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18.2.11

As palavras e as liberdades

Pelo menos estou em boa companhia. Semana retrasada, escrevi aqui que


Na Líbia e nas tiranias monárquicas do Golfo Pérsico, por outro lado, a ditadura barra pesadíssima está combinada com muito, muito dinheiro, graças ao petróleo. Assim, os tiranos podem simplesmente subornar o povo, em boa parte - e no Golfo, principalmente nos países menores mas em algum grau também na Arábia Saudita, boa parte da população pobre, mais disposta a se insatisfazer, pode simplesmente ser deportada sumariamente, já que não se trata de cidadãos, mas de trabalhadores do sul e sudeste asiáticos, com vistos temporários e precários e que já são, em muitos casos, confinados em guetos.


Não está explícita, mas implícita de forma bem clara a idéia de que "A Líbia e as monarquias do Golfo provavelmente não verão nada parecido com o que ocorreu na Tunísia e no Egito." A minha boa companhia é basicamente todo mundo, como pode ser visto por exemplo no sapatômetro criado pela Economist, que mantém-se utilizando-o orgulhosamente, mesmo depois de ver que a correlação dele com a próxima revolta tende a zero. O Sapatômetro discorda de mim quanto à Líbia, mas talvez isso seja só porque, afinal de contas, um déspota que não é apoiado pelo Ocidente mereça mais ser apeado de seu trono.

Tanto no Bahrain quanto na Líbia e na Argélia, a mensagem que os tiranos ouviram do Egito e da Tunísia, aparentemente, foi "Ben Ali e Mubarak caíram porque são uns frouxos." Assim, a polícia e o exército em todos os três países já dispararam contra os manifestantes; no Bahrain o rei até mandou fechar hospitais. Espero que não dê certo. Na Líbia, algumas cidades no leste do país já se subtraíram ao controle de Qadafi, imagino que após terem que enfrentar as guarda costas ninjas gostosas do ditador.

Uma possibilidade que imaginei para explicar a falência das bolsas de aposta sobre o próximo dominó é a questão da inteligibilidade. Parece razoável supor que um dos fatores na onda revolucionária que varre o mundo árabe é justamente a parte do "árabe," isto é a inteligibilidade mútua dos povos em revolta, combinada com a facilidade de comunicação moderna. Assim, um egípcio pode pedir dicas de como enfrentar o governo a um tunisiano, e por aí em diante. Ora, essa inteligibilidade mútua é relativa; o "árabe padrão moderno," baseado no árabe clássico e ensinado nas escolas, não é necessariamente inteligível facilmente para todo mundo que fale árabe; por mais que os índices de alfabetização nos países árabes variem de altos a muito altos, muita gente não se sente lá muito à vontade com essa língua culta. Com isso, o "índice de transmissão da revolta," baseado na inteligibilidade mútua dos dialetos árabes (línguas, na verdade) talvez deva ser somado às tentativas de índices como a da Economist.

E falando em línguas e palavras e na Revolução de Sidi Bouzid, este post quase foi chamado "Cheirinho de Jasmim." Mas aí é que me dei conta: "Jasmim" (a cor, não a flor) foi o nome dado às revoluções por parte da mídia ocidental, principalmente americana, situando-a num continuum com as revoluções de nomes coloridos na Ucrânia, Geórgia, e Irã. Um continuum que parece problemático, quando se lembra que as revoluções coloridas foram incentivadas e aplaudidas pelas potências ocidentais, já que seus alvos eram ditadores que não eram amiguinhos como Mubarak, Ben Ali, Bouteflika, ou os tiranetes do Golfo. Ou que políticos poderosos lideraram as revoluções coloridas, enquanto as revoluções de Sidi Bouzid foram movimentos populares espontâneos. Ou que as coloridas se deram em sistemas com um verniz, ainda que fino, de democracia, enquanto as árabes se deram em ditaduras nuas e cruas.

Ah sim: o "índice de transmissão de revolta" não se pretenderia, mesmo que fosse válido, explicar tudo. No Bahrain, a tensão entre a família reinante sunita e o povo xíita, mais aquela causada pelo paiseco sediar a Quinta Frota do Império, são explicações mais razoáveis. Aliás, será que Obama, caindo o rei, vai fingir que apoiou de forma comedida desde o princípio os revoltosos, como no Egito? O investimento representado pelo quartel-general da Quinta Frota não deve ser pouca coisa.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nas ditaduras em geral, existe sempre o momento crucial, que é saber se o exército, recebendo a ordem para tanto, atirará no próprio povo e se vier atirar até quando persistirá fazendo-o. O exército chinês atirou em 1989. O exército russo não o fez em 1991. O exército iraniano em 1979 atirou durante um certo tempo, depois não o fez mais. Tudo depende muitíssimo da cultura do país, da vinculação do exército com o seu próprio povo, do tempo em que a ditadura está no poder; é claro, das condições econômicas (pouca gente lembra que a China de 1989 já tinha começado a melhorar economicamente há alguns anos e que a União Soviética de 1991 estava praticamente atingido o seu nadir econômico - bolso pesa sempre). No mais, já no século XVI, o grande amigo de Montaigne, Étienne de la Boétie, falecido em 1563, no seu “Discurso sobre a servidão voluntária”, mencionava que a tirania somente subsiste porque há um certo consenso quanto à sua manutenção, uma espécie de consentimento tácito dos oprimidos. "Cum granum salis", Étienne de la Boétie não contava com os exageros do Estado policial moderno de feição nazista ou estalinista, ele estava certíssimo.
a) Joaquim Dantas. De Recife-PE.
joaquim.dantas@uol.com.br