Responda rápido: qual a maior universidade do Brasil? USP, certo? Erradíssimo. As três maiores universidades do Brasil são privadas. Sob o Paulo Renato, se quis aumentar a porcentagem de graduados no Brasil (sem necessariamente aumentar a quantidade de gente com algum conhecimento) através da abertura de quantas universidades com fins lucrativos quisessem ser abertas, enquanto o sistema federal de universidades foi largado às moscas em alguns casos, literalmente. Quando eu era aluno de uma universidade federal, papel higiênico no banheiro não era algo que se pudesse simplesmente assumir que estaria disponível. Assim, o Brasil conseguiu aumentar um pouco sua porcentagem de bacharéis, e ao mesmo tempo chegou a uma situação insólita em que, ao contrário do entre metade e três quartos de egressos de escolas públicas, como em outros países (sim, inclusive os EUA), aqui apenas um quarto dos graduados sai de escolas públicas.
A boa notícia é que isso finalmente está mudando.
A USP era a sexta escola com mais matrículas presenciais; subiu para o quarto lugar. A UFRJ (federal do Rio) pulou do 14º para o 9º. Quatro das seis públicas que melhoraram são federais.
O ganho de posições de universidades públicas reflete os dados gerais do sistema universitário brasileiro. Enquanto a rede privada perdeu pouco mais de 40 mil matrículas em um ano, o sistema oficial ganhou 78 mil.
Dos 5 milhões de matrículas presenciais no país, só 25% (o que corresponde a 1,25 milhão) estão no sistema público. Atualmente, menos de 15% dos jovens cursam o ensino superior. A meta do governo é chegar a 30%.
Ainda falta muito, tanto em quantidade quanto em qualidade. Mas pelo menos não estamos mais andando para trás.
Auferre, trucidare, rapere, falsis nominibus imperium; atque, ubi solitudinem faciunt, pacem appellant.
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25.2.11
24.2.11
Crimes contra a humanidade
Neste momento, o Qadafi* e a família real do Bahrain estão utilizando armamento antiaéreo contra seu próprio povo. A conta já passa dos milhares de mortos na Líbia e das centenas no minúsculo Bahrain - nunca é demais lembrar, este é base da Quinta Frota americana, o que talvez tanto quanto o tamanho menor por que as maldades de seus governantes não recebem tanta atenção quanto as de Khadafi.* Mas um par de advogados alemães não se ilude, e sabe muito bem quem é o verdadeiro monstro de nossa era: Benedito XVI.
Eles levaram à Corte Internacional Criminal um dossiê de 16.500 páginas no qual alegam que
1) O papa é responsável pela preservação e liderança de um regime totalitário de coerção em escala mundial, que subjuga seus membros através de ameaças terríveis e danosas à saúde.
2) A Igreja é responsável por uma proibição fatal do uso de camisinhas, mesmo com o risco de AIDS.
3) A Igreja se apodera de seus membros através de um ritual compulsório praticado contra infantes que não podem resistir.
4) A coisa toda da pedofilia.
Sim, eles são malucos. Pra ser exato, malucos pertencentes a um culto nova era da vida. Mas o que é impressionante é que eles estão longe de serem os únicos a darem uma "esticadinha" no conceito de crime contra a humanidade. Muita gente tem usado o termo, inclusive, para denunciar o crime verdadeiro do item 4) e a prática antiética do item 2), acima. Ora, por mais que possamos achar condenável a condenação (com perdão do cacófato) da camisinha, não é crime. E por mais que acobertar pedófilos em larga escala seja, sim, crime, não é a mesma coisa que um crime contra a humanidade. Crime contra a humanidade é uma expressão que, basicamente, significa coisas como genocídio, limpeza étnica, campos de estupro...
Nos termos do Artigo 7º do Estatuto de Roma
1 - Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por «crime contra a Humanidade» qualquer um dos actos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
a) Homicídio;
b) Extermínio;
c) Escravidão;
d) Deportação ou transferência à força de uma população;
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais do direito internacional;
f) Tortura;
g) Violação, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez à força, esterilização à força ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
h) Perseguição de um grupo ou colectividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de sexo, tal como definido no n.º 3, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis em direito internacional, relacionados com qualquer acto referido neste número ou com qualquer crime da competência do Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas;
j) Crime de apartheid;
k) Outros actos desumanos de carácter semelhante que causem intencionalmente grande sofrimento, ferimentos graves ou afectem a saúde mental ou física.
2 - Para efeitos do n.º 1:
a) Por «ataque contra uma população civil» entende-se qualquer conduta que envolva a prática múltipla de actos referidos no n.º 1 contra uma população civil, de acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses actos ou tendo em vista a prossecução dessa política;
b) O «extermínio» compreende a sujeição intencional a condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição de uma parte da população;
c) Por «escravidão» entende-se o exercício, relativamente a uma pessoa, de um poder ou de um conjunto de poderes que traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa, incluindo o exercício desse poder no âmbito do tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças;
d) Por «deportação ou transferência à força de uma população» entende-se a deslocação coactiva de pessoas através da expulsão ou de outro acto coercivo, da zona em que se encontram legalmente, sem qualquer motivo reconhecido em direito internacional;
e) Por «tortura» entende-se o acto por meio do qual uma dor ou sofrimentos graves, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa que esteja sob a custódia ou o controlo do arguido; este termo não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes unicamente de sanções legais, inerentes a essas sanções ou por elas ocasionadas acidentalmente;
f) Por «gravidez à força» entende-se a privação de liberdade ilegal de uma mulher que foi engravidada à força, com o propósito de alterar a composição étnica de uma população ou de cometer outras violações graves do direito internacional. Esta definição não pode, de modo algum, ser interpretada como afectando as disposições de direito interno relativas à gravidez;
g) Por «perseguição» entende-se a privação intencional e grave de direitos fundamentais em violação do direito internacional por motivos relacionados com a identidade do grupo ou da colectividade em causa;
h) Por «crime de apartheid» entende-se qualquer acto desumano análogo aos referidos no n.º 1, praticado no contexto de um regime institucionalizado de opressão e domínio sistemático de um grupo rácico sobre um ou outros e com a intenção de manter esse regime;
i) Por «desaparecimento forçado de pessoas» entende-se a detenção, a prisão ou o sequestro de pessoas por um Estado ou uma organização política, ou com a autorização, o apoio ou a concordância destes, seguidos de recusa em reconhecer tal estado de privação de liberdade ou a prestar qualquer informação sobre a situação ou localização dessas pessoas, com o propósito de lhes negar a protecção da lei por um longo período de tempo.
3 - Para efeitos do presente Estatuto, entende-se que o termo «sexo» abrange os sexos masculino e feminino, dentro do contexto da sociedade, não lhe devendo ser atribuído qualquer outro significado.
*Este blog se reserva o direito de usar quantas grafias quiser para a latinização do nome do FDP.
Eles levaram à Corte Internacional Criminal um dossiê de 16.500 páginas no qual alegam que
1) O papa é responsável pela preservação e liderança de um regime totalitário de coerção em escala mundial, que subjuga seus membros através de ameaças terríveis e danosas à saúde.
2) A Igreja é responsável por uma proibição fatal do uso de camisinhas, mesmo com o risco de AIDS.
3) A Igreja se apodera de seus membros através de um ritual compulsório praticado contra infantes que não podem resistir.
4) A coisa toda da pedofilia.
Sim, eles são malucos. Pra ser exato, malucos pertencentes a um culto nova era da vida. Mas o que é impressionante é que eles estão longe de serem os únicos a darem uma "esticadinha" no conceito de crime contra a humanidade. Muita gente tem usado o termo, inclusive, para denunciar o crime verdadeiro do item 4) e a prática antiética do item 2), acima. Ora, por mais que possamos achar condenável a condenação (com perdão do cacófato) da camisinha, não é crime. E por mais que acobertar pedófilos em larga escala seja, sim, crime, não é a mesma coisa que um crime contra a humanidade. Crime contra a humanidade é uma expressão que, basicamente, significa coisas como genocídio, limpeza étnica, campos de estupro...
Nos termos do Artigo 7º do Estatuto de Roma
1 - Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por «crime contra a Humanidade» qualquer um dos actos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
a) Homicídio;
b) Extermínio;
c) Escravidão;
d) Deportação ou transferência à força de uma população;
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais do direito internacional;
f) Tortura;
g) Violação, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez à força, esterilização à força ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
h) Perseguição de um grupo ou colectividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de sexo, tal como definido no n.º 3, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis em direito internacional, relacionados com qualquer acto referido neste número ou com qualquer crime da competência do Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas;
j) Crime de apartheid;
k) Outros actos desumanos de carácter semelhante que causem intencionalmente grande sofrimento, ferimentos graves ou afectem a saúde mental ou física.
2 - Para efeitos do n.º 1:
a) Por «ataque contra uma população civil» entende-se qualquer conduta que envolva a prática múltipla de actos referidos no n.º 1 contra uma população civil, de acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses actos ou tendo em vista a prossecução dessa política;
b) O «extermínio» compreende a sujeição intencional a condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição de uma parte da população;
c) Por «escravidão» entende-se o exercício, relativamente a uma pessoa, de um poder ou de um conjunto de poderes que traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa, incluindo o exercício desse poder no âmbito do tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças;
d) Por «deportação ou transferência à força de uma população» entende-se a deslocação coactiva de pessoas através da expulsão ou de outro acto coercivo, da zona em que se encontram legalmente, sem qualquer motivo reconhecido em direito internacional;
e) Por «tortura» entende-se o acto por meio do qual uma dor ou sofrimentos graves, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa que esteja sob a custódia ou o controlo do arguido; este termo não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes unicamente de sanções legais, inerentes a essas sanções ou por elas ocasionadas acidentalmente;
f) Por «gravidez à força» entende-se a privação de liberdade ilegal de uma mulher que foi engravidada à força, com o propósito de alterar a composição étnica de uma população ou de cometer outras violações graves do direito internacional. Esta definição não pode, de modo algum, ser interpretada como afectando as disposições de direito interno relativas à gravidez;
g) Por «perseguição» entende-se a privação intencional e grave de direitos fundamentais em violação do direito internacional por motivos relacionados com a identidade do grupo ou da colectividade em causa;
h) Por «crime de apartheid» entende-se qualquer acto desumano análogo aos referidos no n.º 1, praticado no contexto de um regime institucionalizado de opressão e domínio sistemático de um grupo rácico sobre um ou outros e com a intenção de manter esse regime;
i) Por «desaparecimento forçado de pessoas» entende-se a detenção, a prisão ou o sequestro de pessoas por um Estado ou uma organização política, ou com a autorização, o apoio ou a concordância destes, seguidos de recusa em reconhecer tal estado de privação de liberdade ou a prestar qualquer informação sobre a situação ou localização dessas pessoas, com o propósito de lhes negar a protecção da lei por um longo período de tempo.
3 - Para efeitos do presente Estatuto, entende-se que o termo «sexo» abrange os sexos masculino e feminino, dentro do contexto da sociedade, não lhe devendo ser atribuído qualquer outro significado.
*Este blog se reserva o direito de usar quantas grafias quiser para a latinização do nome do FDP.
23.2.11
Comensalismo
Quando o Deep Blue ganhou pela primeira vez de Gary Kasparov no xadrez, isso foi noticiado no mundo inteiro; uma matéria no Babbage, coluna de ciência da Economist, fala sobre como o fato de um computador ganhar no Quem Quer Ser um Milionário é muito, muito mais significativo. A idéia parece contraintuitiva porque o xadrez é visto como uma disciplina intelectual mais avançada, mas se você parar para pensar isso é justamente porque o xadrez é mais adequado ao jeito de se pensar de um computador, portanto mais difícil para humanos. As damas, primas simplificadas do xadrez, já foram "resolvidas," isto é, a equação complexa representada pelas possibilidades de um jogo já foi completamente mapeada; o xadrez não está longe disso.
O Babbage - os jornalistas da Economist são anônimos até para as colunas, no outro extremo dos jornais brasileiros que até para matérias comuns têm nome do autor - conclui com uma nota meio filosófica-futurista, falando de que o fato de máquinas eventualmente ficarem realmente "mais inteligentes que nós" não vai levar à dominação das máquinas, e que ele pelo menos vai ficar muito feliz de poder ter um intelecto superior fazendo as coisas por ele. A idéia me remeteu imediatamente ao conto do Asimov "Galley Slave" (o título é um trocadilho - significa escravo condenado às galés, mas galley proof também quer dizer prova tipográfica, o "rascunho da impressora" de livros pré-digitais). No conto, um professor havia tentado convencer a justiça de que um robô-assistente houvera alterado, incorretamente e descumprindo ordens, seu livro antes deste ir pro prelo; o objetivo do professor ao montar a farsa seria desacreditar a própria idéia de robôs trabalhadores intelectuais. Ao ser desmascarado, o professor faz uma defesa bastante convincente da sua motivação: impedir que os seres humanos fossem relegados a uma vida de irrelevância, decidindo apenas o que os robôs iriam pesquisar. O discurso é rebatido pela protagonista, a robopsicóloga Susan Calvin, mas não de maneira muito convincente.
Em outras palavras, não é tanto o domínio de máquinas que nos escravizariam, como em um zilhão de ficções científicas anteriores, o que se tem a temer, mas a idéia de ser reduzido à insignificância por essas máquinas; se tornar um dono de escravos ou um parasita, se é que há diferença. O medo de uma situação ainda nascente expressado no conto é realizado talvez da forma mais completa na série da Cultura, de Iain M. Banks, que a princípio parece apenas uma utopia anarcocomunista onde todo mundo tem o corpo que quiser, nenhum preconceito, e faz sexo doze vezes por dia, com a ajuda de Mentes, inteligências artificiais bilhões de vezes mais inteligentes que nós e (comparadas ao ser humano) basicamente onipotentes; uma delas faz em segundos, para um sujeito que quer fazer um discurso após eles observarem o planeta Terra, uma cópia dum sabre de luz do guerra nas estrelas. Uma cópia funcional. Apesar de ser ele mesmo socialista por convicção, assim como o Asimov tecnofilíaco faz uma defesa eloquente do ludismo Banks, principalmente nos livros em que as tais Mentes são protagonistas, faz da sua uma utopia bem condicional e falha. E nele, mais uma vez, surge o tema da malaise existencial, frequentemente questionada, da irrelevância dos seres humanos frente às Mentes.
Claro que toda essa angst frente à ascensão da Máquina só faz sentido dentro de um esquema conceitual bastante específico, que deve ignorar ou rejeitar um punhado de coisas. Por exemplo, deve-se ter uma "consciência étnica" como espécie. Depois, deve-se pensar a partir dessa consciência étnica na inferioridade da humanidade como um todo, não do indivídio, já que individualmente a imensa maioria de nós já é irrelevante frente a entidades que podem não ser autoconscientes da maneira como concebemos, mas certamente atuam e "pensam," como estados, religiões, igrejas ou corporações. E deve-se rejeitar o transumanismo, já que existiria uma barreira entre nós e as máquinas, sem que nós mesmos pudéssemos virar as máquinas.
Curioso é que são essas as mesmas premissas necessárias para tornar plausível o conflito humano-mutante nas revistinhas da Marvel, mais a falta de nego se dar conta de que "os mutantes" que suplantariam a humanidade eventualmente são os próprios filhos deles, e não uma espécie alienígena.
O Babbage - os jornalistas da Economist são anônimos até para as colunas, no outro extremo dos jornais brasileiros que até para matérias comuns têm nome do autor - conclui com uma nota meio filosófica-futurista, falando de que o fato de máquinas eventualmente ficarem realmente "mais inteligentes que nós" não vai levar à dominação das máquinas, e que ele pelo menos vai ficar muito feliz de poder ter um intelecto superior fazendo as coisas por ele. A idéia me remeteu imediatamente ao conto do Asimov "Galley Slave" (o título é um trocadilho - significa escravo condenado às galés, mas galley proof também quer dizer prova tipográfica, o "rascunho da impressora" de livros pré-digitais). No conto, um professor havia tentado convencer a justiça de que um robô-assistente houvera alterado, incorretamente e descumprindo ordens, seu livro antes deste ir pro prelo; o objetivo do professor ao montar a farsa seria desacreditar a própria idéia de robôs trabalhadores intelectuais. Ao ser desmascarado, o professor faz uma defesa bastante convincente da sua motivação: impedir que os seres humanos fossem relegados a uma vida de irrelevância, decidindo apenas o que os robôs iriam pesquisar. O discurso é rebatido pela protagonista, a robopsicóloga Susan Calvin, mas não de maneira muito convincente.
