Se aproxima (na verdade era pra já ter chegado há um mês, atraso que deixa desesperada nossa presidenta elétrica) a estação das chuvas na Serra do Mar. Com ela, mais uma vez ficará patente a balela que é a declaração de que "o Brasil não tem desastres naturais." Choverá mais do que no Furacão Sandy que arrasou os EUA, sobre solos finos cobrindo a pedra gneiss íngreme, e isso resultará na - quase inevitável - morte de dezenas. Talvez centenas. Possivelmente milhares. É uma tragédia recorrente: em 2010 foram S. Luiz do Paraitinga e Angra, além do Rio de Janeiro, em 2011 foi a Serra dos Órgãos e em Santa Catarina. E esses são os grandes, os que ganham notícia; mortes em menor escala, nas periferias e ocupações, não ganham os jornais. As mortes recorrentes são recorrentemente atribuídas, como explicação universal, à "moradia em situação de risco," com tal força que apenas recentemente começou a se cogitar coisas como alarmes, evacuações, e alertas de desastre nessa serra propensa a desastres e com 80 milhões de pessoas em cima. Assim, parece à primeira vista paradoxal que quando se fala em remover pessoas de situações de alto risco, as próprias pessoas resistam, e ainda sejam apoiadas por muitos.
Os boatos que "explicam a verdadeira razão" das remoções parecem coisa de paranóico. Especulação imobiliária, no fundo de uma favela? Hotel do Eike Batista, a ser alcançado só pelo plano inclinado da mesma favela? As soluções alternativas, pouco razoáveis, propugnando uma contenção de encostas sem remoção dos atuais barracos (pode até ser feita, provavelmente a preço de ouro, uma contenção ali, mas durante a obra os barracos teriam que pular fora). Mas por que as pessoas, se sabem da tragédia recorrente das chuvas, se inclinam a esse tipo de explicação? Bem, talvez seja porque a prefeitura, que pode até ter razão nesse caso, mente como um tapete, no feliz trocadilho inglês, sobre remoções. Depois de gritar lobo falsamente por duas vezes, o menino foi devorado na terceira; Dudinha (e todos os prefeitos antes dele) gritou o lobo da remoção essencial muito mais de duas vezes, e quem pode ser devorado não é ele.
Assim, as pessoas removidas para a obra da Transoeste, justificada como instalação de um transporte de massa ligando o eixo oeste da cidade, realmente extremamente necessária (junto foram umas pistinhas de carro, que ninguém é de ferro), continuam sem lar até hoje, e os terrenos foram usados para outros fins. Assim, a Vila Autódromo, já parcialmente urbanizada, sem nenhum risco ambiental, e que o plano do parque olímpico aprovado em concurso preservava, vai pro saco com justificativas nebulosas (ora é a olimpíada, ora BRT, ora meio ambiente). E por aí em diante. Como confiar numa prefeitura dessas? Como não acreditar que quer remover algo precioso para dar ao Eike, se é exatamente o que o aliado Cabral quer fazer no Maracanã?
E como não dar razão a quem não quer ser removido, se as remoções, até hoje, são para depósitos de gente - talvez menos longínquos e carentes de infraestrutura do que foi Cidade de Deus, mas igualmente desprovidos de qualquer planejamento urbano? Um imenso conjunto-bairro sem espaço para o comércio ou outras atividades além da moradia não apenas é um lugar desagradável de morar: para quem não tem carro nem tempo, é inviável mesmo. Sem cabelereiro (e vá conseguir um emprego sem cabelo arrumado, especialmente se o cabelo for "ruim"), sem igreja, sem bar, sem mercadinho que deixa comprar fiado... (a imprensa, ao invés de reconhecer a carência urbanística, denuncia os que tentam preenchê-la). Isso tudo, claro, supondo que há um conjunto habitacional habitável esperando os removidos, o que está longe de ser sempre verdade, como mostra esta reportagem d'O Globo:
Depois de quase três anos vivendo em situação precária no 3º Batalhão de Infantaria (BI), em São Gonçalo, parte das 89 famílias sobreviventes da tragédia do Morro do Bumba, em Niterói, vê a possibilidade de enfim se mudar para uma casa própria se distanciar. A entrega de apartamentos do programa Minha Casa Minha Vida prometida para julho deste ano deve ser adiada pela construtora, após dois dos 11 prédios erguidos no bairro do Fonseca apresentarem rachaduras, como mostrou ontem o “RJ-TV”, da TV Globo. Pelo menos um deles terá que ser inteiramente demolido e reerguido. Em relação ao outro, ainda está sendo analisado se será posto abaixo ou se há possibilidade de ser recuperado. Cada edifício custou R$ 2 milhões da verba total de R$ 27 milhões liberada pela Caixa Econômica Federal para a construtora Imperial Serviços Limitada
Favelas são, realmente, muitas vezes construídas em áreas de risco, por motivos óbvios: são as áreas que a cidade formal não quis ocupar. São áreas ruins, por algum motivo (favelas na lonjura da periferia têm mais chances de serem erguidas em terrenos razoáveis - nesse caso a condição negativa é a própria lonjura). Se não fossem, estariam certos os reacionários que acham que favelados são "folgados" inescrupulosos que simplesmente querem morar bem sem pagar pelos terrenos. Então é, mais que verdade, quase axioma que muitas favelas são complicadas de resolver urbanisticamente, e uma proporção nada insignificante tem que ser removida mesmo. O problema é quando se mistura essa proposição com o preconceito, a truculência, e os interesses velados, que fazem com que a remoção de gente que atrapalha os negócios ser mais comum do que a de gente que está em risco. Num exemplo paulistano em que se mistura a razoabilidade da remoção com o interesse escuso, a favela do Moinho, que pegou fogo duas vezes este ano, é realmente um lugar inabitável. Foi construída sobre terreno contaminado; não se guarda água no lugar por causa disso. Mas o motivo que move a sua remoção (e, quem sabe, os incêndios) é, antes, o interesse na área pela CPTM, bem como a desvalorização que a favela causa no entorno. Qualquer alegação ambiental fica ridícula, quando o bosquinho da favela, que escapou ao fogo, foi desmatado por uma empresa de estacionamento.
