Bem, aqui não, no Rio.
Em meio ao recrudescimento da conquista pela FIFA do Brasil, nesta semana vimos a mafiosa entidade suíça proibir o tabuleiro da baiana num raio de 2km do estádio Fonte Nova, em Salvador. O absurdo tem vários níveis. Proibir o produto local em prol do patrocinador massificado dentro do estádio já é absurdo, e desmente toda a parolagem piedosa de "sustentabilidade" e "legado social" que a FIFA roubou ao (um pouco menos mafioso) Comitê Olímpico Internacional. Na Alemanha, quando imposição semelhante foi feita em relação à cerveja, algumas das cidades conseguiram rebelar-se contra a possibilidade de ter que beber Heineken. Mas a FIFA foi além do estádio: proíbe que uma atividade tradicional e (até aqui) lícita aconteça nas ruas da cidade. Impõe sua lei a espaços que nada têm a ver com a copa (perdão, com a Copa do Mundo da FIFAtm), a gente que não se interessa por futebol. E - num momento em que a burrice, ao invés de servir de alternativa à malícia como explicação, se alia a esta - propõe um raio que só faz sentido num subúrbio americano para sua imposição. 2km da Fonte Nova inclui quase todo o Centro de Salvador, e todo o centro histórico, além de Comércio, Tororó, Lapinha... enfim, toda a região central da cidade. Quem estabeleceu o tamanho do raio de controle da FIFA das duas uma; ou mora num subúrbio de baixíssima densidade (não é só nos EUA que isso existe), ou não faz idéia do significado de 2km. Enfim, resumindo: não é tão hipérbole assim dizer que a FIFA quer, em 2014, proibir o tabuleiro da baiana.
Em Porto Alegre, o ataque à democracia foi menos radical, mas mais sangrento, e a FIFA pode até lavar as mãos do sangue literalmente derramado. Para defender o boneco representando o mascote da Copa 2014 – que chegou a ser derrubado -, foram deslocados cerca de 60 policiais militares do Pelotão de Operações Especiais (POE) do 9º Batalhão de Polícia Militar, além de tropas da Guarda Municipal. Os policiais jogaram bombas de gás lacrimogêneo, dispararam tiros com munição não-letal e partiram para cima dos manifestantes com seus cassetetes. Os relatos informam que sequer os jornalistas presentes foram poupados. Pelo menos três, que estavam devidamente identificados com seus crachás, foram agredidos: um fotógrafo do jornal Zero Hora, um repórter do Correio do Povo e um repórter da Rádio Guaíba. A lavagem de mãos é óbvia, afinal não foi ninguém da FIFA que mandou a polícia bater no povo para defender um boneco inflável. Et pourtant, se alguém usa de força desmesurada para defender os seus interesses, você é culpado sim. A mesma FIFA que se arroga o poder de proibir a venda de comida na rua em todo o centro de Salvador poderia usar da mesma arrogância para passar um pito no governo que a defendeu com sangue, no mínimo.
Não que tudo que os governos brasileiros façam com a desculpa da Copa do Mundo da FIFAtm seja realmente culpa dela. No Rio de Janeiro, Sérgio Cabral alega que a derrubada do antigo museu do índio, ao lado do Maracanã, é exigência da entidade, que nega. O edifício de 150 anos, que já foi sede do Serviço de Proteção ao Índio, do Rondon, e deixou de ser museu em 1978 quando o museu do índio foi transferido para Botafogo, foi ocupado por um grupo de índios de verdade, de todo o Brasil, que procuram fazer ali um centro cultural indígena. A idéia não foi considerada lucrativa pelo governo do estado, que prefere a área como estacionamento para o Maracanã - que o mesmo governo do estado já anunciou pretender privatizar, com um certo empresário dono de peruca como principal candidato a concessionário. Com shopping center associado, claro.
Não deixa de ser irônico: a FIFA, useira e vezeira em sacrificar a democracia ao lucro, está sendo usada como desculpa para que Sérgio Cabral venda um shopping center a Eike Batista, acobertando uma demolição e uma expulsão que, de outro modo, seriam impalatáveis politicamente. E é uma amostra da integração nacional, nos moldes desenvolvimentistas: índios no remoto Xingu são expulsos para gerar a energia necessária para iluminar o shopping center a ser criado aonde índios costumavam viver, na antiga capital federal.
(Sim, porque a energia de Belo Monte descerá por linhas DC para Furnas (MG) ou Tijuco (SP) diretamente. Não será gerada para a região Norte.)
Atualização: Assustado com a repercussão do causo, o governador da Bahia Jacques Wagner promete que não permitirá a proibição do Acarajé. A ver.
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