Em outras palavras, não é tanto o domínio de máquinas que nos escravizariam, como em um zilhão de ficções científicas anteriores, o que se tem a temer, mas a idéia de ser reduzido à insignificância por essas máquinas; se tornar um dono de escravos ou um parasita, se é que há diferença. O medo de uma situação ainda nascente expressado no conto é realizado talvez da forma mais completa na série da Cultura, de Iain M. Banks, que a princípio parece apenas uma utopia anarcocomunista onde todo mundo tem o corpo que quiser, nenhum preconceito, e faz sexo doze vezes por dia, com a ajuda de Mentes, inteligências artificiais bilhões de vezes mais inteligentes que nós e (comparadas ao ser humano) basicamente onipotentes; uma delas faz em segundos, para um sujeito que quer fazer um discurso após eles observarem o planeta Terra, uma cópia dum sabre de luz do guerra nas estrelas. Uma cópia funcional. Apesar de ser ele mesmo socialista por convicção, assim como o Asimov tecnofilíaco faz uma defesa eloquente do ludismo Banks, principalmente nos livros em que as tais Mentes são protagonistas, faz da sua uma utopia bem condicional e falha. E nele, mais uma vez, surge o tema da malaise existencial, frequentemente questionada, da irrelevância dos seres humanos frente às Mentes.
Claro que toda essa angst frente à ascensão da Máquina só faz sentido dentro de um esquema conceitual bastante específico, que deve ignorar ou rejeitar um punhado de coisas. Por exemplo, deve-se ter uma "consciência étnica" como espécie. Depois, deve-se pensar a partir dessa consciência étnica na inferioridade da humanidade como um todo, não do indivídio, já que individualmente a imensa maioria de nós já é irrelevante frente a entidades que podem não ser autoconscientes da maneira como concebemos, mas certamente atuam e "pensam," como estados, religiões, igrejas ou corporações. E deve-se rejeitar o transumanismo, já que existiria uma barreira entre nós e as máquinas, sem que nós mesmos pudéssemos virar as máquinas.
Curioso é que são essas as mesmas premissas necessárias para tornar plausível o conflito humano-mutante nas revistinhas da Marvel, mais a falta de nego se dar conta de que "os mutantes" que suplantariam a humanidade eventualmente são os próprios filhos deles, e não uma espécie alienígena.
22.2.11
Imhotep
O nome Imhotep, fora do Egito e de uma audiência mais restrita de malucos pelo Egito antigo, tem mais chances do que não de evocar a Múmia do filme epônimo, em que milhares de pessoas zumbizadas repetiam ritmicamente IM HO TEP IM HO TEP. Mas Imhotep (pronuncia-se I-m-hotep) também foi alguém que talvez tenha existido, e foi um Leonardo da Vinci avant la lettre, aliás além até de Leonardo, já que foi (se é que existiu mesmo, o que até parece provável) o primeiro arquiteto, engenheiro, e médico de que se tem notícia. Por tudo isso, e por ter (alegadamente) inventado o papiro (não a planta, o material de escrita), Imhotep foi, após a morte, adorado como um Deus, privilégio que se estendeu a quase nenhum outro não-faraó.
A preocupação com a história tem sido uma constante no Egito desde então, perpassada pelas várias Bibliotecas de Alexandria que se sucederam desde que Ptolomeu Sóter mandou criar a primeira; a biblioteca foi destruída por Júlio César e de novo pelo imperador Aureliano, em ambos os casos conquistando um Egito governado por uma rainha (primeiro Cleópatra VII, depois Zenóbia). Não foi destruída pelo califa Omar, ao contrário da lenda, mas em algum momento entre sua reconstrução pós-Aureliano e o século V. Depois disso, os governantes subsequentes, dos fatímidas aos dias de hoje passando por Saladino e pelos paxás semi-independentes otomanos, sempre usaram e abusaram da história milenar do país; é até curioso em alguns casos, como quando se via califas e outros guardiães da fé orgulhosos de templos pagães.
Assim, tem um cheiro especial a luta, que agora tem chances de prosperar, pelo resgate da história recente do Egito, narrada nesta matéria da Al Jazeera
For decades now, in place of the critical history that only an open-ended public discussion can generate, Egyptians have been consuming cheap substitutes of pseudo-history created by official committee.
This was a history so simplistic that it positioned the omnipotent state as a singular historical player and the Egyptian public as mere foot soldiers in its service. A sense of Egyptian exceptionalism cut through much of the official and semi-official histories. Especially ubiquitous is the politically sterile mantra of a glorious 7,000 year old civilization. Can citizens demand their rights with such a triumphalist and uncritical history? Obviously not.
Some former Egyptian officials, the most famous of whom is Mohamed Hasanein Heikal, possess their own private state archive of stolen docuemnts. These individuals are free to tell whatever story they like. But can these privately-generated stories help Egyptians objectively know history and thus, claim their rights? Not likely.
Can they help maintain rights that have already been secured? Not likely either.
Claro que o Egito não é o único país no qual o (espera-se) fim de uma ditadura deixa uma herança espinhosa de arquivos que vão sendo escondidos, e às vezes queimados pouco a pouco (apesar de às vezes destruir tudo ser difícil. O Brasil, em particular, tem demonstrado menos disposição para lidar com os arquivos de sua ditadura do que qualquer outro país da América Latina, com a exceção do Chile (onde Pinochet, afinal, morreu senador). É apenas mais uma das maneiras em que nosso oficialato ganhou, de prêmio por torturar e matar tanta gente, um paraquedas dourado de fazer inveja a qualquer CEO de banco. Também tem, por exemplo, os apartamentos de graça na Zona Sul do Rio.
A preocupação com a história tem sido uma constante no Egito desde então, perpassada pelas várias Bibliotecas de Alexandria que se sucederam desde que Ptolomeu Sóter mandou criar a primeira; a biblioteca foi destruída por Júlio César e de novo pelo imperador Aureliano, em ambos os casos conquistando um Egito governado por uma rainha (primeiro Cleópatra VII, depois Zenóbia). Não foi destruída pelo califa Omar, ao contrário da lenda, mas em algum momento entre sua reconstrução pós-Aureliano e o século V. Depois disso, os governantes subsequentes, dos fatímidas aos dias de hoje passando por Saladino e pelos paxás semi-independentes otomanos, sempre usaram e abusaram da história milenar do país; é até curioso em alguns casos, como quando se via califas e outros guardiães da fé orgulhosos de templos pagães.
Assim, tem um cheiro especial a luta, que agora tem chances de prosperar, pelo resgate da história recente do Egito, narrada nesta matéria da Al Jazeera
For decades now, in place of the critical history that only an open-ended public discussion can generate, Egyptians have been consuming cheap substitutes of pseudo-history created by official committee.
This was a history so simplistic that it positioned the omnipotent state as a singular historical player and the Egyptian public as mere foot soldiers in its service. A sense of Egyptian exceptionalism cut through much of the official and semi-official histories. Especially ubiquitous is the politically sterile mantra of a glorious 7,000 year old civilization. Can citizens demand their rights with such a triumphalist and uncritical history? Obviously not.
Some former Egyptian officials, the most famous of whom is Mohamed Hasanein Heikal, possess their own private state archive of stolen docuemnts. These individuals are free to tell whatever story they like. But can these privately-generated stories help Egyptians objectively know history and thus, claim their rights? Not likely.
Can they help maintain rights that have already been secured? Not likely either.
Claro que o Egito não é o único país no qual o (espera-se) fim de uma ditadura deixa uma herança espinhosa de arquivos que vão sendo escondidos, e às vezes queimados pouco a pouco (apesar de às vezes destruir tudo ser difícil. O Brasil, em particular, tem demonstrado menos disposição para lidar com os arquivos de sua ditadura do que qualquer outro país da América Latina, com a exceção do Chile (onde Pinochet, afinal, morreu senador). É apenas mais uma das maneiras em que nosso oficialato ganhou, de prêmio por torturar e matar tanta gente, um paraquedas dourado de fazer inveja a qualquer CEO de banco. Também tem, por exemplo, os apartamentos de graça na Zona Sul do Rio.
21.2.11
Lugares estranhos do mundo XI - a cidade dos mortos
O nome parece tirado diretamente de um filme de aventura de terceira categoria. "Cidade dos Mortos." E como tal, sua localização no Egito parece um clichê. Afinal, os egípcios eram, e ainda devem ser, obcecados com a morte, certo?* Mas a Cidade dos Mortos cairota não tem nada a ver com algum tipo de adoração aos mortos, e muito mais com a falta de opções de moradia num país com densidade populacional altíssima (na wikipédia você verá 82 pessoas por Km2, o que é pouco - mas 90% do território do país é deserto, ou seja o número real está mais perto de 820) e crescimento populacional explosivo. O cemitério de el-Arafa é dos mais antigos e maiores do mundo, e já era famoso pelo tamanho e pelos mausoléus da nobreza cairota há séculos; no século XX, quando comunidades de baixa renda foram arrasadas para abrir bulevares, boa parte dos expulsos se mudou para os enormes mausoléus, que no Egito geralmente têm salas para que a família do morto viva durante o período de luto.
Nem toda a favela assim criada está dentro do cemitério propriamente dito; boa parte é uma favela plana mais comum. São mais de 200.000 habitantes (Mike Davis, em Planeta Favela, fala em mais de meio milhão, mas os números do livro são consistentemente exagerados) no total do complexo, dos quais talvez metade more em tumbas e mausoléus. O ambiente surreal, com pessoas formando uma fila de pão defronte a uma tumba elaboradamente decorada, perde um pouco da força para quem está acostumado a cemitérios católicos porque as convenções figurativas são diferentes, fazendo com que a "cara de morte" ou de cemitério, não seja tão forte, mas mesmo assim já surgiram os favela tours que levam turistas para ver, além da miséria, o insólito; o nome "cidade dos mortos" é mais invenção desses favela tours do que qualquer outra coisa, e no Cairo as pessoas chamam o conjunto de el-Arafa, ou simplesmente de "o cemitério."
Nem toda a favela assim criada está dentro do cemitério propriamente dito; boa parte é uma favela plana mais comum. São mais de 200.000 habitantes (Mike Davis, em Planeta Favela, fala em mais de meio milhão, mas os números do livro são consistentemente exagerados) no total do complexo, dos quais talvez metade more em tumbas e mausoléus. O ambiente surreal, com pessoas formando uma fila de pão defronte a uma tumba elaboradamente decorada, perde um pouco da força para quem está acostumado a cemitérios católicos porque as convenções figurativas são diferentes, fazendo com que a "cara de morte" ou de cemitério, não seja tão forte, mas mesmo assim já surgiram os favela tours que levam turistas para ver, além da miséria, o insólito; o nome "cidade dos mortos" é mais invenção desses favela tours do que qualquer outra coisa, e no Cairo as pessoas chamam o conjunto de el-Arafa, ou simplesmente de "o cemitério."
18.2.11
As palavras e as liberdades
Pelo menos estou em boa companhia. Semana retrasada, escrevi aqui que
Na Líbia e nas tiranias monárquicas do Golfo Pérsico, por outro lado, a ditadura barra pesadíssima está combinada com muito, muito dinheiro, graças ao petróleo. Assim, os tiranos podem simplesmente subornar o povo, em boa parte - e no Golfo, principalmente nos países menores mas em algum grau também na Arábia Saudita, boa parte da população pobre, mais disposta a se insatisfazer, pode simplesmente ser deportada sumariamente, já que não se trata de cidadãos, mas de trabalhadores do sul e sudeste asiáticos, com vistos temporários e precários e que já são, em muitos casos, confinados em guetos.
Não está explícita, mas implícita de forma bem clara a idéia de que "A Líbia e as monarquias do Golfo provavelmente não verão nada parecido com o que ocorreu na Tunísia e no Egito." A minha boa companhia é basicamente todo mundo, como pode ser visto por exemplo no sapatômetro criado pela Economist, que mantém-se utilizando-o orgulhosamente, mesmo depois de ver que a correlação dele com a próxima revolta tende a zero. O Sapatômetro discorda de mim quanto à Líbia, mas talvez isso seja só porque, afinal de contas, um déspota que não é apoiado pelo Ocidente mereça mais ser apeado de seu trono.
Tanto no Bahrain quanto na Líbia e na Argélia, a mensagem que os tiranos ouviram do Egito e da Tunísia, aparentemente, foi "Ben Ali e Mubarak caíram porque são uns frouxos." Assim, a polícia e o exército em todos os três países já dispararam contra os manifestantes; no Bahrain o rei até mandou fechar hospitais. Espero que não dê certo. Na Líbia, algumas cidades no leste do país já se subtraíram ao controle de Qadafi, imagino que após terem que enfrentar as guarda costas ninjas gostosas do ditador.
Uma possibilidade que imaginei para explicar a falência das bolsas de aposta sobre o próximo dominó é a questão da inteligibilidade. Parece razoável supor que um dos fatores na onda revolucionária que varre o mundo árabe é justamente a parte do "árabe," isto é a inteligibilidade mútua dos povos em revolta, combinada com a facilidade de comunicação moderna. Assim, um egípcio pode pedir dicas de como enfrentar o governo a um tunisiano, e por aí em diante. Ora, essa inteligibilidade mútua é relativa; o "árabe padrão moderno," baseado no árabe clássico e ensinado nas escolas, não é necessariamente inteligível facilmente para todo mundo que fale árabe; por mais que os índices de alfabetização nos países árabes variem de altos a muito altos, muita gente não se sente lá muito à vontade com essa língua culta. Com isso, o "índice de transmissão da revolta," baseado na inteligibilidade mútua dos dialetos árabes (línguas, na verdade) talvez deva ser somado às tentativas de índices como a da Economist.
E falando em línguas e palavras e na Revolução de Sidi Bouzid, este post quase foi chamado "Cheirinho de Jasmim." Mas aí é que me dei conta: "Jasmim" (a cor, não a flor) foi o nome dado às revoluções por parte da mídia ocidental, principalmente americana, situando-a num continuum com as revoluções de nomes coloridos na Ucrânia, Geórgia, e Irã. Um continuum que parece problemático, quando se lembra que as revoluções coloridas foram incentivadas e aplaudidas pelas potências ocidentais, já que seus alvos eram ditadores que não eram amiguinhos como Mubarak, Ben Ali, Bouteflika, ou os tiranetes do Golfo. Ou que políticos poderosos lideraram as revoluções coloridas, enquanto as revoluções de Sidi Bouzid foram movimentos populares espontâneos. Ou que as coloridas se deram em sistemas com um verniz, ainda que fino, de democracia, enquanto as árabes se deram em ditaduras nuas e cruas.
Ah sim: o "índice de transmissão de revolta" não se pretenderia, mesmo que fosse válido, explicar tudo. No Bahrain, a tensão entre a família reinante sunita e o povo xíita, mais aquela causada pelo paiseco sediar a Quinta Frota do Império, são explicações mais razoáveis. Aliás, será que Obama, caindo o rei, vai fingir que apoiou de forma comedida desde o princípio os revoltosos, como no Egito? O investimento representado pelo quartel-general da Quinta Frota não deve ser pouca coisa.
Na Líbia e nas tiranias monárquicas do Golfo Pérsico, por outro lado, a ditadura barra pesadíssima está combinada com muito, muito dinheiro, graças ao petróleo. Assim, os tiranos podem simplesmente subornar o povo, em boa parte - e no Golfo, principalmente nos países menores mas em algum grau também na Arábia Saudita, boa parte da população pobre, mais disposta a se insatisfazer, pode simplesmente ser deportada sumariamente, já que não se trata de cidadãos, mas de trabalhadores do sul e sudeste asiáticos, com vistos temporários e precários e que já são, em muitos casos, confinados em guetos.