E assim se vão os lobos a devorarem aldeias.
PS Este post, de 19 dezembro de 2012, foi anterior em exatamente 3 meses às chuvas torrenciais que atingiram Petrópolis com mais água do que o Katrina em Nova Órleans. Quando fui pegar o outro post para apensá-lo a este, além de fazer este pós-escrito, sobre como "área de risco" em algum grau é toda a Serra do Mar, descobri que Kassab em 2011 fez exatamente a mesma coisa que Dilma em 2013. A única diferença é que não se sabe o que foi fazer depois da declaração - Dilma continuou seu passeio turístico em Roma.
Auferre, trucidare, rapere, falsis nominibus imperium; atque, ubi solitudinem faciunt, pacem appellant.
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19.12.12
17.12.12
Por isso que esse país não vai pra frente
Matéria do Estadão denuncia: impostos invisíveis são responsáveis por até 93% do preço dos produtos. A matéria foi tuitada pela economista Elena Landau com a eterna invectiva "por isso que esse país não vai pra frente."
Até entendo o comentário, se o que está sendo criticado é a ignorância matemática ou a histeria midiática. Porque a matéria-infográfico é uma porcaria. Vejamos:
Salário de 3500 reais: IR de 22,5%, menos dedução, e Previdência de 20%. O tributarista do Estadão pelo visto não sabe o que significa alíquota marginal. Alternativamente, pode ser um estagiário, caso em que se entende que não saiba como funciona imposto de renda. A alíquota de 22,5% sobre rendimentos acima de 3000 reais não atinge toda a renda, mas só os 500 reais acima de 3000. A alíquota efetiva de quem ganha 3500 é 8%. E previdência não é imposto. (Se fosse, o Estadão não defenderia sua privatização.) Nas mesmas bases previstas pelo Estadão, na calculadora da Receita, tem-se 1,8%.
Vinho fino importado: os tais 93%, assumindo-se um IPI de 30%. Engraçado que o IPI sobre vinho não é uma porcentagem...
E, o mais divertido: no país do Estadão, o IPTU é maior ainda do que como eu queria que fosse. Alguém que paga 1200 de aluguel, segundo o Estadão, morre em 350 por mês de IPTU. Ora, como dá pra ver neste anúncio, nem que o apartamento custasse 8.000 por mês. (Caso em que seria 220)
E isso sem nem falar de incorporarem ao "preço dos alimentos" o imposto de renda das empresas ou a CSLL.
A única coisa absurda em que o Estadão tem razão é imaginar que alguém que ganha 3500 por mês compra um iPhone de 2000 e um carro de 30.000...
Até entendo o comentário, se o que está sendo criticado é a ignorância matemática ou a histeria midiática. Porque a matéria-infográfico é uma porcaria. Vejamos:
Salário de 3500 reais: IR de 22,5%, menos dedução, e Previdência de 20%. O tributarista do Estadão pelo visto não sabe o que significa alíquota marginal. Alternativamente, pode ser um estagiário, caso em que se entende que não saiba como funciona imposto de renda. A alíquota de 22,5% sobre rendimentos acima de 3000 reais não atinge toda a renda, mas só os 500 reais acima de 3000. A alíquota efetiva de quem ganha 3500 é 8%. E previdência não é imposto. (Se fosse, o Estadão não defenderia sua privatização.) Nas mesmas bases previstas pelo Estadão, na calculadora da Receita, tem-se 1,8%.
Vinho fino importado: os tais 93%, assumindo-se um IPI de 30%. Engraçado que o IPI sobre vinho não é uma porcentagem...
E, o mais divertido: no país do Estadão, o IPTU é maior ainda do que como eu queria que fosse. Alguém que paga 1200 de aluguel, segundo o Estadão, morre em 350 por mês de IPTU. Ora, como dá pra ver neste anúncio, nem que o apartamento custasse 8.000 por mês. (Caso em que seria 220)
E isso sem nem falar de incorporarem ao "preço dos alimentos" o imposto de renda das empresas ou a CSLL.
