Pesquisar este blog

23.2.11

Comensalismo

Quando o Deep Blue ganhou pela primeira vez de Gary Kasparov no xadrez, isso foi noticiado no mundo inteiro; uma matéria no Babbage, coluna de ciência da Economist, fala sobre como o fato de um computador ganhar no Quem Quer Ser um Milionário é muito, muito mais significativo. A idéia parece contraintuitiva porque o xadrez é visto como uma disciplina intelectual mais avançada, mas se você parar para pensar isso é justamente porque o xadrez é mais adequado ao jeito de se pensar de um computador, portanto mais difícil para humanos. As damas, primas simplificadas do xadrez, já foram "resolvidas," isto é, a equação complexa representada pelas possibilidades de um jogo já foi completamente mapeada; o xadrez não está longe disso.

O Babbage - os jornalistas da Economist são anônimos até para as colunas, no outro extremo dos jornais brasileiros que até para matérias comuns têm nome do autor - conclui com uma nota meio filosófica-futurista, falando de que o fato de máquinas eventualmente ficarem realmente "mais inteligentes que nós" não vai levar à dominação das máquinas, e que ele pelo menos vai ficar muito feliz de poder ter um intelecto superior fazendo as coisas por ele. A idéia me remeteu imediatamente ao conto do Asimov "Galley Slave" (o título é um trocadilho - significa escravo condenado às galés, mas galley proof também quer dizer prova tipográfica, o "rascunho da impressora" de livros pré-digitais). No conto, um professor havia tentado convencer a justiça de que um robô-assistente houvera alterado, incorretamente e descumprindo ordens, seu livro antes deste ir pro prelo; o objetivo do professor ao montar a farsa seria desacreditar a própria idéia de robôs trabalhadores intelectuais. Ao ser desmascarado, o professor faz uma defesa bastante convincente da sua motivação: impedir que os seres humanos fossem relegados a uma vida de irrelevância, decidindo apenas o que os robôs iriam pesquisar. O discurso é rebatido pela protagonista, a robopsicóloga Susan Calvin, mas não de maneira muito convincente.

Em outras palavras, não é tanto o domínio de máquinas que nos escravizariam, como em um zilhão de ficções científicas anteriores, o que se tem a temer, mas a idéia de ser reduzido à insignificância por essas máquinas; se tornar um dono de escravos ou um parasita, se é que há diferença. O medo de uma situação ainda nascente expressado no conto é realizado talvez da forma mais completa na série da Cultura, de Iain M. Banks, que a princípio parece apenas uma utopia anarcocomunista onde todo mundo tem o corpo que quiser, nenhum preconceito, e faz sexo doze vezes por dia, com a ajuda de Mentes, inteligências artificiais bilhões de vezes mais inteligentes que nós e (comparadas ao ser humano) basicamente onipotentes; uma delas faz em segundos, para um sujeito que quer fazer um discurso após eles observarem o planeta Terra, uma cópia dum sabre de luz do guerra nas estrelas. Uma cópia funcional. Apesar de ser ele mesmo socialista por convicção, assim como o Asimov tecnofilíaco faz uma defesa eloquente do ludismo Banks, principalmente nos livros em que as tais Mentes são protagonistas, faz da sua uma utopia bem condicional e falha. E nele, mais uma vez, surge o tema da malaise existencial, frequentemente questionada, da irrelevância dos seres humanos frente às Mentes.

Claro que toda essa angst frente à ascensão da Máquina só faz sentido dentro de um esquema conceitual bastante específico, que deve ignorar ou rejeitar um punhado de coisas. Por exemplo, deve-se ter uma "consciência étnica" como espécie. Depois, deve-se pensar a partir dessa consciência étnica na inferioridade da humanidade como um todo, não do indivídio, já que individualmente a imensa maioria de nós já é irrelevante frente a entidades que podem não ser autoconscientes da maneira como concebemos, mas certamente atuam e "pensam," como estados, religiões, igrejas ou corporações. E deve-se rejeitar o transumanismo, já que existiria uma barreira entre nós e as máquinas, sem que nós mesmos pudéssemos virar as máquinas.

Curioso é que são essas as mesmas premissas necessárias para tornar plausível o conflito humano-mutante nas revistinhas da Marvel, mais a falta de nego se dar conta de que "os mutantes" que suplantariam a humanidade eventualmente são os próprios filhos deles, e não uma espécie alienígena.

Um comentário:

nenhum disse...

1-) Jeopardy é diferente do Quem quer ser milionário porque o concorrente recebe as respostas e elabora as perguntas.

2-) Ironicamente, com o advento da internet e o fato dos autores da Economist participarem dos podcasts da revista quase todos eles foram "desmascarados".