Não está explícita, mas implícita de forma bem clara a idéia de que "A Líbia e as monarquias do Golfo provavelmente não verão nada parecido com o que ocorreu na Tunísia e no Egito." A minha boa companhia é basicamente todo mundo, como pode ser visto por exemplo no sapatômetro criado pela Economist, que mantém-se utilizando-o orgulhosamente, mesmo depois de ver que a correlação dele com a próxima revolta tende a zero. O Sapatômetro discorda de mim quanto à Líbia, mas talvez isso seja só porque, afinal de contas, um déspota que não é apoiado pelo Ocidente mereça mais ser apeado de seu trono.
Tanto no Bahrain quanto na Líbia e na Argélia, a mensagem que os tiranos ouviram do Egito e da Tunísia, aparentemente, foi "Ben Ali e Mubarak caíram porque são uns frouxos." Assim, a polícia e o exército em todos os três países já dispararam contra os manifestantes; no Bahrain o rei até mandou fechar hospitais. Espero que não dê certo. Na Líbia, algumas cidades no leste do país já se subtraíram ao controle de Qadafi, imagino que após terem que enfrentar as guarda costas ninjas gostosas do ditador.
Uma possibilidade que imaginei para explicar a falência das bolsas de aposta sobre o próximo dominó é a questão da inteligibilidade. Parece razoável supor que um dos fatores na onda revolucionária que varre o mundo árabe é justamente a parte do "árabe," isto é a inteligibilidade mútua dos povos em revolta, combinada com a facilidade de comunicação moderna. Assim, um egípcio pode pedir dicas de como enfrentar o governo a um tunisiano, e por aí em diante. Ora, essa inteligibilidade mútua é relativa; o "árabe padrão moderno," baseado no árabe clássico e ensinado nas escolas, não é necessariamente inteligível facilmente para todo mundo que fale árabe; por mais que os índices de alfabetização nos países árabes variem de altos a muito altos, muita gente não se sente lá muito à vontade com essa língua culta. Com isso, o "índice de transmissão da revolta," baseado na inteligibilidade mútua dos dialetos árabes (línguas, na verdade) talvez deva ser somado às tentativas de índices como a da Economist.
E falando em línguas e palavras e na Revolução de Sidi Bouzid, este post quase foi chamado "Cheirinho de Jasmim." Mas aí é que me dei conta: "Jasmim" (a cor, não a flor) foi o nome dado às revoluções por parte da mídia ocidental, principalmente americana, situando-a num continuum com as revoluções de nomes coloridos na Ucrânia, Geórgia, e Irã. Um continuum que parece problemático, quando se lembra que as revoluções coloridas foram incentivadas e aplaudidas pelas potências ocidentais, já que seus alvos eram ditadores que não eram amiguinhos como Mubarak, Ben Ali, Bouteflika, ou os tiranetes do Golfo. Ou que políticos poderosos lideraram as revoluções coloridas, enquanto as revoluções de Sidi Bouzid foram movimentos populares espontâneos. Ou que as coloridas se deram em sistemas com um verniz, ainda que fino, de democracia, enquanto as árabes se deram em ditaduras nuas e cruas.
Ah sim: o "índice de transmissão de revolta" não se pretenderia, mesmo que fosse válido, explicar tudo. No Bahrain, a tensão entre a família reinante sunita e o povo xíita, mais aquela causada pelo paiseco sediar a Quinta Frota do Império, são explicações mais razoáveis. Aliás, será que Obama, caindo o rei, vai fingir que apoiou de forma comedida desde o princípio os revoltosos, como no Egito? O investimento representado pelo quartel-general da Quinta Frota não deve ser pouca coisa.
17.2.11
Balada do antigo marinheiro
A usina de Belo Monte, cuja viabilidade econômica é questionável pela combinação de localização remota e disponibilidade de energia irregular, é um problemão ambiental que já derrubou ministra e chefe do Ibama. A atração dos 11.000 MW de energia elétrica, prometendo resolver de uma vez o problema de dez usinas menores, parece ser muito forte sobre o governo - fico pensando se ficaria menor caso se usasse o conceito de energia comprável na ponta Araraquara, de 2.400 a 7.000. A inviabilidade de Belo Monte seguindo as regras normais para a construção de usinas, ao invés de constadada fazer com que se desista da idéia, tem alterado as regras, fazendo da usina uma exceção gigante e mal explicada. Ou melhor, cuja explicação é sempre o terceiro excluído do "você quer ficar sem energia elétrica"?
Pelo menos, até agora, as exceções haviam sido pontuais, feitas através da desconsideração das regras para este empreendimento específico. Dilma, legalista, pelo visto prefere fazer as coisas da maneira certa. E é assim que, para viabilizar os megalinhões ligando Belo Monte e outras usinas amazônicas a São Paulo, vão mudar as regras para licenciamento ambiental de linhas de transmissão.
A idéia veio num momento infeliz em que o ministério do meio ambiente tenta barrar a malfadada proposta de código ambiental do Aldo Rebelo, que tem apoiadores tanto na base do governo quanto na oposição, e contempla absurdos como liberar o desmatamento em cumes de morro e a cinco metros de nascentes, ou anistiar todo o desmatamento ocorrido até sua promulgação, mais uma "moratória sem punição" de cinco anos, durante os quais os ruralistas bonzinhos se comprometeriam a não desmatar, mas não seriam punidos se desmatassem. Cada vez mais, Belo Monte vai se mostrando mais albatroz no pescoço do que solução técnica.
Outro caso de flagrante contradição entre intenções verdes e desenvolvimentos na economia é o do estado do Rio de Janeiro. Conhecido inclusive fora do Brasil pelas belezas naturais, o estado acaba de anunciar a criação de uma secretaria da economia verde. Pensando-se no turismo que ocupa a orla do estado da fronteira sul até Cabo Frio, mais a região serrana, e na posição ocupada pelo Rio na geração de conhecimento no Brasil, faz todo o sentido, certo? A questão é que o Rio de Janeiro é também o estado no qual a indústria pesada, extremamente poluente, está em expansão mais acelerada. O total de investimentos em indústria pesada no estado confirmados é mais do que o dobro de São Paulo, Maranhão ou Ceará, (estes graças às grandes refinarias anunciadas pela Petrobrás), sendo que o território fluminense é uma fração da área dos outros três estados, e ao contrário do Maranhão e Ceará o Rio já tem uma indústria pesada bastante densa.
A frase "entre um cerradinho e a soja, Lula é a soja" proferida por um ruralista (portanto insuspeito), ficou infame. E entre a indústria pesada e a mata atlântica, a restinga, cerrado, ou amazônia, o que será que Dilma e Cabral preferem? Pior que acho que sei a resposta.
Pelo menos, até agora, as exceções haviam sido pontuais, feitas através da desconsideração das regras para este empreendimento específico. Dilma, legalista, pelo visto prefere fazer as coisas da maneira certa. E é assim que, para viabilizar os megalinhões ligando Belo Monte e outras usinas amazônicas a São Paulo, vão mudar as regras para licenciamento ambiental de linhas de transmissão.
A idéia veio num momento infeliz em que o ministério do meio ambiente tenta barrar a malfadada proposta de código ambiental do Aldo Rebelo, que tem apoiadores tanto na base do governo quanto na oposição, e contempla absurdos como liberar o desmatamento em cumes de morro e a cinco metros de nascentes, ou anistiar todo o desmatamento ocorrido até sua promulgação, mais uma "moratória sem punição" de cinco anos, durante os quais os ruralistas bonzinhos se comprometeriam a não desmatar, mas não seriam punidos se desmatassem. Cada vez mais, Belo Monte vai se mostrando mais albatroz no pescoço do que solução técnica.
Outro caso de flagrante contradição entre intenções verdes e desenvolvimentos na economia é o do estado do Rio de Janeiro. Conhecido inclusive fora do Brasil pelas belezas naturais, o estado acaba de anunciar a criação de uma secretaria da economia verde. Pensando-se no turismo que ocupa a orla do estado da fronteira sul até Cabo Frio, mais a região serrana, e na posição ocupada pelo Rio na geração de conhecimento no Brasil, faz todo o sentido, certo? A questão é que o Rio de Janeiro é também o estado no qual a indústria pesada, extremamente poluente, está em expansão mais acelerada. O total de investimentos em indústria pesada no estado confirmados é mais do que o dobro de São Paulo, Maranhão ou Ceará, (estes graças às grandes refinarias anunciadas pela Petrobrás), sendo que o território fluminense é uma fração da área dos outros três estados, e ao contrário do Maranhão e Ceará o Rio já tem uma indústria pesada bastante densa.
A frase "entre um cerradinho e a soja, Lula é a soja" proferida por um ruralista (portanto insuspeito), ficou infame. E entre a indústria pesada e a mata atlântica, a restinga, cerrado, ou amazônia, o que será que Dilma e Cabral preferem? Pior que acho que sei a resposta.
16.2.11
No dogs or Chinamen allowed
A última moda parece ser denunciar "essas pessoas." Já comentei aqui sobre como David Cameron ganhou elogios da extrema-direita por falar da "falência do estado multicultural"; agora é Sarkozy que fala da pobre cultura dominante oprimida. Evidentemente, como é francês e não inglês, a fala tem uma pretensão pseudo-intelectual maior e uma preocupação com "as pessoas reais" menor, mas imagino que deva ter agradado igualmente à extrema-direita racista.
A idéia, evidentemente, é de uma imbecilidade, ou antes de uma falsa ingenuidade, atroz. O "multiculturalismo" que teria dominado o governo e o pensamento na França e na Grã-Bretanha não passa de um movimento, longe de ser consenso, que tenta diminuir o grau de preconceito sofrido por minorias. Sarkozy e Cameron não estão reclamando de um mundo dominado pelas minorias, como querem fazer crer, mas de um mundo em que é um pouco menos difícil ser uma minoria, em que o privilégio é um pouco menos forte.
O assustador é que essa readequação do discurso contra as minorias, que se utiliza de uma retórica pretensamente neutra para defender, na prática, o preconceito, tenha sido adotada de maneira tão entusiasmada pela direita tradicional. Em que pese a Margareth Thatcher ter pensado em abrir campos de concentração para homossexuais como resposta à epidemia de AIDS, a direita tradicional havia se distanciado, desde o pós-guerra, do preconceito étnico explícito, a tal ponto que, depois do anti-semitismo, este foi praticamente banido do discurso decente. Agora, temos os governantes de dois países em que imigrantes representam mais de 10% da população dando apoio, com suas palavras, a burocratas que humilhem quem não se expressa bem em francês ou inglês, ou a taxistas que se recusem a atender gente vestida de maneira étnica, ou a professores que façam troça dos costumes da família de seus alunos. Porque, como o "politicamente correto" significa "não xingue e humilhe" aplicado às pessoas, o "multiculturalismo de estado" denunciado por Call-me-Dave e pelo Schtroumphissimo é "não prejudique e humilhe" aplicado ao Estado. (Não que haja, de verdade, uma ideologia do "multiculturalismo de estado.")
Há quem diga que essa guinada de volta ao preconceito da direita tradicional, que se desejava apenas tradicionalista, "dura," e economicamente liberal, tenha muito a ver com o surgimento de órgãos de mídia de direita cada vez mais alucinados como a nova face da "extrema" direita, deslocando o ponto onde a "não extrema" direita deveria se situar. É um papel que skinheads neonazis* não podem cumprir, já que o skinhead neonazi, apesar de falar em prol de uma diferença que faz parte do sistema sociopolítico, está ele mesmo na margem desse sistema; ou, para ser curto e grosso, Hitler mandaria todos esses arruaceiros indisciplinados e maltrapilhos pra câmera de gás. A Fox News ou a Veja, por outro lado, não se invocam como extremos, mas pelo contrário: suas visões extremas são apresentadas como simples senso comum.
Claro que essa explicação falha porque justamente na Europa o órgão de mídia conservador que surgiu ou se tornou radical é um fenômeno basicamente dirigido às classes médias e baixas, ao contrário do Brasil e dos Estados Unidos. Pode ser só uma questão - uma revolução de jasmim às avessas - dos líderes europeus aproveitando a idéia uns dos outros.
PS Fora o racismo nojento e atroz, o artigo de Debbie Schlussel peca por ignorar que, bem, tem alguém no Egito que está cometendo violência, principalmente contra jornalistas, há algumas semanas, e esse alguém não são o povo egípcio em geral, muito menos aqueles que protestaram contra Mubarak.
*Os termos, só pra lembrar, não são sinônimos. Afinal, a cultura skinhead nasce entre jamaicanos.
A idéia, evidentemente, é de uma imbecilidade, ou antes de uma falsa ingenuidade, atroz. O "multiculturalismo" que teria dominado o governo e o pensamento na França e na Grã-Bretanha não passa de um movimento, longe de ser consenso, que tenta diminuir o grau de preconceito sofrido por minorias. Sarkozy e Cameron não estão reclamando de um mundo dominado pelas minorias, como querem fazer crer, mas de um mundo em que é um pouco menos difícil ser uma minoria, em que o privilégio é um pouco menos forte.
O assustador é que essa readequação do discurso contra as minorias, que se utiliza de uma retórica pretensamente neutra para defender, na prática, o preconceito, tenha sido adotada de maneira tão entusiasmada pela direita tradicional. Em que pese a Margareth Thatcher ter pensado em abrir campos de concentração para homossexuais como resposta à epidemia de AIDS, a direita tradicional havia se distanciado, desde o pós-guerra, do preconceito étnico explícito, a tal ponto que, depois do anti-semitismo, este foi praticamente banido do discurso decente. Agora, temos os governantes de dois países em que imigrantes representam mais de 10% da população dando apoio, com suas palavras, a burocratas que humilhem quem não se expressa bem em francês ou inglês, ou a taxistas que se recusem a atender gente vestida de maneira étnica, ou a professores que façam troça dos costumes da família de seus alunos. Porque, como o "politicamente correto" significa "não xingue e humilhe" aplicado às pessoas, o "multiculturalismo de estado" denunciado por Call-me-Dave e pelo Schtroumphissimo é "não prejudique e humilhe" aplicado ao Estado. (Não que haja, de verdade, uma ideologia do "multiculturalismo de estado.")
Há quem diga que essa guinada de volta ao preconceito da direita tradicional, que se desejava apenas tradicionalista, "dura," e economicamente liberal, tenha muito a ver com o surgimento de órgãos de mídia de direita cada vez mais alucinados como a nova face da "extrema" direita, deslocando o ponto onde a "não extrema" direita deveria se situar. É um papel que skinheads neonazis* não podem cumprir, já que o skinhead neonazi, apesar de falar em prol de uma diferença que faz parte do sistema sociopolítico, está ele mesmo na margem desse sistema; ou, para ser curto e grosso, Hitler mandaria todos esses arruaceiros indisciplinados e maltrapilhos pra câmera de gás. A Fox News ou a Veja, por outro lado, não se invocam como extremos, mas pelo contrário: suas visões extremas são apresentadas como simples senso comum.
Claro que essa explicação falha porque justamente na Europa o órgão de mídia conservador que surgiu ou se tornou radical é um fenômeno basicamente dirigido às classes médias e baixas, ao contrário do Brasil e dos Estados Unidos. Pode ser só uma questão - uma revolução de jasmim às avessas - dos líderes europeus aproveitando a idéia uns dos outros.
PS Fora o racismo nojento e atroz, o artigo de Debbie Schlussel peca por ignorar que, bem, tem alguém no Egito que está cometendo violência, principalmente contra jornalistas, há algumas semanas, e esse alguém não são o povo egípcio em geral, muito menos aqueles que protestaram contra Mubarak.
*Os termos, só pra lembrar, não são sinônimos. Afinal, a cultura skinhead nasce entre jamaicanos.
