Num post anterior, comentei aqui sobre o megalomaníaco projeto do Instituto Hudson, think tank americano que pretendia criar um mar interior na Amazônia represando o rio-mar em Óbidos, transformando em um mediterrâneo cheio de lavouras e cidades o ermo (wasteland - nos anos 60 ainda estava em curso a transição pela qual a palavra passou de significar área não aproveitada pela humanidade, incluindo qualquer mato, para querer dizer área desolada, sem vida). Pois bem, é curioso como a proposta do atual governo brasileiro para a região, mutatis mutandis e sem a megalomania descomunal, parece cada vez mais ser a do Instituto Hudson. Com vernizes, evidentemente, já que declarar tal coisa a peito aberto não é muito popular hoje em dia.
Vejamos a última comunicação do governo sobre o setor de energia elétrica: a de que estão canceladas as usinas nucleares propostas, e a base da expansão será a energia hídrica. Não se trata exatamente de um terceiro excluído; mesmo com geração eólica bem maior do que a prevista pelo governo, um Brasil com crescimento médio que seja não poderia dispensar outras usinas de algum tipo, e principalmente aquelas, como a hidrelétrica e a nuclear, que funcionam na base - o tempo todo e previsivelmente. Eólicas têm um limite de confiabilidade, que funciona com outras usinas para suprir a defasagem quando o vento não sopra. E energia solar ainda é caríssima, e mesmo com todos os aumentos de eficiência do mundo, o Brasil ainda precisa de muito mais metrô, trem, computador, e todas essas coisas que consomem energia elétrica.
Face a essas duas alternativas impalatáveis, o governo optou (como tem optado sempre, em qualquer ocasião) pela usina hidrelétrica, apesar de deixar aberta a porteira para a termelétrica a carvão do amigo Eike Batista, a pior opção possível em termos ambientais. Mas não precisam se preocupar, serão Usinas Plataformas, similares à operação de plataformas de petróleo em alto mar, e por isso não causarão danos ao meio ambiente, ou só causarão danos mínimos! A alegação é no mínimo bizarra, por uma série de motivos:
1 - Plataformas, em que pese sua popularidade, estão longe de "não causarem danos ao meio ambiente." Causam, e muito, desde a fase de prospecção, em que animais são mortos pelas ondas de choque, passando pela perfuração, em que vaza fluido de broca e há risco de acidentes catastróficos, até a operação, em que manchas de óleo próximas são comuns.
2 - Se não há milhares de operários numa plataforma no meio do mar, é por dois motivos simples: o mar é péssimo para se morar, e ótimo para arrastar cargas pesadas sobre ele. Ninguém vai implantar um canteiro de obras no meio do oceano, e ninguém vai arrastar por terra uma barragem hidrelétrica construída - como o são as plataformas - num estaleiro urbano.
3 - A alegação de que "não haverá estradas permanentes" não faz sentido. O problema é a própria construção, e não a operação, e ninguém imagina que se levará operários e cimento de helicóptero. Falar de "novas tecnologias de manutenção" é outra baboseira; de novo, o problema é a construção, como pode ser abundantemente visto na hidrelétrica de Belo Monte.
4 - A alegação de que a área ao redor, desmatada durante a construção, será reflorestada e "rigidamente controlada" pela União é, no mínimo, curiosa. Ora, se a União conseguisse fazer cumprir as atuais leis (ainda não foi sancionado o código desflorestal), desmatamento não seria problema nenhum, nem violência, nem doenças, nem nada. Se não consegue agora, qual a credibilidade que tem em dizer que conseguiria em torno dessas usinas plataforma?
5 - Mesmo que as tais usinas funcionassem como alegado, com feéricos dirigíveis gigantes largando a barragem do céu, a interrupção no fluxo do rio - e portanto de tanto peixes quanto sedimentos - por um enorme muro de concreto tem efeitos ecológicos importantes. Se assemelha, é verdade, às plataformas no quesito "não dá pra ver na foto," o que imagino seja a maior preocupação... e olha que nem mencionei que, se a Dilma está preocupada, como alegou, com reservatório, essas usinas não vão ser, como Belo Monte, Jirau, e Santo Antônio, a fio d'água, mas criarão imensos lagos.
Ora, ninguém crê que Maurício Tolmasquin ou Dilma Rousseff sejam imbecis. Então por que estão vendendo um modelo de usina patentemente falso, e que vai, na verdade, intensificar o desmatamento e promover etnocídios? A resposta é óbvia: porque para eles, as mesmas ações tomam valor positivo, e se chamam integrar territórios e gentes à nação e à economia brasileiras, numa perpetuação dos ideais amazônicos da ditadura. Como o Instituto Hudson, que queria fazer great lakes brasileiros, o ideal deles é uma imensa Minnesotta, com umas florestinhas cênicas aqui e acolá sendo invadidas no verão pelos suburbanitas de Manaus e Porto Velho. Não é por nada que, neste momento, está no Congresso, além do código desflorestal, uma proposta de abrir territórios indígenas à mineração.
Atualização: o governo já está andando com as usinas do Tapajós. Que, lembrando, são mil vezes piores do que Belo Monte. Belo Monte, assim como as usinas do Madeira, está sendo construída numa área que já é parte do arco do desmatamento, já é largamente degradada, e aonde os conflitos da fronteira agrícola já são parte do cotidiano. As usinas do Tapajós vão levar essa realidade para áreas de floresta intocada.
Atualização 2: as empresas elétricas já encamparam de peito aberto a defesa dos reservatórios. Que, convenhamos, são mais lógicos mesmo; uma usina hídrica, com todos os seus impactos, só é superior a uma eólica por conta do reservatório. Usina hídrica a fio d'água, no mais das vezes, só dá lucro em condições amigas (governo participando do consórcio, dando o empréstimo, contratando a outra sócia como empreiteira, e pagando pela transmissão), como em Belo Monte. É o reservatório que permite à usina funcionar ao mesmo tempo como usina de carga-base e de reforço, evitando sobreoferta ou acionamento de térmicas (que é denunciado por jornais como "novela deixará eletricidade mais cara").
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