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23.5.12

O mulato inzoneiro

No confronto novamente ocorrido entre neopentecostais e advogados de direitos humanos para gays, lésbicas, bissexuais, e transgêneros*, é inescapável, pelo menos para qualquer pessoa honesta, a constatação de que um dos lados alega perseguição quando não tem tudo que quer, enquanto o outro é perseguido mesmo - alvo de violência cotidiana e mesmo números assustadores de assassinatos. Muito mais, aliás - por mais que as estatísticas não sejam muito confiáveis - do que na maioria dos países, e, curiosamente, principalmente muito mais do que em outros países em que a homofobia não é uma bandeira oficial.

Sim, porque, com todas as abdicações e mimos à bancada evangélica, o Brasil não é um país oficialmente homofóbico. Mais ainda: de jure, o Brasil está à frente da maioria dos países do mundo, e mesmo de muitos países do mundo "desenvolvido." As duas bandeiras principais de conquista em termos de lei, a criminalização da homofobia e o casamento, stricto sensu e como algo diferente da união civil estável, são algo que não se encontra em quase lugar algum, principalmente a primeira. Há união civil, há reconhecimento de parceiro para fins de tratamento de saúde, herança, e adoção, há cirurgias transgênero grátis... "De jure" ganha um significado adicional porque a maioria das conquistas foi obtida via judiciário ou executivo, e portanto é muito mais frágil do que uma conquista via legislativo, mas elas estão aí.

Nem parece, pelos usos que se vê na mídia da questão, que a sociedade brasileira seja, em geral, particularmente homofóbica. É radical e horrivelmente homofóbica, sim, mas não mais do que outras. O que explica, então, o índice de mortos por homofobia tão mais alto? Não é que os gays assassinados o tenham sido, como alegado pelos que tentam minimizar a questão, pela violência circuncidante: estou falando das mortes que podem ser atribuídas diretamente à homofobia.

Aqui vai uma tentativa de resposta, que sem pesquisa não pode ser chamada de hipótese: é que a sociedade brasileira é (talvez em parte por culpa da ditadura militar) caracterizada por um alto grau de legitimidade da violência. Não é apenas que a violência grasse, por conta de questões como tráfico de drogas, autoritarismo policial, ou quejandos, mas que ela seja considerada em geral legítima, e como parte de um movimento geral de radicalidade no tratamento de quem está errado (aos olhos de cada um, claro). Paradoxalmente, é a mesma atitude que faz com que ensejemos criminalizar o discurso homofóbico (como já é criminalizado, em tese, o discurso racista ou misógino); o brasileiro acha simples criminalizar, punir, prender e arrebentar o errado. A distância entre o discurso homofóbico e, digamos, a prática homofóbica (a morte, a tortura, a lâmpada na cara, a castração com anzóis, e outras delicadezas praticadas contra gays) é, aqui, mais curta do que na maioria dos países.

Juridicamente, a maior radicalidade dessa atitude está na facilidade com que se sugere que, para tal ou qual categoria de crimes, a suspensão de direitos básicos de qualquer cidadão, como não ser preso antes do julgamento. Assim, quando o STF, já não sem tempo, declara que a lei que torna tráfico inafiançável é inconstitucional, a mídia quase em peso reportou isso como "Supremo julga que mesmo traficantes presos em flagrante não poderão ser presos." Nem a lista de crimes inafiançáveis permite que se atribua o uso do dispositivo apenas aos reacionários: lá estão racismo, tráfico, não-pagamento de pensão, "Falsificação ou adulteração de produto para fins terapêutico ou medicinal"... a lista soa como a enciclopédia chinesa do Borges. O que permite isso: a facilidade com que se retira uma garantia básica, desde que o suspeito tenha feito (suspeitosamente) algo errado. A aprovação da violência contra os maus.

E por isso mesmo - voltando à homofobia - a radicalização de uma agenda antihomofóbica nas leis não vai ter resultados diretos tão expressivos assim em relação à violência homofóbica. Porque enquanto a homofobia for comum entre as forças da ordem, vai haver, de facto, um alto grau de tolerância em relação à homofobia violenta, mesmo que o discurso homofóbico seja criminalizado. E leis não são lá muito importantes na formação das noções brasileiras de certo e errado. Por outro lado, temos uma imprensa inteirinha, inclusive as TVs que são concessão estatal, todinha à direita da Fox News (a Folha é considerada moderada, e tem devotos de Ayn Rand como Pondé e Coutinho escrevendo no caderno de Cultura; todos os grandes órgãos de imprensa foram entusiastas da ditadura). E temos os pastores neopentecostais, pregando ódio e recolhendo o dízimo...

*era tão mais fácil chamar tudo de gay...

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