15.2.11
Campos de concentração inseguros
Uma das coisas em que reparei ao me mudar do Rio de Janeiro para São Paulo foi que, se a paranóia sentida pela classe média nas ruas por aqui é menor, a paranóia em casa é muito maior. Curiosamente, tanto cariocas quanto paulistas de classe média "sabem" que andar nas ruas por aqui é mais seguro, o que estatisticamente é o contrário da realidade, se forem vistas estatísticas de assaltos a transeuntes em bairros de classe média. Agora, uma pesquisa feita pela PM do Paraná vem depor contra outro senso comum da classe média, principalmente a paulistana, que tenta se proteger das hordas famélicas com muros e grades. A pesquisa relata que assaltantes preferem casas com essas medidas de proteção, especialmente aquelas com muros altos que conferem a eles privacidade.
A versão de luxo disso, claro, é o condomínio fechado, seja ele vertical ou horizontal, com seguranças na porta. Ora, há muito que já se sabe que em mais da metade dos assaltos a condomínios há provas cabais do envolvimento de seguranças. Ou seja, mais uma vez, a sensação de segurança é comprada ao custo da segurança verdadeira. Sem nem falar no empobrecimento urbano que é transformar a cidade inteira num habitat natural para SS-Totenkopverbande; um prédio aqui perto combina concertina e cerca elétrica por cima de um muro de uns três metros e meio - pela lógica, já deve ter sido assaltado umas cinco vezes...
A versão de luxo disso, claro, é o condomínio fechado, seja ele vertical ou horizontal, com seguranças na porta. Ora, há muito que já se sabe que em mais da metade dos assaltos a condomínios há provas cabais do envolvimento de seguranças. Ou seja, mais uma vez, a sensação de segurança é comprada ao custo da segurança verdadeira. Sem nem falar no empobrecimento urbano que é transformar a cidade inteira num habitat natural para SS-Totenkopverbande; um prédio aqui perto combina concertina e cerca elétrica por cima de um muro de uns três metros e meio - pela lógica, já deve ter sido assaltado umas cinco vezes...
14.2.11
A ameaça islâmica
O establishment europeu e americano mantém seu pé atrás em relação as revoluções pela democracia que se espalham pelo mundo árabe, por temer o espectro do "fundamentalismo islãmico." O tal fundamentalismo islâmico é muito pior do que outros fundamentalismos, como o cristão, o budista, ou o de mercado, porque, como todos sabemos, o fundamentalistas islâmicos são todos terroristas, e se terroristas não são todos fundamentalistas muçulmanos - antigamente o termo era "xiíta," mas depois da Al-Qaida sunita derrubar as torres gêmeas virou muçulmanos em geral - a chance de serem, pelo menos, é muito boa.
O quanto de simples e puro preconceito reside nesse senso comum pode ser conferido ao se olhar os dados do relatório da Europol sobre a situação e tendências do terrorismo nos países da União Européia. Nele, vemos que houve 294 ataques terroristas na UE ao longo do ano de 2009, contando tanto os que fracassaram de maduro quanto os impedidos pelas autoridades quanto aqueles que lograram sucesso. Desse total, quantos foram motivados pelo fundamentalismo islâmico? Cem? Duzentos? Pelo menos cinquentinha, certo?
Um.
Um único, de duzentos e noventa e quatro. A se julgar pelo número de ataques terroristas na Europa, faria mais sentido se preocupar com a possibilidade de haver esquerdistas numa eventual democracia egípcia ou tunisiana do que com a Irmandade Islâmica, já que foram quarenta ataques de terroristas de esquerda. OK, acredito que, devido ao jeito como funciona o sistema internacional econômico e político, até muita gente de partidos de esquerda europeus, particularmente os de centro-esquerda, não deve gostar muito da idéia de governos árabes de esquerda. Por outro lado, nem sequer a Veja alertou para o perigo da esquerda chegar ao poder no mundo árabe.
A imensa maioria dos atentados terroristas registrados na Europa foi obra de movimentos separatistas, e os trocados de grupos de extrema direita e "não especificados." A situação em relação ao número de pessoas presas relacionadas ao terrorismo muda a figura, já que foram 110 conectados com o islamismo, contra um total de 587. Em boa parte, essa situação tem provavelmente a ver mais com o racismo e bodes expiatórios do que qualquer outra coisa, haja vista a desproporção entre atentados realmente tentados e número de suspeitos presos. Mas vamos lá, vamos fingir que o "islamismo militante" seja mesmo responsável por 110/587 do terrorismo na Europa. Nesse caso, ele seria responsável por apenas o dobro do risco do binômio direita/esquerda (51 suspeitos presos). E ainda muito inferior ao nacionalismo, com 413.
A numerologia acima emplastra diferentes contextos e reduz todos. Não é séria. Mas a escala do quanto os números da Europol divergem do senso comum aponta para o ridículo desse senso comum. Pode muito bem ser, sem sombra de dúvida, que os países árabes, uma vez libertos dos ditadores cevados pelo Ocidente, sejam dominados por islamistas (dos quais eu, pessoalmente, não gosto nem um pouco); o que não faz nenhum sentido é supor que isso represente algum perigo para o Ocidente. Quanto aos problemas representados pelos islamistas no quesito direitos humanos, acho que o grande filósofo Tiririca, com sua máxima "pior que tá não fica," resume tudo.
O quanto de simples e puro preconceito reside nesse senso comum pode ser conferido ao se olhar os dados do relatório da Europol sobre a situação e tendências do terrorismo nos países da União Européia. Nele, vemos que houve 294 ataques terroristas na UE ao longo do ano de 2009, contando tanto os que fracassaram de maduro quanto os impedidos pelas autoridades quanto aqueles que lograram sucesso. Desse total, quantos foram motivados pelo fundamentalismo islâmico? Cem? Duzentos? Pelo menos cinquentinha, certo?
Um.
Um único, de duzentos e noventa e quatro. A se julgar pelo número de ataques terroristas na Europa, faria mais sentido se preocupar com a possibilidade de haver esquerdistas numa eventual democracia egípcia ou tunisiana do que com a Irmandade Islâmica, já que foram quarenta ataques de terroristas de esquerda. OK, acredito que, devido ao jeito como funciona o sistema internacional econômico e político, até muita gente de partidos de esquerda europeus, particularmente os de centro-esquerda, não deve gostar muito da idéia de governos árabes de esquerda. Por outro lado, nem sequer a Veja alertou para o perigo da esquerda chegar ao poder no mundo árabe.
A imensa maioria dos atentados terroristas registrados na Europa foi obra de movimentos separatistas, e os trocados de grupos de extrema direita e "não especificados." A situação em relação ao número de pessoas presas relacionadas ao terrorismo muda a figura, já que foram 110 conectados com o islamismo, contra um total de 587. Em boa parte, essa situação tem provavelmente a ver mais com o racismo e bodes expiatórios do que qualquer outra coisa, haja vista a desproporção entre atentados realmente tentados e número de suspeitos presos. Mas vamos lá, vamos fingir que o "islamismo militante" seja mesmo responsável por 110/587 do terrorismo na Europa. Nesse caso, ele seria responsável por apenas o dobro do risco do binômio direita/esquerda (51 suspeitos presos). E ainda muito inferior ao nacionalismo, com 413.
A numerologia acima emplastra diferentes contextos e reduz todos. Não é séria. Mas a escala do quanto os números da Europol divergem do senso comum aponta para o ridículo desse senso comum. Pode muito bem ser, sem sombra de dúvida, que os países árabes, uma vez libertos dos ditadores cevados pelo Ocidente, sejam dominados por islamistas (dos quais eu, pessoalmente, não gosto nem um pouco); o que não faz nenhum sentido é supor que isso represente algum perigo para o Ocidente. Quanto aos problemas representados pelos islamistas no quesito direitos humanos, acho que o grande filósofo Tiririca, com sua máxima "pior que tá não fica," resume tudo.
11.2.11
I, too, am Larry Summers
Digo, Spartacus. O Brasil Grande tem motivos para se orgulhar da redução do desmatamento ocorrida na década de 2000. Apesar de ainda estar entre os piores do mundo na média da década, , a taxa de desmatamento atual, mesmo com o pequeno repique havido este ano, é de menos da metade dessa média, além de menos de um quinto da taxa pré-Marina e Minc. Isso inclusive faz com que as emissões de gases de efeito estufa brasileiras, que sempre tiveram no desmatamento seu principal culpado, tenham se reduzido consideravelmente apesar do aumento na produção industrial, e torna enigmático por que diabos o Brasil se alinha, nas discussões sobre o efeito estufa, aos países poluidores. Deveria se alinhar aos verdes mais raivosos, já que tem credenciais para isso. (Repare aliás, na tabela acima linkada, a proporção de floresta remanescente.) Mesmo as taxas de desmatamento do Cerrado já passaram de absurdas a apenas horríveis.
Ou melhor, o Brasil é essa cocada toda dentro de suas fronteiras. Discutir atuação externa do Brasil, para além de histerias anti-ONU (de parte da esquerda) ou anti-Irã (por parte da grande mídia), nunca foi lá muito o forte do Brasil, até porque historicamente o país é relativamente isolado. A corrente de comércio representa parcela relativamente pequena do PIB; não há interesses significativos brasileiros fora das fronteiras (ou não havia, antes da Bolívia). E a relação privilegiada do Brasil, até por preconceito, sempre foi com o mundo rico, pelo que os impactos de qualquer negociação são antes os internos do que os externos. Ninguém se preocupa muito, afinal, com como a política externa brasileira afetará a França ou os EUA.
Mas o novo Brasil Grande é espaçoso, e tem com Lula ultrapassado as fronteiras nacionais. Se parte dessa atividade é inegavelmente boa (fábricas de remédios na África), outra parte, mesmo ignorando as histerias acima mencionadas, é bem mais questionável. Para muita gente, assim como as Américas já foram consideradas o quintal dos Estados Unidos, a América do Sul seria o quintal natural do Brasil. E nem isso é um movimento primariamente ideológico - pelo contrário, empresas brasileiras estão neste momento explorando ou com projetos de explorar os rios do Peru, o gás da Bolívia, os cerrados da Bolívia e do Paraguai, e até a Gran Sabana venezuelana, que é dos lugares mais remotos ainda existentes no mundo.
Em boa parte desses empreendimentos brasileiros na América do Sul, a motivação explícita é a dificuldade em concretizar empreendimentos semelhantes no Brasil, devido à legislação e ao ativismo ambientalistas. Assim, de certa forma, estamos fazendo com nossos vizinhos o mesmo que Europa, Japão, e EUA querem fazer conosco, isso é empurrar os custos ambientais e sociais da base da cadeia produtiva para lugares menos poderosos. Não é exatamente algo de que se orgulhar, para dizer o mínimo. Além disso, o explícito antagonismo entre as vantagens a se concentrarem no consumidor (e talvez nos governos nacionais) e as desvantagens locais significa enredar o Brasil numa rede de relacionamentos desiguais, e muitas vezes violentos. O Brasil não invadiu nem pressionou a Bolívia, quando esta nacionalizou seu petróleo, por decisão pessoal do Lula, e houve uma considerável pressão política nesse sentido. Só que nem sempre vai haver Lulas no palácio do planalto, e realidades de interesse e poder têm esse mau hábito de se imporem às melhores intenções.
Ou melhor, o Brasil é essa cocada toda dentro de suas fronteiras. Discutir atuação externa do Brasil, para além de histerias anti-ONU (de parte da esquerda) ou anti-Irã (por parte da grande mídia), nunca foi lá muito o forte do Brasil, até porque historicamente o país é relativamente isolado. A corrente de comércio representa parcela relativamente pequena do PIB; não há interesses significativos brasileiros fora das fronteiras (ou não havia, antes da Bolívia). E a relação privilegiada do Brasil, até por preconceito, sempre foi com o mundo rico, pelo que os impactos de qualquer negociação são antes os internos do que os externos. Ninguém se preocupa muito, afinal, com como a política externa brasileira afetará a França ou os EUA.
Mas o novo Brasil Grande é espaçoso, e tem com Lula ultrapassado as fronteiras nacionais. Se parte dessa atividade é inegavelmente boa (fábricas de remédios na África), outra parte, mesmo ignorando as histerias acima mencionadas, é bem mais questionável. Para muita gente, assim como as Américas já foram consideradas o quintal dos Estados Unidos, a América do Sul seria o quintal natural do Brasil. E nem isso é um movimento primariamente ideológico - pelo contrário, empresas brasileiras estão neste momento explorando ou com projetos de explorar os rios do Peru, o gás da Bolívia, os cerrados da Bolívia e do Paraguai, e até a Gran Sabana venezuelana, que é dos lugares mais remotos ainda existentes no mundo.
Em boa parte desses empreendimentos brasileiros na América do Sul, a motivação explícita é a dificuldade em concretizar empreendimentos semelhantes no Brasil, devido à legislação e ao ativismo ambientalistas. Assim, de certa forma, estamos fazendo com nossos vizinhos o mesmo que Europa, Japão, e EUA querem fazer conosco, isso é empurrar os custos ambientais e sociais da base da cadeia produtiva para lugares menos poderosos. Não é exatamente algo de que se orgulhar, para dizer o mínimo. Além disso, o explícito antagonismo entre as vantagens a se concentrarem no consumidor (e talvez nos governos nacionais) e as desvantagens locais significa enredar o Brasil numa rede de relacionamentos desiguais, e muitas vezes violentos. O Brasil não invadiu nem pressionou a Bolívia, quando esta nacionalizou seu petróleo, por decisão pessoal do Lula, e houve uma considerável pressão política nesse sentido. Só que nem sempre vai haver Lulas no palácio do planalto, e realidades de interesse e poder têm esse mau hábito de se imporem às melhores intenções.
10.2.11
Call-me-Dilma
O primeiro ministro britânico, David Cameron, conhecido como "call-me-Dave" pelas suas afetações de informalidade, mostrou bem, tendo assumido o poder, que o filho de Eton não foge à luta, e determinou um corte generalizado nos gastos do governo, especialmente aqueles direcionados aos mais pobres, assim que assumiu, isso é enquanto o Reino Unido ainda estava em recessão. Alguns gastos essenciais foram preservados - os salários dos presidentes do Royal Bank of Scotland e do Lloyd's, dos quais a Coroa britânica é acionista controladora, continuaram sendo acrescidos de bônus milionários (em libras esterlinas). Mas até gastos quase sagrados como aqueles direcionados à guerra foram sacrificados no altar da responsabilidade fiscal, além daqueles óbvios, como ensino de línguas a imigrantes* e escolas primárias situadas em áreas pobres. Tudo corretíssimo, afinal foram eleitos os conservadores para isso mesmo - esperava-se, talvez, que os liberais-democratas pudessem temperar a sanha, mas isso seria esperar demais num país mais acostumado com a ditadura eleitoral do que com a negociação parlamentar, muito menos governos de coalizão. (Em outros tempos, a mim mais simpáticos, isso permitiu a nacionalização a canetadas da infraestrutura britânica no imediato pós-guerra.)
Aqui no Brasil, a situação é decerto bem diferente. O corte de 50bn de reais anunciado pelo governo Dilma Roussef não veio no meio de uma recessão, mas após um ano em que o país cresceu mais de 7%, e em meio a uma expectativa de alta de inflação generalizada. (Apesar de esta ser exagerada, já que boa parte dela advém de problemas climáticos pontuais. Não creio que a Região Serrana do Rio de Janeiro e o Vale do Paraíba fiquem debaixo d'água pelo resto do ano.) Assim, o corte no orçamento não pode ser considerado simplesmente uma dedicação ideológica desprovida de senso econômico, mas uma real necessidade econômica de contenção do déficit nominal e mesmo de contenção da expansão da atividade econômica.
