O projeto de reforma do código florestal brasileiro elaborado pelo (ex)comunista Aldo Rebelo* podia ser chamado também de projeto de revogação do código florestal brasileiro. Tem mimos como perdão de crimes, além de eliminar restrições ambientais óbvias que vigoravam literalmente desde tempos coloniais, como a proibição de se desmatar cumes de morros, num país tropical caracterizado por fortes chuvas e solo frágil. As poucas restrições ao desmatamento que mantem, ele faculta aos estados remover. (Santa Catarina, em especial, já tentou fazer isso mesmo antes da nova lei, na cara dura inconstitucional.)
O curioso pra mim dessa sanha antiambiental dos ruralistas brasileiros é a cegueira dela. Os sojicultores que lutam pelo fim da proteção dos mananciais se dão conta de que isso vai fazer com que eles tenham que pagar caro pela água que hoje rega de graça a soja deles? Os pecuaristas que lutam pelo direito de acabar com o pantanal se dão conta de que não dá pra criar gado em grande densidade num deserto? Os únicos contribuintes para o projeto do Aldo Rebelo que fazem sentido são as papeleiras que querem receber dinheiro do governo para "reflorestar" com eucalipto áreas desmatadas.
É até curioso que as elites brasileiras tenham tão pouco apreço pela natureza em todos os níveis. Me dei conta de outra iteração desse desapreço quando olhava um mapa de São Paulo outro dia. Não é apenas a falta de parques e praças na cidade, apesar de essa ser assustadora. É que ela, como a maioria das cidades brasileiras, não possui um cinturão verde. É até curioso, se você pensar que parte da retórica justificando o multibilionário e ambientalmente problemático rodoanel falava que as cidades "desenvolvidas" possuíam rodoanel.** Ora, as cidades "desenvolvidas" também têm um verdeanel, e não só não se falou de fazer um para Sampa como ainda se destruiu, com a construção do rodoanel, boa parte de uma das duas franjas verdes da cidade. (A área de proteção das represas, ao sul, que se mistura com os parques da Serra do Mar. Ao norte, menor e mais ameaçada, a cidade tem a serra da Cantareira.)
Os cinturões verdes têm uma origem pouco cheirosa, literalmente: originalmente, a expressão significava a área ao redor de um núcleo urbano que era fertilizada pelos dejetos deste. O cocô (de gente e animais de tração) e lixo orgânico, que eram quase a totalidade do lixo antes da era industrial, viravam excelente adubo, possibilitando a formação de um cinturão que por sua vez supria quase inteiramente as necessidades alimentares da maioria das cidades localizadas em climas minimamente razoáveis. (A forma específica desses cinturões variava muito, dos vergéis do Al Andalus aos trigais bizantinos, aos jardins flutuantes (literalmente) de Tenochtitlán.)
Dessa importância para o abastecimento surgiu, metamorfoseando-se em importância paisagística e cultural, a idéia de fazer cinturões verdes, áreas non aedificandi, ao redor das crescentes metrópoles industriais do século XX. Os subúrbios mais remotos da cidade estão, assim, separados por uma área verde, protegendo a cidade em vários sentidos. Na América do Norte, a idéia começou a ser divulgada mais tarde, e alcançou em muitos casos um patamar superior, com os ideais da City Beautiful precedentes se combinando, formando quase uma roda verde.
Cinturões verdes têm sua cota de críticas - afinal, todos os subúrbios a ser construídos fora deles ficarão, por definição, uns 10, 20km mais distantes, o que é caro em termos de infrastrutura e especialmente danoso quando se tem um padrão urbanístico de sprawl anglo-saxão. Além disso, como a área de proteção de mananciais da Billings bem demonstra, políticos apreciam a facilidade de construir estradas e outros trambolhos de infra em cima deles, sem precisar de desapropriações complicadas. Mas, bem, uma dessas críticas se aplica menos por aqui, e a outra se refere, não ao cinturão em si, mas a gente que o destrói.
Oficialmente, São Paulo até tem um cinturão verde. Olhando a foto ou mesmo o mapa oficial, é difícil de entender quem achou que isso era um círculo. E essa foto é de 1996, que também é a data da última ação relatada no site do cinturão verde de SP. Hoje em dia, o "anel" já foi degradado e - parece até piada - é em parte dele que vai ser enfiado o novo aterro sanitário da capital. Pra ser mais exato, pertinho de onde pretendem construir a parte leste do rodoanel.
Em escala nacional, tem um movimento que se autodenominou cinturão verde europeu, que tenta aproveitar as áreas verdes surgidas por acaso da história ao longo da Cortina de Ferro, numa situação parecida, se menos absurda, com a da Zona Desmilitarizada coreana, que já foi Lugar Estranho do Mundo por aqui.
*Agora convertido em defensor de agrocorporações e latifundiário, com laivos de nacionalismo do tipo esposado pelos milicos, como a seguinte declaração demonstra: "Querem interditar a infraestrutura, tutelar os índios e trazer boas novas da defesa da natureza com financiamento farto, como braços paramilitares de interesses internacionais".
**Com direito a um press release do governo no qual se exclamava que Moscou tinha "cinco rodoanéis já" - incluindo na lista até a rua que circunda os muros do Kremlin. Por essa classificação, São Paulo já tem uns três.
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