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19.8.21

Are we the virus?

No começo da década da Covid, quando começaram os trancaços para conter a epidemia, na China e, pouco depois, na Europa, a redução da poluição e os animais silvestres passeando pelas cidades levaram a análises fáceis, que diziam que "nós somos o vírus." Com a humanidade confinada, ou até, nas versões mais radicais, exterminada, a natureza poderia renascer. Não muito tempo depois, a resposta, igualmente simplista, mas sem o ecofascismo da tese original: o vírus não é a humanidade, mas o capitalismo, que está acabando com o planeta. As duas teses são versões radicais de um pensamento em torno da ecologia mais amplo, levadas a essa radicalização pela enormidade da epidemia e dos seus efeitos sobre a economia mundial. Obviamente, eu sou mais simpático à segunda, mas não dá pra deixar de usar o bordão "na real a coisa não é tão simples assim."

Primeiro de mais nada, o "fato" explicado pelas teses merece uma ressalvazinha: 90% dos eventos observados, que são principalmente a vida selvagem em subúrbios e cidades pequenas, são absolutamente banais, e aconteciam muito antes dos trancaços. Leopardos matavam cães dentro de prédios em Mumbai, uma das maiores metrópoles da Terra. Os veados de Nara já moravam num parque dentro da cidade, e já saíam à noite - inclusive, o governo estava preocupado com turistas sendo atacados por eles.  Javalis e ursos são parte da fauna suburbana comum em todo o domínio holártico. O que aconteceu é que pessoas entediadas em casa, e já dispostas a crer na narrativa do retorno da natureza, passaram a reparar mais, na imensa maioria dos casos.

Mas OK, a queda na produção de fumaça, principalmente pelos carros (fábricas não tiveram uma queda de produção tão grande) foi mesmo enorme. E essa fumaça tem impactos locais (no caso de Europa e Leste Asiático, "local" é continental) enormes, sem falar no aquecimento global (que infelizmente não foi reduzido pelo trancaço, só parou de crescer). Então, quem será o vírus que deve ser cortado, humanidade ou capitalismo?

Pra início de conversa: a ideia de que, como diria o Agente Smith, o ser humano e o câncer são as únicas formas de vida que se espalham de forma ilimitada está 100% errada. Se espalhar até os próprios limites, e inclusive consumir os recursos locais e morrer, é próprio da vida. Todo ser vivo faz isso. A especificidade da célula do câncer, nesse sentido, é que ela funciona como um ser vivo independente, ao invés de como parte do organismo humano. Não fosse assim, não falaríamos da importância de grandes predadores para o meio ambiente: o exemplo clássico dos bancos escolares, o da floresta em que tirados os lobos os veados comem tudo e morrem de fome, é um pouco forçado, mas claro. Nem humanos nem veados se autorregulam. 

E não, as culturas pré-capitalistas, ou não-ocidentais, também não se autorregulavam. O holocausto da invasão e da varíola nas Américas alterou o clima do planeta, que esfriou devido ao reflorestamento; ora, se as pessoas morrerem levou ao reflorestamento, é que não estava todo mundo numa harmonia edênica. No Oriente Médio, o crescente fértil, berço das primeiras cidades humanas, sofre com desertificação e salinização antropogênicas há mais de três mil anos. Existem leis da Roma republicana e da dinastia Han na China coibindo desmatamento - ou seja, tem lei porque já era um problema. Mais longe ainda no tempo, o aquecimento global antropogênico começa com a cultura do arroz de inundação no sudeste asiático, ainda no neolítico, que inclusive impediu uma era do gelo. Mais longe ainda, seres humanos contribuíram - o quão decisivamente ainda é motivo de debate - para a extinção da megafauna holártica e neotropical (do norte global e da América do Sul). 

O problema entrou em outro nível com a revolução industrial, essa gêmea xifópaga do capitalismo? Sem dúvida. O que define a revolução industrial, afinal de contas, é o uso dos combustíveis fósseis para multiplicar a energia disponível para o trabalho, e com isso o carbono sequestrado pelas plantas e algas por milhões de anos começou a ser liberado em escala maciça. Pior: na segunda revolução industrial, a do automóvel, isso passou a ser feito menos para solucionar problemas práticos do que para alimentar uma engrenagem de status e poder cada vez mais bizantina e cada vez mais faminta de recursos, do próprio automóvel ao eletrônico com "obsolescência programada" à compra na Amazon como terapia, ao bitcoin, cuja melhor descrição é "imagina se você deixar o carro ligado o dia inteiro pudesse gerar sudokus completos pra trocar por cocaína." 

A situação é claramente inviável. O mais próximo que se pode chegar de um consenso científico hoje é que temos anos, e não décadas, para frear a catástrofe climática, e o capitalismo em sua espiral centrífuga é um obstáculo. Mas o que quero pontuar é que ele não é uma queda do paraíso. Não houve o mundo edênico pré-capitalista, não houve a sociedade autorregulada, e nem a natureza não-humana é autorregulada. O que precisamos não é voltar ao passado, é criar algo novo. 

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