Et pourtant, Dilma não foi eleita para ser conservadora. Ao contrário da situação inglesa, o partido conservador, em sua coalizão, é o membro júnior, e o de centro-esquerda o membro sênior. E existe outro jeito, além de cortar gastos públicos, de se aumentar a poupança, ou diminuir a gastança, do governo, diminuindo o déficit nominal e pondo um freio melhor do que os juros na economia, principalmente no lado da demanda. Chama-se aumento de impostos. Especificamente, aumento de impostos sobre a renda e a propriedade, que já foi uma bandeira da esquerda, mas hoje parece estar esquecida, mundo afora, ou quando muito restrita à vociferação contra as "grandes fortunas," que são sempre os outros.
O argumento de que isso seria impopular não procede. A grande imprensa fala em aumento da carga tributária todo ano, mesmo sem nenhum aumento de impostos. A maior parte do povo será indiferente a um aumento de imposto que não lhe afeta. E mesmo a parte afetada tem quatro anos até a próxima eleição para perceber que não foi tão ruim assim, e para ser compensada pela diminuição gradual de impostos sobre a produção. Este momento, longe de ser um problema em que o fantasma de Margareth Thatcher impõe a Dilma o seu "there is no alternative," deveria ser considerado uma oportunidade dourada para fazer a reforma tributária, não aquela vaga e neoliberal, mas a que faria com que a estrutura dos impostos no Brasil, como deveria ser e como é em muitos países, cobre mais de quem pode pagar mais. Desperdiçando-a, Dilma corre um sério risco de passar à história mais como Bill Clinton que como Lula. Ia dizer Tony Blair, mas o nome Bill Clinton, apesar dos mísseis no Sudão, não virou sinônimo de "criminoso de guerra."
*Este corte é particularmente curioso porque Call-me-Dave acaba de entoar, logo em Munique, um discurso no qual culpa o "multiculturalismo," que "permite" aos imigrantes se isolarem, pelo terrorismo, e pede pela "integração nacionalista" em seu lugar. O discurso foi, claro, entusiasticamente recebido pela Frente Nacional e outros partidos de extrema direita.
Aqui no Brasil, a situação é decerto bem diferente. O corte de 50bn de reais anunciado pelo governo Dilma Roussef não veio no meio de uma recessão, mas após um ano em que o país cresceu mais de 7%, e em meio a uma expectativa de alta de inflação generalizada. (Apesar de esta ser exagerada, já que boa parte dela advém de problemas climáticos pontuais. Não creio que a Região Serrana do Rio de Janeiro e o Vale do Paraíba fiquem debaixo d'água pelo resto do ano.) Assim, o corte no orçamento não pode ser considerado simplesmente uma dedicação ideológica desprovida de senso econômico, mas uma real necessidade econômica de contenção do déficit nominal e mesmo de contenção da expansão da atividade econômica.
Et pourtant, Dilma não foi eleita para ser conservadora. Ao contrário da situação inglesa, o partido conservador, em sua coalizão, é o membro júnior, e o de centro-esquerda o membro sênior. E existe outro jeito, além de cortar gastos públicos, de se aumentar a poupança, ou diminuir a gastança, do governo, diminuindo o déficit nominal e pondo um freio melhor do que os juros na economia, principalmente no lado da demanda. Chama-se aumento de impostos. Especificamente, aumento de impostos sobre a renda e a propriedade, que já foi uma bandeira da esquerda, mas hoje parece estar esquecida, mundo afora, ou quando muito restrita à vociferação contra as "grandes fortunas," que são sempre os outros.
O argumento de que isso seria impopular não procede. A grande imprensa fala em aumento da carga tributária todo ano, mesmo sem nenhum aumento de impostos. A maior parte do povo será indiferente a um aumento de imposto que não lhe afeta. E mesmo a parte afetada tem quatro anos até a próxima eleição para perceber que não foi tão ruim assim, e para ser compensada pela diminuição gradual de impostos sobre a produção. Este momento, longe de ser um problema em que o fantasma de Margareth Thatcher impõe a Dilma o seu "there is no alternative," deveria ser considerado uma oportunidade dourada para fazer a reforma tributária, não aquela vaga e neoliberal, mas a que faria com que a estrutura dos impostos no Brasil, como deveria ser e como é em muitos países, cobre mais de quem pode pagar mais. Desperdiçando-a, Dilma corre um sério risco de passar à história mais como Bill Clinton que como Lula. Ia dizer Tony Blair, mas o nome Bill Clinton, apesar dos mísseis no Sudão, não virou sinônimo de "criminoso de guerra."
*Este corte é particularmente curioso porque Call-me-Dave acaba de entoar, logo em Munique, um discurso no qual culpa o "multiculturalismo," que "permite" aos imigrantes se isolarem, pelo terrorismo, e pede pela "integração nacionalista" em seu lugar. O discurso foi, claro, entusiasticamente recebido pela Frente Nacional e outros partidos de extrema direita.
9.2.11
Efeito dominó
Uma das crenças mais caras aos neocons era a de que a derrocada da ditadura de Saddam Hussein no Iraque iria gerar um "efeito dominó do bem," fazendo com que outras ditaduras antiamericanas (na fantasia neocon, os termos são interligados) caíssem também. O pensamento é obviamente falho de diversas maneiras. Afinal, mesmo que se acreditasse que a democracia seria uma coisa auto-evidentemente boa, um exemplo a ser seguido automaticamente na mente dos vizinhos, isso dependeria de se estabelecer uma democracia no Iraque. E a invasão confunde as coisas, a partir do momento que qualquer legitimidade atribuída a algo é diminuída se esse algo foi imposto pelas armas. E, é claro, a maioria das ditaduras árabes e islâmicas não é antiamericana, muito antes pelo contrário, mas estreitamente ligada aos EUA, aos aliados europeus na Europa, ou a ambos.
Por outro lado, as revoltas e revoluções que começaram na Tunísia neste inverno boreal têm muito mais a ver com a primeira idéia americana de "efeito dominó," na qual a queda de um país para movimentos comunistas internos provocaria uma ascensão do comunismo em outros países. (Que também era furada.) Aqui, trata-se de movimentos internos pró-democracia se espalhando e comunicando. Este último verbo, em especial, é importante. A maior de todas as ditaduras islâmicas apoiadas pelos EUA, a Indonésia (um país nem tão menor assim em população do que os próprios EUA), foi derrubada por uma revolução popular em 1998, muito parecida com os atuais protestos no Egito; a situação não se espalhou para além das fronteiras indonésias.*
No mundo árabe, entretanto, a língua quase-comum transcende as fronteiras, auxiliada, como bem o pressentiu Mubarak, pela internet. Não é uma língua comum de verdade; o árabe clássico que todos falam em público e no qual escrevem não é muito mais inteligível a alguém que só tenha aprendido algum dos vernaculares do que o latim a um lusófono. Mas como todos aprendem esse árabe literário, ou pelo menos a maioria das camadas urbanas, podem se comunicar nele através da internet. Podem assistir a Al-Jazeera nele (e a Al-Jazeera é, desde que a BBC decaiu ao longo dos anos 2000, de longe o melhor órgão de notícias que vejo hoje no mundo). Podem, inclusive, combinar uma revolução transnacional nele.
À primeira vista, parece paradoxal a conclusão que se tira daí, que os países, e dentro deles as áreas, mais vulneráveis às revoltas por um assunto tão medieval quanto o preço do pão** sejam aqueles, portanto, mais urbanizados e desenvolvidos. Nem é tanto - a revolução francesa, afinal, atingiu o país mais rico da Europa. E, claro, isso se dá de forma desigual mesmo entre os países árabes cuja situação é mais próxima à do Egito e da Tunísia, isto é, ditaduras ferozmente seculares, baseadas numa "lei de emergência" eterna, relativamente mas não muito prósperas, alinhadas com os interesses das grandes potências, com um passado pendendo ao socialismo ou para ser exato ao dirigismo estatal com uma ou duas palavras de ordem socialistas.
A pergunta que não quer calar, portanto, é "quem é o próximo?" E podem apostar que ela está sendo feita em todo o mundo árabe - inclusive em Israel, que afinal tem, contando cidadãos de primeira e segunda categorias, uns 50% da população árabe.
No Iêmen e no Sudão, onde já houve bastante agitação, o problema é a pobreza, no sentido mais amplo do termo. A maior parte da população dos dois países vive ainda no campo, e é difícil de imaginar uma massa crítica coordenada pela internet se erguendo contra os ditadores. Sem coordenação de alguma forma, revoltas pelo preço do pão na capital se resumem a ser apenas isso. Revoltas esporádicas sem poder maior. No Iêmen, a prosperidade um pouco maior ainda dá esperanças, mas está se falando de um país em que os beduínos e o modo de vida da aldeia ou do camelo, longe de terem, como no Egito, um status de "povos nativos," parecido com o dos ameríndios no Brasil ou nos EUA, são boa parte da população - mais pra Bolívia. Por mais outro lado, na Bolívia, os Quechua e Aymara conseguiram derrubar o governo... na tentativa da Economist de quantificar as chances de uma revolução em cada país da Liga Árabe, o Iêmen aparece em primeiro.
No Marrocos e na Jordânia, as ditaduras monárquicas são mais light do que no resto do mundo árabe, e têm tentado administrar a insatisfação popular e o efeito dominó através de seguidas concessões. A possibilidade sempre presente, é claro, é de que essas concessões ao povo minem o apoio das monarquias dentro de seus próprios aparatos de poder estatais e paraestatais - para não falar do apoio estrangeiro, principalmente europeu; e nem se pode ignorar completamente a antipatia pelo que é visto pela população como apoio a Israel.
Na Argélia e na Síria, por outro lado, o problema é justamente o oposto: a ditadura é muito mais barra pesada ainda do que no Egito de Mubarak. E nem tem, como no Egito, pólos distintos de poder dentro do sistema; o exército e a polícia interna foram mantidos isolados por Mubarak por medo de que algum general o suplantasse numa quartelada, o que realmente não aconteceu até agora (mas talvez seja a solução sonhada por Obama e Netanyahu), mas na Argélia o exército é o próprio poder, enquanto na Síria ele manteve-se totalmente subordinado à dinastia reinante, enquanto outras figuras detinham outras seções do estado, e nunca foi criado um aparato policial completamente independente.
Na Líbia e nas tiranias monárquicas do Golfo Pérsico, por outro lado, a ditadura barra pesadíssima está combinada com muito, muito dinheiro, graças ao petróleo. Assim, os tiranos podem simplesmente subornar o povo, em boa parte - e no Golfo, principalmente nos países menores mas em algum grau também na Arábia Saudita, boa parte da população pobre, mais disposta a se insatisfazer, pode simplesmente ser deportada sumariamente, já que não se trata de cidadãos, mas de trabalhadores do sul e sudeste asiáticos, com vistos temporários e precários e que já são, em muitos casos, confinados em guetos.
Em Israel, incluindo a semiindependente Autoridade Palestina, e no Líbano, os países árabes mais democráticos, ou menos autoritários, a situação de insatisfação popular, por um lado pode ser canalizada através dos trâmites democráticos, diminuindo as chances de revoluções, e por outro lado pode se expressar mais livremente. Na Palestina, em particular, as chances de uma revolução contra Hamas, OLP, E Israel, eventualmente apoiada por uma fatia considerável na própria população israelense, não me parecem nada desprezíveis. Será que o Hamas teria coragem de atirar numa multidão? O IDF tem matado gente sem se preocupar com danos colaterais há décadas, mas será que teria coragem de atirar numa multidão pacífica protestando?
Finalmente, no Iraque, falar em revoltas e insatisfação popular parece estranho, num país que ainda mal saiu da guerra civil, com carros-bomba explodindo diariamente e conflito armado uma realidade, e que ainda está ocupado por um exército invasor. Se a pergunta crucial em cada um dos outros países acaba sendo "será que o ditador estaria disposto a um massacre para acabar com uma revolução, assumindo-se que ela ocorra? Será que suas tropas obedeceriam a essa ordem?", no Iraque massacres já fazem parte do cotidiano. Por outro lado, falar no Iraque é constatar uma realidade curiosa - longe de ter um efeito dominó no sentido da democracia, a invasão do Iraque e suas consequências são, na Síria, dos maiores argumentos pela manutenção do regime.
The proximity to Iraq, another ethnically and religiously diverse country, is believed to play a major role in Syria's scepticism towards democracy and limited hunger for political change. About a million Iraqi refugees have come to Syria since the US-led invasion of Iraq in 2003.
"The Iraqi refugees are a cautionary tale for Syrians," Landis says. "They have seen what happens when regime change goes wrong. This has made Syrians very conservative. They don't trust democracy."
*O equivalente indonésio da Praça Tahrir foi a Praça Merdeka. Sim, Merdeka. OK, achar isso engraçado deve ser prova de imaturidade.
**Há registros de revoltas pelo preço do pão desde os tempos faraônicos. Nos tempos romanos, mais de uma vez aconteceram situações semelhantes à da Irlanda durante sua Grande Fome, nas quais o trigo do Egito era enviado pelos comerciantes e pelo Estado para Roma enquanto os egípcios não podiam pagar por ele.
Por outro lado, as revoltas e revoluções que começaram na Tunísia neste inverno boreal têm muito mais a ver com a primeira idéia americana de "efeito dominó," na qual a queda de um país para movimentos comunistas internos provocaria uma ascensão do comunismo em outros países. (Que também era furada.) Aqui, trata-se de movimentos internos pró-democracia se espalhando e comunicando. Este último verbo, em especial, é importante. A maior de todas as ditaduras islâmicas apoiadas pelos EUA, a Indonésia (um país nem tão menor assim em população do que os próprios EUA), foi derrubada por uma revolução popular em 1998, muito parecida com os atuais protestos no Egito; a situação não se espalhou para além das fronteiras indonésias.*
No mundo árabe, entretanto, a língua quase-comum transcende as fronteiras, auxiliada, como bem o pressentiu Mubarak, pela internet. Não é uma língua comum de verdade; o árabe clássico que todos falam em público e no qual escrevem não é muito mais inteligível a alguém que só tenha aprendido algum dos vernaculares do que o latim a um lusófono. Mas como todos aprendem esse árabe literário, ou pelo menos a maioria das camadas urbanas, podem se comunicar nele através da internet. Podem assistir a Al-Jazeera nele (e a Al-Jazeera é, desde que a BBC decaiu ao longo dos anos 2000, de longe o melhor órgão de notícias que vejo hoje no mundo). Podem, inclusive, combinar uma revolução transnacional nele.
À primeira vista, parece paradoxal a conclusão que se tira daí, que os países, e dentro deles as áreas, mais vulneráveis às revoltas por um assunto tão medieval quanto o preço do pão** sejam aqueles, portanto, mais urbanizados e desenvolvidos. Nem é tanto - a revolução francesa, afinal, atingiu o país mais rico da Europa. E, claro, isso se dá de forma desigual mesmo entre os países árabes cuja situação é mais próxima à do Egito e da Tunísia, isto é, ditaduras ferozmente seculares, baseadas numa "lei de emergência" eterna, relativamente mas não muito prósperas, alinhadas com os interesses das grandes potências, com um passado pendendo ao socialismo ou para ser exato ao dirigismo estatal com uma ou duas palavras de ordem socialistas.
A pergunta que não quer calar, portanto, é "quem é o próximo?" E podem apostar que ela está sendo feita em todo o mundo árabe - inclusive em Israel, que afinal tem, contando cidadãos de primeira e segunda categorias, uns 50% da população árabe.
No Iêmen e no Sudão, onde já houve bastante agitação, o problema é a pobreza, no sentido mais amplo do termo. A maior parte da população dos dois países vive ainda no campo, e é difícil de imaginar uma massa crítica coordenada pela internet se erguendo contra os ditadores. Sem coordenação de alguma forma, revoltas pelo preço do pão na capital se resumem a ser apenas isso. Revoltas esporádicas sem poder maior. No Iêmen, a prosperidade um pouco maior ainda dá esperanças, mas está se falando de um país em que os beduínos e o modo de vida da aldeia ou do camelo, longe de terem, como no Egito, um status de "povos nativos," parecido com o dos ameríndios no Brasil ou nos EUA, são boa parte da população - mais pra Bolívia. Por mais outro lado, na Bolívia, os Quechua e Aymara conseguiram derrubar o governo... na tentativa da Economist de quantificar as chances de uma revolução em cada país da Liga Árabe, o Iêmen aparece em primeiro.
