quantidade de regulações sobre o tráfego empilhadas desde 1786, e com o salário dos marinheiros em alta por conta da concorrência da Marinha embrenhada nas guerras napoleônicas. Aliás, tanto que o que mais houve depois do ato foi capitão inglês indo fazer fortuna nos EUA.
Uma das consequencias dessa campanha foi estabelecer a escravidão como um mal de ordem superior no nosso imaginário. Se se for olhar, por exemplo, obras de fantasia popular, o jeito prático e rápido de criar um grupo inequivocamente malvado é dizendo que são caçadores de escravos (infelizmente, no Brasil não traduzem isso por "bandeirante"). O que é curioso é o quanto isso acabou servindo a um chauvinismo cultural pouco merecido. Explico: ao definir a escravidão como um mal-em-si absoluto, acabou-se por eliminar a diferença, que é grande, entre os diversos tipos de escravidão.
Não que eu não considere a escravidão um mal-em-si, mas a escravidão legal por si só é apenas um dos regimes (que também considero males-em-si) de exploração das pessoas. Um escravo mameluco dos sultões egípcios, ou um eunuco da Cidade Proibida* tinham um status social e posição econômica muito superiores aos da média da sociedade; na Atenas pós-clássica, a situação média dos escravos, excluídos os mineiros, era superior a da média da população; etc etc etc. Mesmo em sociedades construídas no lombo de trabalho escravo em latifúndios, como Roma (a origem da palavra) ou a Pérsia, a situação destes não era particularmente diferente da de outros bóias-frias.
A escravidão que é, essa sim, uma nódoa indelével na história da humanidade, comparável aos genocídios industriais no século XX ou aos massacres dos mongóis e seus descendentes, ou à corvéia Qin e Han, é especificamente a escravidão atlântica. E ela teve paralelos, em termos de hiperexploração, justamente em outros regimes de trabalho estabelecidos no âmbito da colonização européia, como a mita imposta aos índios do Altiplano andino, o apresamento de índios pelos bandeirantes, ou as barbaridades das colônias européias pós-1850 na África e na Ásia.
Constatar isso reverte o chauvinismo cultural. Não fomos** aqueles que acabaram com a escravidão, fomos aqueles que criaram um regime particularmente iníquo de escravidão, que após sua abolição legal se deslocou para o Velho Mundo preservando boa parte de suas características monstruosas. Não se trata, como gostariam os conservadores americanos macaqueados por aqui, de culpa branca, ou de imputar aos europeus uma perversidade ímpar. A perversidade esteve no sistema-mundo criado a partir da colonização da América esvaziada pela varíola, e dela fizeram parte plena os reis africanos que criaram impérios cuja principal fonte de renda era a caça ao ser humano, como depois os déspotas indianos e indonésios que vendiam seus próprios súditos como cules.
Ah, só pra lembrar - hoje há mais pessoas vivendo em situação efetiva de escravidão do que em qualquer outro momento da história da humanidade, aí incluído o auge da escravidão atlântica em meados do século XIX ou o do trabalho cule no começo do XX. A Pollyanna diria que isso é porque a população mundial é maior, e a porcentagem é muito menos que nesses outros momentos. Mas não deixa de ser um dado vergonhoso.
*As cidades proibidas, na verdade - o primeiro uso do nome se referiu ao palácio dos Tang em Kaifeng, e houve muitas capitais da China desde então.
**"Fomos" mó menos. Se você pensar em alguém que se identifica como descendente da cultura ocidental - o que é até razoável, mas pergunte a um europeu ou americano se ele inclui o Brasil no "Ocidente."
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