No Marrocos e na Jordânia, as ditaduras monárquicas são mais light do que no resto do mundo árabe, e têm tentado administrar a insatisfação popular e o efeito dominó através de seguidas concessões. A possibilidade sempre presente, é claro, é de que essas concessões ao povo minem o apoio das monarquias dentro de seus próprios aparatos de poder estatais e paraestatais - para não falar do apoio estrangeiro, principalmente europeu; e nem se pode ignorar completamente a antipatia pelo que é visto pela população como apoio a Israel.
Na Argélia e na Síria, por outro lado, o problema é justamente o oposto: a ditadura é muito mais barra pesada ainda do que no Egito de Mubarak. E nem tem, como no Egito, pólos distintos de poder dentro do sistema; o exército e a polícia interna foram mantidos isolados por Mubarak por medo de que algum general o suplantasse numa quartelada, o que realmente não aconteceu até agora (mas talvez seja a solução sonhada por Obama e Netanyahu), mas na Argélia o exército é o próprio poder, enquanto na Síria ele manteve-se totalmente subordinado à dinastia reinante, enquanto outras figuras detinham outras seções do estado, e nunca foi criado um aparato policial completamente independente.
Na Líbia e nas tiranias monárquicas do Golfo Pérsico, por outro lado, a ditadura barra pesadíssima está combinada com muito, muito dinheiro, graças ao petróleo. Assim, os tiranos podem simplesmente subornar o povo, em boa parte - e no Golfo, principalmente nos países menores mas em algum grau também na Arábia Saudita, boa parte da população pobre, mais disposta a se insatisfazer, pode simplesmente ser deportada sumariamente, já que não se trata de cidadãos, mas de trabalhadores do sul e sudeste asiáticos, com vistos temporários e precários e que já são, em muitos casos, confinados em guetos.
Em Israel, incluindo a semiindependente Autoridade Palestina, e no Líbano, os países árabes mais democráticos, ou menos autoritários, a situação de insatisfação popular, por um lado pode ser canalizada através dos trâmites democráticos, diminuindo as chances de revoluções, e por outro lado pode se expressar mais livremente. Na Palestina, em particular, as chances de uma revolução contra Hamas, OLP, E Israel, eventualmente apoiada por uma fatia considerável na própria população israelense, não me parecem nada desprezíveis. Será que o Hamas teria coragem de atirar numa multidão? O IDF tem matado gente sem se preocupar com danos colaterais há décadas, mas será que teria coragem de atirar numa multidão pacífica protestando?
Finalmente, no Iraque, falar em revoltas e insatisfação popular parece estranho, num país que ainda mal saiu da guerra civil, com carros-bomba explodindo diariamente e conflito armado uma realidade, e que ainda está ocupado por um exército invasor. Se a pergunta crucial em cada um dos outros países acaba sendo "será que o ditador estaria disposto a um massacre para acabar com uma revolução, assumindo-se que ela ocorra? Será que suas tropas obedeceriam a essa ordem?", no Iraque massacres já fazem parte do cotidiano. Por outro lado, falar no Iraque é constatar uma realidade curiosa - longe de ter um efeito dominó no sentido da democracia, a invasão do Iraque e suas consequências são, na Síria, dos maiores argumentos pela manutenção do regime.
The proximity to Iraq, another ethnically and religiously diverse country, is believed to play a major role in Syria's scepticism towards democracy and limited hunger for political change. About a million Iraqi refugees have come to Syria since the US-led invasion of Iraq in 2003.
"The Iraqi refugees are a cautionary tale for Syrians," Landis says. "They have seen what happens when regime change goes wrong. This has made Syrians very conservative. They don't trust democracy."
*O equivalente indonésio da Praça Tahrir foi a Praça Merdeka. Sim, Merdeka. OK, achar isso engraçado deve ser prova de imaturidade.
**Há registros de revoltas pelo preço do pão desde os tempos faraônicos. Nos tempos romanos, mais de uma vez aconteceram situações semelhantes à da Irlanda durante sua Grande Fome, nas quais o trigo do Egito era enviado pelos comerciantes e pelo Estado para Roma enquanto os egípcios não podiam pagar por ele.
8.2.11
Diamantes da rainha
Uma das jóias da coroa do sistema educacional e cultural brasileiro é o "Sistema S," especialmente os SESCs do estado de São Paulo. Não há quem não elogie algo como o SESC Pompéia, da arquitetura do local à qualidade dos eventos e cursos disponíveis ali, e os cursos do sistema S são geralmente considerados dos melhores cursos técnicos disponíveis no Brasil. Neste exato momento, o sistema, graças a uma correção de custos que poderia ser acertada com o governo, é a grande esperança da presidenta Dilma para cumprir sua promessa de expandir a quantidade de vagas no ensino técnico, de que o Brasil tem necessidade urgente.
E pur, este post é uma chamada à sua dissolução, ou pelo menos à sua refundação. Porque o sistema S, criado inicialmente pelo Estado Novo, o sistema coaduna bem com os ideais fascistas-corporatistas daquele período. Afinal, tire-se a ditadura e a xenofobia, e o fascismo nada mais é do que a expressão máxima do dito de que "o que é bom para a GM é bom para os Estados Unidos." É o corporatismo, em que a disputa entre grupos na sociedade é sublimada (ou antes reprimida a ferro e fogo, na realidade), e empresas e estado formam um todo contínuo a tutelar trabalhadores felizes. Assim, a contribuição legalmente obrigatória ao sistema é gerida, não pelo estado, sequer por órgãos independentes colegiados, mas pelas respectivas associações empresariais. O SENAI/SESI é gerido pela CNI, eg.
Qualquer um que não subscreva ao ideal do estado corporativo fascista pode, imagino, perceber sem muita dificuldade os problemas envolvidos em se entregar o principal sistema de educação profissional do país aos empresários da área, sem controles externos (governo e trabalhadores têm apenas um arremedo de controle na estrutura do sistema S, que é presidido estatutariamente pelas confederações patronais). Ou de se entregar a uma entidade dirigida pro empresários, sem controle externo, dinheiro de impostos. Mas a coisa não para por aí. A administração do SESC é descentralizada - que bom, não? Não, porque isso inclui a arrecadação e o dispêndio. Assim, os estados mais ricos e com mais emprego formal gozam de mais dinheiro (público) tanto para o ensino técnico quanto para atividades recreativas e culturais.
O resultado é mais uma faceta de um Brasil profundamente desigual: não apenas o nosso sistema de arrecadação e dispêndio concentra (hoje menos) riquezas nas mãos de classes sociais mais ricas, mas também nas mãos dos estados mais ricos; e o SESC é objetivo de fundos complementares do governo, periodicamente. Ao contrário da maioria dos países, em que regiões mais ricas subsidiam as mais pobres num esforço de equalização, no Brasil é o contrário.
A solução nem é particularmente complicada: demova-se as confederações patronais de sua liderança automática para fazê-las serem apenas parte do conselho que elegeria livremente a administração, junto com os trabalhadores e o governo federal; faça-se com que a arrecadação seja nacional, e distribuída entre os SESCs estaduais numa base per capita - não dos trabalhadores registrados no setor, mas da população (ou, para realmente inverter o hoje praticado, per capita ponderada pela renda inversa).
E este último ponto é o problema principal, e insanável, do SESC a meus olhos: para ele, o cidadão e o trabalhador se confundem. Só é cidadão quem produz. Admita-se, é mais razoável do que o cidadão-consumidor ou até o cidadão-contribuinte, mas ainda assim é problemático, de um ponto de vista humanista - e mais ainda ao se lembrar que se está falando, não de todo mundo que trabalha, mas daqueles inseridos em relações de trabalho formais, o que ainda está longe de representar a maioria da sociedade brasileira. E quando contrastado o sistema S com a penúria de ofertas educacionais e culturais de baixo custo na sociedade brasileira em geral, fica inevitável a idéia de que o SESC cria uma clivagem a mais entre proletários e lumpens - pelo menos originalmente, de forma deliberada.
E pur, este post é uma chamada à sua dissolução, ou pelo menos à sua refundação. Porque o sistema S, criado inicialmente pelo Estado Novo, o sistema coaduna bem com os ideais fascistas-corporatistas daquele período. Afinal, tire-se a ditadura e a xenofobia, e o fascismo nada mais é do que a expressão máxima do dito de que "o que é bom para a GM é bom para os Estados Unidos." É o corporatismo, em que a disputa entre grupos na sociedade é sublimada (ou antes reprimida a ferro e fogo, na realidade), e empresas e estado formam um todo contínuo a tutelar trabalhadores felizes. Assim, a contribuição legalmente obrigatória ao sistema é gerida, não pelo estado, sequer por órgãos independentes colegiados, mas pelas respectivas associações empresariais. O SENAI/SESI é gerido pela CNI, eg.
Qualquer um que não subscreva ao ideal do estado corporativo fascista pode, imagino, perceber sem muita dificuldade os problemas envolvidos em se entregar o principal sistema de educação profissional do país aos empresários da área, sem controles externos (governo e trabalhadores têm apenas um arremedo de controle na estrutura do sistema S, que é presidido estatutariamente pelas confederações patronais). Ou de se entregar a uma entidade dirigida pro empresários, sem controle externo, dinheiro de impostos. Mas a coisa não para por aí. A administração do SESC é descentralizada - que bom, não? Não, porque isso inclui a arrecadação e o dispêndio. Assim, os estados mais ricos e com mais emprego formal gozam de mais dinheiro (público) tanto para o ensino técnico quanto para atividades recreativas e culturais.
O resultado é mais uma faceta de um Brasil profundamente desigual: não apenas o nosso sistema de arrecadação e dispêndio concentra (hoje menos) riquezas nas mãos de classes sociais mais ricas, mas também nas mãos dos estados mais ricos; e o SESC é objetivo de fundos complementares do governo, periodicamente. Ao contrário da maioria dos países, em que regiões mais ricas subsidiam as mais pobres num esforço de equalização, no Brasil é o contrário.
A solução nem é particularmente complicada: demova-se as confederações patronais de sua liderança automática para fazê-las serem apenas parte do conselho que elegeria livremente a administração, junto com os trabalhadores e o governo federal; faça-se com que a arrecadação seja nacional, e distribuída entre os SESCs estaduais numa base per capita - não dos trabalhadores registrados no setor, mas da população (ou, para realmente inverter o hoje praticado, per capita ponderada pela renda inversa).
E este último ponto é o problema principal, e insanável, do SESC a meus olhos: para ele, o cidadão e o trabalhador se confundem. Só é cidadão quem produz. Admita-se, é mais razoável do que o cidadão-consumidor ou até o cidadão-contribuinte, mas ainda assim é problemático, de um ponto de vista humanista - e mais ainda ao se lembrar que se está falando, não de todo mundo que trabalha, mas daqueles inseridos em relações de trabalho formais, o que ainda está longe de representar a maioria da sociedade brasileira. E quando contrastado o sistema S com a penúria de ofertas educacionais e culturais de baixo custo na sociedade brasileira em geral, fica inevitável a idéia de que o SESC cria uma clivagem a mais entre proletários e lumpens - pelo menos originalmente, de forma deliberada.
4.2.11
Chamem o ladrão!
As autoridades de São Paulo e do Rio de Janeiro se congratulam, obsequiosamente, por terem, ambos os estados, alcançado os índices de assassinato mais baixos desde, respectivamente, 1999 e 1991. Claro que reconhecem, contritos, que ainda há muito por fazer, mas definitivamente foi o pulso firme dos tucanos no combate ao crime, ou foram as UPPs milagrosas,* que resultaram nessa situação exitosa. Foram mesmo? Porque, com a exceção da desastrosa gestão Rosinha Garotinho no Rio de Janeiro, os índices de homicídios em ambas as cidades vêm tendo uma gradual diminuição desde 1990. Ou seja, não apenas neste ano mas em toda a última década São Paulo teve "os menores índices de homicídio desde 1999." E em quase todos os anos da década o mesmo foi verdade do Rio de Janeiro. O que, é claro, detrai tanto da atmosfera de medo constante, violência terrível, "o que faz o governo,"** quanto das bravatas oficiais.
As UPPs ainda podem ser consideradas talvez correlacionáveis (causalidade é outra coisa) com a redução, visto que a partir da sua implantação a inflexão foi um pouco mais rápida, mas de novo: a inflexão signfica um aumento da taxa de redução, não uma inversão de tendência. Por outro lado, os anos em que se dá uma redução muito mais radical em São Paulo foram os anos de consolidação do PCC, culminando em 2006 - apesar dos massacres promovidos pela polícia neste último ano, nesse período a taxa de homicídios caiu praticamente pela metade.
De tudo, sobressai que a situação está longe tanto dos arroubos de entusiasmo dos governantes e de parte da imprensa quanto da paranóia urbana da classe média que assiste a outra parte da imprensa. E eu (e muita gente boa) diria que o principal responsável pela diminuição no índice de homicídios, em ambas as cidades, é o bandido, não a polícia. Primeiro, vamos perguntar a pergunta que a dita classe média apavorada (que reage até violentamente à idéia de que não corre perigo constante) geralmente não faz. Quem são os mortos?
Ora, os mortos são pobres, pretos, e jovens. Isto é, em outras palavras, os mortos são aqueles envolvidos na violência entre gangues nas favelas e na periferia, diretamente (como atores além de vítimas) ou indiretamente (apenas como vítimas colaterais). Ao contrário do que a classe média leitora de Veja pensa, as suas chances de ser assassinada andando pelas ruas do Leblon ou dos Jardins, ou até de Vila Mariana ou Catete, não são lá tão grandes assim. São comparáveis às de alguém andando pelas ruas equivalentes de qualquer grande cidade mundo afora; e a maioria dos assassinatos ocorridos nessas regiões são aqueles assassinatos passionais, por conhecidos, de certa forma inevitáveis. A conclusão é inevitável: a diminuição no número de mortos representa uma redução no número de vítimas desses conflitos, não sendo senão tangencial (quando muito) à redução na criminalidade para além dessas áreas.
Por outro lado, a hipótese de que tenham sido "políticas acertadas de segurança" que tenham levado a essa diminuição progressiva parece temerária. Afinal, que políticas exatamente foram estas? Não houve continuidade de políticas de segurança. Apesar do PSDB governar São Paulo por esse tempo todo, a fraternidade que irmana os tucanos significou que Serra mandou pro pasto toda a cúpula de segurança de Alckmin e vice-versa. No Rio, se você falar que o governo de Garotinho e o de Cabral são continuidade, ambos te matam. E fazendo a decupagem geográfica do declínio na violência, ele se concentrou justamente nas áreas menos policiadas, não nas mais.
Por outro lado, quem está, sim, concentrado nessas áreas são o PCC e as milícias cariocas. O PCC em especial, que não é exatamente uma facção criminosa mas sim, como diz este bando de antropólogos, uma metafacção, um modo de entendimento dos criminosos e marginais (num sentido mais lato) entre si, num movimento de renúncia à guerra de todos contra todos que seria bem apreciado pelo Hobbes. A violência cai pela metade no período até 2006 em São Paulo justamente porque, graças ao PCC, caem as disputas entre bandidos. Do mesmo modo, no Rio, as milícias que hoje ocupam a maioria das favelas da cidade não são dadas a enfrentamentos armados entre si ou com a polícia. Afinal, são homens de negócios, não adolescentes cabeça quente, e são a própria polícia, de certa forma.
A última afirmação leva à pergunta: e como a polícia tolera o PCC, que não é uma milícia, em São Paulo? A resposta, desde justamente os massacres de 2006, não é muito animadora. Os "líderes" do PCC emitem seus salves a partir de presídios de segurança máxima, nos quais nem fazer cocô sozinhos podem. Os coronéis da polícia militar de São Paulo, bem como a cúpula da Civil, são todos milionários com mansões no Morumbi e Jardim Europa. Em resumo: São Paulo, ou antes suas zonas pobres, é, de certa forma, um imenso território de milícia.
*Não nego a importância das UPPs onde foram implantadas. Mas esses lugares ainda correspondem, mesmo incluindo o morro do Alemão, a menos de 15% do território. Convenhamos, é muito pouco.
**Num cartum do Quino que li uma vez e não acho agora, um leitor de jornal fala para o outro "asteróides vão cair em júpiter com a potência de mil bombas atômicas," ao que a resposta é "absurdo! E o que faz o governo?"
As UPPs ainda podem ser consideradas talvez correlacionáveis (causalidade é outra coisa) com a redução, visto que a partir da sua implantação a inflexão foi um pouco mais rápida, mas de novo: a inflexão signfica um aumento da taxa de redução, não uma inversão de tendência. Por outro lado, os anos em que se dá uma redução muito mais radical em São Paulo foram os anos de consolidação do PCC, culminando em 2006 - apesar dos massacres promovidos pela polícia neste último ano, nesse período a taxa de homicídios caiu praticamente pela metade.
De tudo, sobressai que a situação está longe tanto dos arroubos de entusiasmo dos governantes e de parte da imprensa quanto da paranóia urbana da classe média que assiste a outra parte da imprensa. E eu (e muita gente boa) diria que o principal responsável pela diminuição no índice de homicídios, em ambas as cidades, é o bandido, não a polícia. Primeiro, vamos perguntar a pergunta que a dita classe média apavorada (que reage até violentamente à idéia de que não corre perigo constante) geralmente não faz. Quem são os mortos?
Ora, os mortos são pobres, pretos, e jovens. Isto é, em outras palavras, os mortos são aqueles envolvidos na violência entre gangues nas favelas e na periferia, diretamente (como atores além de vítimas) ou indiretamente (apenas como vítimas colaterais). Ao contrário do que a classe média leitora de Veja pensa, as suas chances de ser assassinada andando pelas ruas do Leblon ou dos Jardins, ou até de Vila Mariana ou Catete, não são lá tão grandes assim. São comparáveis às de alguém andando pelas ruas equivalentes de qualquer grande cidade mundo afora; e a maioria dos assassinatos ocorridos nessas regiões são aqueles assassinatos passionais, por conhecidos, de certa forma inevitáveis. A conclusão é inevitável: a diminuição no número de mortos representa uma redução no número de vítimas desses conflitos, não sendo senão tangencial (quando muito) à redução na criminalidade para além dessas áreas.
Por outro lado, a hipótese de que tenham sido "políticas acertadas de segurança" que tenham levado a essa diminuição progressiva parece temerária. Afinal, que políticas exatamente foram estas? Não houve continuidade de políticas de segurança. Apesar do PSDB governar São Paulo por esse tempo todo, a fraternidade que irmana os tucanos significou que Serra mandou pro pasto toda a cúpula de segurança de Alckmin e vice-versa. No Rio, se você falar que o governo de Garotinho e o de Cabral são continuidade, ambos te matam. E fazendo a decupagem geográfica do declínio na violência, ele se concentrou justamente nas áreas menos policiadas, não nas mais.
Por outro lado, quem está, sim, concentrado nessas áreas são o PCC e as milícias cariocas. O PCC em especial, que não é exatamente uma facção criminosa mas sim, como diz este bando de antropólogos, uma metafacção, um modo de entendimento dos criminosos e marginais (num sentido mais lato) entre si, num movimento de renúncia à guerra de todos contra todos que seria bem apreciado pelo Hobbes. A violência cai pela metade no período até 2006 em São Paulo justamente porque, graças ao PCC, caem as disputas entre bandidos. Do mesmo modo, no Rio, as milícias que hoje ocupam a maioria das favelas da cidade não são dadas a enfrentamentos armados entre si ou com a polícia. Afinal, são homens de negócios, não adolescentes cabeça quente, e são a própria polícia, de certa forma.
A última afirmação leva à pergunta: e como a polícia tolera o PCC, que não é uma milícia, em São Paulo? A resposta, desde justamente os massacres de 2006, não é muito animadora. Os "líderes" do PCC emitem seus salves a partir de presídios de segurança máxima, nos quais nem fazer cocô sozinhos podem. Os coronéis da polícia militar de São Paulo, bem como a cúpula da Civil, são todos milionários com mansões no Morumbi e Jardim Europa. Em resumo: São Paulo, ou antes suas zonas pobres, é, de certa forma, um imenso território de milícia.
*Não nego a importância das UPPs onde foram implantadas. Mas esses lugares ainda correspondem, mesmo incluindo o morro do Alemão, a menos de 15% do território. Convenhamos, é muito pouco.
**Num cartum do Quino que li uma vez e não acho agora, um leitor de jornal fala para o outro "asteróides vão cair em júpiter com a potência de mil bombas atômicas," ao que a resposta é "absurdo! E o que faz o governo?"
3.2.11
Sacrossantos homens de pura fé
Quanto eu digo que a Arábia Saudita já é uma teocracia islamista, pode parecer hipérbole. Afinal, os sauditas são bons aliados americanos desde o acordo feito entre eles e Roosevelt, na volta da reunião de Yalta. Como pode um aliado ocidental ser uma teocracia islamista? E o choque de civilizações? Islamistas não deveriam ser por definição inimigos do Ocidente, como a Talibã? Aquilo sim era uma teocracia islâmica, não um reino que está virando hub comercial. Pare de exagerar.
Pois bem, vamos comparar a casa de Saud (que se confunde, repita-se, com a seita uarrabita, já que são dela, desde o princípio, os líderes temporais) com a Talibã.
A Talibã foi alvo de opóbrio mundial ao detonar os budas de Bamyan por considerá-los idolatria. Fanáticos sem respeito pela religião alheia nem pela arte que pertence à humanidade! Pois bem, a Arábia Saudita tem detonado, desde 1985, os monumentos históricos da própria Meca, islâmicos, por constituírem ofensa, não ao Islã mas à sua própria interpretação iconoclasta dele.
A Talibã ganhou uma reputação horrenda por ter posto fora da lei uma série de atividades, bem como pelas horrendas punições infligidas em criminosos. Pois bem, o código legal deles era uma cópia do código legal (baseado numa interpretação uarrabita da Sharia) saudita.
Sob a Talibã, estabelecimentos religiosos não-islâmicos eram hostilizados. Na Arábia Saudita, são proibidos. (A pena é a morte.) Rezar em público, se você não for muçulmano, também é proibido, com pena a ser decidida pelo juiz ou policial. Adeptos de escolas islâmicas não-uarrabitas podem rezar em público, mas não erigir suas próprias mesquitas nem (sob pena de chicotadas) tentar converter ninguém.
O único critério no qual a Talibã ganha é no acesso à educação por mulheres, que era proibido desde o primário sob a Talibã e é permitido em todos os níveis pela casa de Saud. Por outro lado, a Talibã não era uma monarquia hereditária multitrilionária, mas um bando de seminaristas malnutridos montados em pôneis e morrendo de frio.
Pois bem, vamos comparar a casa de Saud (que se confunde, repita-se, com a seita uarrabita, já que são dela, desde o princípio, os líderes temporais) com a Talibã.
A Talibã foi alvo de opóbrio mundial ao detonar os budas de Bamyan por considerá-los idolatria. Fanáticos sem respeito pela religião alheia nem pela arte que pertence à humanidade! Pois bem, a Arábia Saudita tem detonado, desde 1985, os monumentos históricos da própria Meca, islâmicos, por constituírem ofensa, não ao Islã mas à sua própria interpretação iconoclasta dele.
A Talibã ganhou uma reputação horrenda por ter posto fora da lei uma série de atividades, bem como pelas horrendas punições infligidas em criminosos. Pois bem, o código legal deles era uma cópia do código legal (baseado numa interpretação uarrabita da Sharia) saudita.
Sob a Talibã, estabelecimentos religiosos não-islâmicos eram hostilizados. Na Arábia Saudita, são proibidos. (A pena é a morte.) Rezar em público, se você não for muçulmano, também é proibido, com pena a ser decidida pelo juiz ou policial. Adeptos de escolas islâmicas não-uarrabitas podem rezar em público, mas não erigir suas próprias mesquitas nem (sob pena de chicotadas) tentar converter ninguém.
O único critério no qual a Talibã ganha é no acesso à educação por mulheres, que era proibido desde o primário sob a Talibã e é permitido em todos os níveis pela casa de Saud. Por outro lado, a Talibã não era uma monarquia hereditária multitrilionária, mas um bando de seminaristas malnutridos montados em pôneis e morrendo de frio.
Em terras d'el Rey
A prefeitura do Rio de Janeiro fechou um terminal de ônibus sem aviso prévio. A justificativa para o fechamento é em si discutível: trata-se da "revitalização" (gentrificação), pela qual o terminal hoje utilizado principalmente pelos empregados do complexo de tribunais e do hospital próximos viraria uma praça, bonita de se ver das janelas dos juízes e procuradores. Digo discutível, e não errada, porque a solução encontrada pela prefeitura é tornar as linhas que param ali em circulares, ou seja, teoricamente a disponibilidade de transporte não mudaria.
O que é errado, bizarro, e grotesco, é o fechamento sem aviso prévio, e a razão desse fechamento: é que o fechamento foi prometido pelo prefeito ao presidente do Tribunal de Justiça, Sérgio Zveiter, e como o mandato deste termina amanhã, teve que ser feito rápido. El-rey fez um mimo a sua eminência o juiz da côrte de cassação, sem respeitar minimamente as pessoas que o elegeram. A atitude tecnocrática e alérgica à opinião, que dirá influência, da própria população são exageradas na atual prefeitura do Rio (um exemplo é que das coisas em que não apenas não se melhorou como se piorou desde os tempos de César Maia foi a transparência através da Internet). Mas não é apenas Eduardo Paes que decide secreta e imperialmente os destinos de seu governo: a tecnocracia demofóbica é uma constante mundo afora. Que o digam as chamadas pelos bancos centrais formalmente independentes, que conseguiram sua apoteose no banco central europeu, que é não apenas independente como quase superior aos governos da Eurolândia.
Às vezes dá vontade de avisar ao pessoal que está arriscando a própria vida para derrubar um ditador, nas ruas do Cairo, sobre quão pobre pode ser a democracia que eles (tomara) conseguirão.
Atualização: depois de protestos, a prefeitura decidiu reabrir o tal terminal. Mostrando, acho, o corolário do precedentemente exposto: a democracia nunca pode se dar apenas na urna. O protesto constante é saudável.
O que é errado, bizarro, e grotesco, é o fechamento sem aviso prévio, e a razão desse fechamento: é que o fechamento foi prometido pelo prefeito ao presidente do Tribunal de Justiça, Sérgio Zveiter, e como o mandato deste termina amanhã, teve que ser feito rápido. El-rey fez um mimo a sua eminência o juiz da côrte de cassação, sem respeitar minimamente as pessoas que o elegeram. A atitude tecnocrática e alérgica à opinião, que dirá influência, da própria população são exageradas na atual prefeitura do Rio (um exemplo é que das coisas em que não apenas não se melhorou como se piorou desde os tempos de César Maia foi a transparência através da Internet). Mas não é apenas Eduardo Paes que decide secreta e imperialmente os destinos de seu governo: a tecnocracia demofóbica é uma constante mundo afora. Que o digam as chamadas pelos bancos centrais formalmente independentes, que conseguiram sua apoteose no banco central europeu, que é não apenas independente como quase superior aos governos da Eurolândia.
Às vezes dá vontade de avisar ao pessoal que está arriscando a própria vida para derrubar um ditador, nas ruas do Cairo, sobre quão pobre pode ser a democracia que eles (tomara) conseguirão.
Atualização: depois de protestos, a prefeitura decidiu reabrir o tal terminal. Mostrando, acho, o corolário do precedentemente exposto: a democracia nunca pode se dar apenas na urna. O protesto constante é saudável.
2.2.11
Après lui le déluge
Um ponto recorrente em muitas das análises sobre os movimentos revolucionários em curso no mundo árabe é o da ameaça de uma eventual revolução, depondo os ditadores, resultar em teocracias islâmicas, no molde iraniano. O argumento não tem exatamente o mérito da novidade: é uma variante daquele utilizado pela Europa e pelos EUA como desculpa para sustentar Mubarak, Ben Ali, & Co. há décadas. O que é curioso é que ele continua sendo ressuscitado quase em sua forma original por gente sem noção do ridículo, como no elogio de Tony Blair a Mubarak, ou na chamada da Veja (ali acima do Luciano Huck) sobre o avanço inexorável do islamofascismo comedor de criancinhas e seus terroristas homicidas.*
A diferença, hoje, é que ele é usado em sua versão gradualista. Como aponta o Slavoj Zîzek, a defesa do gradualismo é, pelo menos em parte, uma defesa de que o poder seja tomado (ou mantido) pela plutocracia aliada do Ocidente - a minha formulação é um pouco o espelho daquela usada pelo Zîzek, mas acho importante essa distinção. Nem essa preocupação, e a simpatia envergonhada pela manutenção do status quo, privilégio dos governos ocidentais apenas - a grande mídia ocidental (e até a de periferias pseudo-ocidentais como Pindorama) dança à mesma música, o que faz a cobertura da Al Jazeera sobre o assunto dar um banho tão grande até na BBC ou na CNN que, assim como a Internet antes e única entre as emissoras de TV ou órgãos de mídia estrangeiros em geral, ela foi proscrita pelo Mubarak. As coisas chegaram ao ponto de muita gente esquecer, ao falar de "manifestantes pró-Mubarakak," de mencionar que se tratava, em boa parte, de gente armada e mal encarada trazida em ônibus da polícia secreta.
O curioso do argumento de que sem uma ditadura não haveria como conter a subida do fundamentalismo autoritário é que, esquadrinhando ele nem tão a fundo, sua base lógica é bem fraca. São vagos paralelos com a subida do fascismo na Europa, é uma alusão igualmente vaga ou outra a Tito (ou, ironicamente, a Saddam Hussein), são apelos francamente racistas à incompatibilidade natural árabe, ou islâmica, com a democracia. Dependem de uma cadeia de possibilidades extensa demais para se tomá-la como inevitável. SE uma democracia plena for por outro lado suscetível à sua anulação sem resistência, e SE um partido fundamentalista islâmico ganhar as eleições, e SE o fizer de modo a ter um domínio completo das instituições democráticas, e SE pensar que pode eliminar a democracia através da lei... ora, não faz sentido o esquema. Se você tem uma democracia plena, ela tem normas contra sua própria abolição. Se o arcabouço de estado é assim tão forte para eliminar a democracia com a canetada islamista, é forte o bastante para resistir a essa canetada. E ninguém garante que os islamistas** venceriam uma eleição livre, em país algum.
O argumento é mais bizarro ainda porque temos um caso de um país que ficou mais democrático, e com isso viu um partido islamista vencer as eleições. E não é um estudo de caso exatamente insignificante - é a Turquia, com quase oitenta milhões de habitantes, mais de 97% dos quais muçulmanos. (Para comparar, o Egito tem uns 90% de muçulmanos.) O resultado não foi exatamente uma transformação imediata numa teocracia distópica - pelo contrário, foi a política, como de costume, sob um partido que nem difere muito, agora que chegou ao poder, das democracias cristãs européias. Pelo contrário, é justamente ao longo e após crises não-democráticas (que são, eventualmente, inevitáveis em autocracias, especialmente nas pessoais) que, como no Irã, islamistas podem impor modelos teocráticos.
Se a Turquia torna o argumento da ditadura para salvar a democracia ridículo, ele se torna francamente uma ópera bufa, algo tragicômica, quando se diz que a casa de Saud tem que ser apoiada no seu domínio hereditário e totalitário sobre a Arábia Saudita - sim, até o nome do país significa "Arábia que pertence aos Saud - para evitar que ela seja tomada pelos maníacos religiosos uarrabitas. Afinal, a seita, da qual fazem parte os chefes da Al Qaida, veio de lá, certo? Pois é. O problema é que praticamente não existe distinção entre a seita uarrabita e a casa de Saud. O velho ibn Saud, afinal, foi quem primeiro espalhou a seita pela Arábia, e cunhou o nome pelo qual ela é conhecida. A legitimidade dos ibn Saud para virarem família real adveio do seu papel de defensores da fé - não da fé islâmica, mas especificamente da fé uarrabita. Os líderes terrenos da seita, desde sua fundação até hoje, são a casa de Saud. Existe, além da polícia política e da polícia secreta, uma polícia religiosa, responsável por entre outras coisas fechar um monte de mulheres numa casa pegando fogo porque não estavam usando véu.
Alguém explica, então, como é que alguém fala no medo de a Arábia Saudita virar uma teocracia fundamentalista?
*A assessoria de imprensa da Casa Branca, em 2001, inventou a charmosa expressão "homicide bomber." Porque veja bem, "suicida" poderia gerar alguma simpatia. Não, não faz sentido, até pelo pleonasmo.
**O uso não é universal, mas "islamista" é um jeito curto de falar "seguidor de algum dos diversos movimentos políticos centrados na idéia da implementação política da religião islâmica, geralmente de cunho conservador."
A diferença, hoje, é que ele é usado em sua versão gradualista. Como aponta o Slavoj Zîzek, a defesa do gradualismo é, pelo menos em parte, uma defesa de que o poder seja tomado (ou mantido) pela plutocracia aliada do Ocidente - a minha formulação é um pouco o espelho daquela usada pelo Zîzek, mas acho importante essa distinção. Nem essa preocupação, e a simpatia envergonhada pela manutenção do status quo, privilégio dos governos ocidentais apenas - a grande mídia ocidental (e até a de periferias pseudo-ocidentais como Pindorama) dança à mesma música, o que faz a cobertura da Al Jazeera sobre o assunto dar um banho tão grande até na BBC ou na CNN que, assim como a Internet antes e única entre as emissoras de TV ou órgãos de mídia estrangeiros em geral, ela foi proscrita pelo Mubarak. As coisas chegaram ao ponto de muita gente esquecer, ao falar de "manifestantes pró-Mubarakak," de mencionar que se tratava, em boa parte, de gente armada e mal encarada trazida em ônibus da polícia secreta.
O curioso do argumento de que sem uma ditadura não haveria como conter a subida do fundamentalismo autoritário é que, esquadrinhando ele nem tão a fundo, sua base lógica é bem fraca. São vagos paralelos com a subida do fascismo na Europa, é uma alusão igualmente vaga ou outra a Tito (ou, ironicamente, a Saddam Hussein), são apelos francamente racistas à incompatibilidade natural árabe, ou islâmica, com a democracia. Dependem de uma cadeia de possibilidades extensa demais para se tomá-la como inevitável. SE uma democracia plena for por outro lado suscetível à sua anulação sem resistência, e SE um partido fundamentalista islâmico ganhar as eleições, e SE o fizer de modo a ter um domínio completo das instituições democráticas, e SE pensar que pode eliminar a democracia através da lei... ora, não faz sentido o esquema. Se você tem uma democracia plena, ela tem normas contra sua própria abolição. Se o arcabouço de estado é assim tão forte para eliminar a democracia com a canetada islamista, é forte o bastante para resistir a essa canetada. E ninguém garante que os islamistas** venceriam uma eleição livre, em país algum.
O argumento é mais bizarro ainda porque temos um caso de um país que ficou mais democrático, e com isso viu um partido islamista vencer as eleições. E não é um estudo de caso exatamente insignificante - é a Turquia, com quase oitenta milhões de habitantes, mais de 97% dos quais muçulmanos. (Para comparar, o Egito tem uns 90% de muçulmanos.) O resultado não foi exatamente uma transformação imediata numa teocracia distópica - pelo contrário, foi a política, como de costume, sob um partido que nem difere muito, agora que chegou ao poder, das democracias cristãs européias. Pelo contrário, é justamente ao longo e após crises não-democráticas (que são, eventualmente, inevitáveis em autocracias, especialmente nas pessoais) que, como no Irã, islamistas podem impor modelos teocráticos.
Se a Turquia torna o argumento da ditadura para salvar a democracia ridículo, ele se torna francamente uma ópera bufa, algo tragicômica, quando se diz que a casa de Saud tem que ser apoiada no seu domínio hereditário e totalitário sobre a Arábia Saudita - sim, até o nome do país significa "Arábia que pertence aos Saud - para evitar que ela seja tomada pelos maníacos religiosos uarrabitas. Afinal, a seita, da qual fazem parte os chefes da Al Qaida, veio de lá, certo? Pois é. O problema é que praticamente não existe distinção entre a seita uarrabita e a casa de Saud. O velho ibn Saud, afinal, foi quem primeiro espalhou a seita pela Arábia, e cunhou o nome pelo qual ela é conhecida. A legitimidade dos ibn Saud para virarem família real adveio do seu papel de defensores da fé - não da fé islâmica, mas especificamente da fé uarrabita. Os líderes terrenos da seita, desde sua fundação até hoje, são a casa de Saud. Existe, além da polícia política e da polícia secreta, uma polícia religiosa, responsável por entre outras coisas fechar um monte de mulheres numa casa pegando fogo porque não estavam usando véu.
Alguém explica, então, como é que alguém fala no medo de a Arábia Saudita virar uma teocracia fundamentalista?
*A assessoria de imprensa da Casa Branca, em 2001, inventou a charmosa expressão "homicide bomber." Porque veja bem, "suicida" poderia gerar alguma simpatia. Não, não faz sentido, até pelo pleonasmo.
**O uso não é universal, mas "islamista" é um jeito curto de falar "seguidor de algum dos diversos movimentos políticos centrados na idéia da implementação política da religião islâmica, geralmente de cunho conservador."
1.2.11
All the news that's fit to paste
O Egito é o maior país do mundo árabe, com 80 milhões de habitantes - mais que o dobro do Sudão, segundo colocado. É também um dos países mais influentes no Oriente Médio, com (entre otras cositas más) boa parte da base intelectual do fundamentalismo islâmico, relações próximas com Israel (o país recebe, por tratado, 2/3 da ajuda externa que Israel recebe, desde os acordos de Camp David), e uma influência "moderadora" sobre seus primos menores. Controla o canal de Suez, por onde passam, além de uma quantidade de petróleo equivalente ao total consumido pelo Brasil, boa parte das cargas do mundo - o tal petróleo representa uns 4% dos navios passando por ali. É dos lugares com as civilizações mais antigas do mundo, e, graças ao clima desértico, com das maiores proporções de artefatos preservados, que levam hordas de turistas para o Egito (e para os museus da galera que roubou eles de lá).
Desde o dia 25 de Janeiro, protestos maciços vêm acontecendo em todo o Egito, contra o regime do ditador Hosni Mubarak, que subiu ao poder com a morte de Anwar Sadat em 1981. (O assassino, um fanático fundamentalista islâmico, teria gritado "Matei o Faraó!") No sábado à noite, em particular, o crawler da CNN, e de boa parte dos jornais do mundo inteiro, lia "polícia some das ruas do Cairo" (escorraçada pelos manifestantes). O Cairo, só pra lembrar, tem sido das cidades mais importantes do mundo desde quando Paris era só a ilha onde os descendentes de Hugo Capeto ainda controlavam pouco mais que o território a que hoje se chega de trem de subúrbio, e Moscou, Pequim, nem Berlim nem ou mal existiam.
Os protestos no Egito fazem parte de uma onda de protestos em toda a África do Norte, mais o Iêmen, que começou em 17 de Dezembro, com a autoimolação em protesto de um estudante tunisiano. Na Tunísia, o ditador Zine el Abidine Ben Ali foi deposto. São, os países da África do Norte (de novo, mais o Iêmen, e mais a Síria), todos ditaduras militarísticas (mas não propriamente militares), aliadas aos EUA e à Europa em diferentes graus, e raivosamente laicas, ao contrário do outro conjunto de ditaduras americanófilas árabes, os principados do Golfo Pérsico. Nesse sentido, a conquista da Arábia Saudita inteira pela casa de Ibn Saud e pela seita Uarrabita no ocaso do Império Otomano fez com que a região do Hadramaut, onde ficam Meca e Medina, se descolasse do seu continuum natural, que sempre foi essa região mais do que a costa do Golfo. (Afinal, o pior deserto do mundo fica entre Meca e os portos do petróleo.)
Então, quando está uma comoção dessas acontecendo no mundo, sobre o que falam as capas das revistas noticiosas brasileiras no fim de semana terminado em 31 de Janeiro? Os temas são "Luciano Huck e Angélica, os bons moços," "Saiba tudo sobre o mercado de imóveis," e "Pastor Valdomiro, o grande comunicador."
Pode ser que sejam matérias pagas, ou não. Faz sentido que sejam: Veja e IstoÉ são elogios pessoais, e Época um guia de mercado. Luciano Huck foi alvo de protestos quando tentou alavancar a simpatia pelas vítimas da tragédia na Região Serrana fluminense para aumentar o número de associados de seu site de compras, a IstoÉ é conhecida pelas matérias pagas, e a capa de Época poderia muito bem pertencer a um encarte da associação comercial. Mas é irrelevante se são ou não, porque mesmo matérias que não são pagas são realizadas, hoje em dia, aparentemente ou copiando o press release (lembro de uma matéria no Valor, que ainda é o melhor atualmente, na qual nem mudavam a pessoa da ação) ou pelo menos com espírito de press release.
Exemplo disso são as matéris, num tom que caberia acompanhar com um coro do exército vermelho cantando o hino nacional da União Soviética (não confundir com a Internacional), sobre as UPPs cariocas e seus reflexos. Por exemplo, esta matéria do Globo sobre os novos empreendedores nas favelas "pacificadas." A matéria poderia muito bem ter sido escrita pela própria polícia. Não é que eu seja contra as UPPs, veja bem. Aliás, acho que o clima otimista da matéria é até relativamente justificado. Entretanto, eu, que não sou lá exatamente a pessoa mais íntima do assunto nem mais perceptiva do mundo, teria algumas perguntas desconfortáveis a fazer sobre a matéria, e não passei um minuto, que dirá um dia na Santa Marta pesquisando.
Assim, não vi menção ao zoneamento funcional da área urbanizada, nem questionamento das possibilidades ruins de relacionamento entre o comércio local e a polícia (que são simbolizadas em todo o Brasil pela "cervejinha do guarda" mencionada e justificada, e vão, Brasil afora, do achaque brando ao esquadrão da morte), nem nada falando sobre a especulação imobiliária ou processos de gentrificação. E isso tudo está presente, sem nenhum questionamento, na leitura da própria matéria. Não seria necessário nenhum jornalismo investigativo pesado, arriscado, capa e espada.
PS Respondendo à briga Dona Marta/ Santa Marta: O primeiro é nome do morro, o segundo da comunidade - e as origens deles não têm nada a ver uma com a outra. O morro tem o nome da mãe de um antigo proprietário, a comunidade da capela em volta da qual os primeiros habitantes se instalaram.
PPS A Vale (ex- do Rio Doce) disputa uma mina de carvão gigante na Mongólia, em Tavan Tolgoi. Por coincidência, é um dos locais mais ricos em fósseis do mundo - foi lá que acharam o velocirraptor. Será que alguém vai char algum fóssil no carvão? Achando, vai pro forno?
Desde o dia 25 de Janeiro, protestos maciços vêm acontecendo em todo o Egito, contra o regime do ditador Hosni Mubarak, que subiu ao poder com a morte de Anwar Sadat em 1981. (O assassino, um fanático fundamentalista islâmico, teria gritado "Matei o Faraó!") No sábado à noite, em particular, o crawler da CNN, e de boa parte dos jornais do mundo inteiro, lia "polícia some das ruas do Cairo" (escorraçada pelos manifestantes). O Cairo, só pra lembrar, tem sido das cidades mais importantes do mundo desde quando Paris era só a ilha onde os descendentes de Hugo Capeto ainda controlavam pouco mais que o território a que hoje se chega de trem de subúrbio, e Moscou, Pequim, nem Berlim nem ou mal existiam.
Os protestos no Egito fazem parte de uma onda de protestos em toda a África do Norte, mais o Iêmen, que começou em 17 de Dezembro, com a autoimolação em protesto de um estudante tunisiano. Na Tunísia, o ditador Zine el Abidine Ben Ali foi deposto. São, os países da África do Norte (de novo, mais o Iêmen, e mais a Síria), todos ditaduras militarísticas (mas não propriamente militares), aliadas aos EUA e à Europa em diferentes graus, e raivosamente laicas, ao contrário do outro conjunto de ditaduras americanófilas árabes, os principados do Golfo Pérsico. Nesse sentido, a conquista da Arábia Saudita inteira pela casa de Ibn Saud e pela seita Uarrabita no ocaso do Império Otomano fez com que a região do Hadramaut, onde ficam Meca e Medina, se descolasse do seu continuum natural, que sempre foi essa região mais do que a costa do Golfo. (Afinal, o pior deserto do mundo fica entre Meca e os portos do petróleo.)
Então, quando está uma comoção dessas acontecendo no mundo, sobre o que falam as capas das revistas noticiosas brasileiras no fim de semana terminado em 31 de Janeiro? Os temas são "Luciano Huck e Angélica, os bons moços," "Saiba tudo sobre o mercado de imóveis," e "Pastor Valdomiro, o grande comunicador."
Pode ser que sejam matérias pagas, ou não. Faz sentido que sejam: Veja e IstoÉ são elogios pessoais, e Época um guia de mercado. Luciano Huck foi alvo de protestos quando tentou alavancar a simpatia pelas vítimas da tragédia na Região Serrana fluminense para aumentar o número de associados de seu site de compras, a IstoÉ é conhecida pelas matérias pagas, e a capa de Época poderia muito bem pertencer a um encarte da associação comercial. Mas é irrelevante se são ou não, porque mesmo matérias que não são pagas são realizadas, hoje em dia, aparentemente ou copiando o press release (lembro de uma matéria no Valor, que ainda é o melhor atualmente, na qual nem mudavam a pessoa da ação) ou pelo menos com espírito de press release.
Exemplo disso são as matéris, num tom que caberia acompanhar com um coro do exército vermelho cantando o hino nacional da União Soviética (não confundir com a Internacional), sobre as UPPs cariocas e seus reflexos. Por exemplo, esta matéria do Globo sobre os novos empreendedores nas favelas "pacificadas." A matéria poderia muito bem ter sido escrita pela própria polícia. Não é que eu seja contra as UPPs, veja bem. Aliás, acho que o clima otimista da matéria é até relativamente justificado. Entretanto, eu, que não sou lá exatamente a pessoa mais íntima do assunto nem mais perceptiva do mundo, teria algumas perguntas desconfortáveis a fazer sobre a matéria, e não passei um minuto, que dirá um dia na Santa Marta pesquisando.
Assim, não vi menção ao zoneamento funcional da área urbanizada, nem questionamento das possibilidades ruins de relacionamento entre o comércio local e a polícia (que são simbolizadas em todo o Brasil pela "cervejinha do guarda" mencionada e justificada, e vão, Brasil afora, do achaque brando ao esquadrão da morte), nem nada falando sobre a especulação imobiliária ou processos de gentrificação. E isso tudo está presente, sem nenhum questionamento, na leitura da própria matéria. Não seria necessário nenhum jornalismo investigativo pesado, arriscado, capa e espada.
PS Respondendo à briga Dona Marta/ Santa Marta: O primeiro é nome do morro, o segundo da comunidade - e as origens deles não têm nada a ver uma com a outra. O morro tem o nome da mãe de um antigo proprietário, a comunidade da capela em volta da qual os primeiros habitantes se instalaram.
PPS A Vale (ex- do Rio Doce) disputa uma mina de carvão gigante na Mongólia, em Tavan Tolgoi. Por coincidência, é um dos locais mais ricos em fósseis do mundo - foi lá que acharam o velocirraptor. Será que alguém vai char algum fóssil no carvão? Achando, vai pro forno?
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