A única coisa absurda em que o Estadão tem razão é imaginar que alguém que ganha 3500 por mês compra um iPhone de 2000 e um carro de 30.000...
Quanto vale ou é por quilo?
Quanto o salário médio de cada capital pode comprar em cestas básicas pelo preço médio da mesma capital, tirado daqui
Florianópolis: 1.573 / 283,68 = 5,54 cestas/residência
Brasília: 1.404 / 266,85 = 5,26 cestas/residência
Vitória: 1.498 / 295,31 = 5,07 cestas/residência
Porto Alegre: 1.431 / 286,83 = 4,98 cestas/residência
Curitiba: 1.273 / 270,84 = 4,70 cestas/residência
Goiânia: 1.092 / 237,92 = 4,58 cestas/residência
Rio de Janeiro: 1.204 / 272,10 = 4,42 cestas/residência
Belo Horizonte: 1.226 / 282,82 = 4,33 cestas/residência
Aracaju: 875 / 205,63 = 4,25 cestas/residência
São Paulo: 1.180 / 299,26 = 3,94 cestas/residência
Recife: 894 / 248,05 = 3,60 cestas/residência
Salvador: 786 / 220,49 = 3,56 cestas/residência
João Pessoa: 802 / 235,35 = 3,40 cestas/residência
Natal: 803 / 246,43 = 3,25 cestas/residência
Fortaleza: 701 / 244,55 = 2,86 cestas/residência
Belém: 697 / 270,22 = 2,57 cestas/residência
Manaus: 641 / 284,85 = 2,25 cestas/residência
Florianópolis: 1.573 / 283,68 = 5,54 cestas/residência
Brasília: 1.404 / 266,85 = 5,26 cestas/residência
Vitória: 1.498 / 295,31 = 5,07 cestas/residência
Porto Alegre: 1.431 / 286,83 = 4,98 cestas/residência
Curitiba: 1.273 / 270,84 = 4,70 cestas/residência
Goiânia: 1.092 / 237,92 = 4,58 cestas/residência
Rio de Janeiro: 1.204 / 272,10 = 4,42 cestas/residência
Belo Horizonte: 1.226 / 282,82 = 4,33 cestas/residência
Aracaju: 875 / 205,63 = 4,25 cestas/residência
São Paulo: 1.180 / 299,26 = 3,94 cestas/residência
Recife: 894 / 248,05 = 3,60 cestas/residência
Salvador: 786 / 220,49 = 3,56 cestas/residência
João Pessoa: 802 / 235,35 = 3,40 cestas/residência
Natal: 803 / 246,43 = 3,25 cestas/residência
Fortaleza: 701 / 244,55 = 2,86 cestas/residência
Belém: 697 / 270,22 = 2,57 cestas/residência
Manaus: 641 / 284,85 = 2,25 cestas/residência
14.12.12
A ideologia acidental
A política brasileira tem se caracterizado por uma rejeição da ideologia, pelo menos às claras. Nenhum partido de esquerda fala em aumentar imposto. Nenhum partido de direita se assume privatista. E por aí em diante; a idéia de defender sua ideologia contra a alheia foi substituída pela idéia de, pelo menos às claras, tentar agradar a todos. O embate ideológico, quando existe, é escamoteado, fazendo com que a política pareça ainda mais resumir-se a uma luta pelo poder do que é na verdade. Não deixa de ser curioso: políticos se apresentam como menos idealistas do que são, convencidos que estão (ainda mais depois da dupla de postes lulesca, de cujas eleições se tirou todas as idéias erradas) da rejeição pelos eleitores de grandes idéias. A "gestão" pseudoempresarial, ideologia que começou nas escolas de negócios e pela qual, em 2008, muitas delas fizeram mea culpa, virou um consenso brasileiro em quase todos os matizes ideológicos, ajudando ainda mais a fazer com que a ideologia que haja em algum partido fique muito bem escondida.
Nessa situação, não deixa de ser um refresco ver um debate claramente ideológico entre uma presidenta de centro-esquerda, que quer forçar as companhias elétricas privatizadas a abaixarem seus preços, e o partido que se reinvindica líder da oposição de direita, que defende as empresas contra o governo, e propõe como solução para o mesmo problema, ao invés do corte de lucros, o corte de impostos sobre lucros de empresas e de fundos do trabalhador. O PSDB está defendendo suas convicções ideológicas como partido liberal mesmo ao custo de impopularidade. Parece uma vitória clara da ideologia, não? Há algo que exprima mais a convicção ideológica de um partido do que defendê-la mesmo contra a vontade popular? Mas como diabos o PSDB, que fugiu tanto de se assumir liberal de direita (até as campanhas moralistas contra "o partido do aborto e do kit gay" eram terceirizadas e negadas em público) foi se tomar de brios ideológicos de repente?
A resposta, infelizmente pra quem gostaria de ver uma discussão ideológica na política, é que o embate ideológico é apenas coincidental. A disputa é muito mais simples e,como cada vez mais na política brasileira, paroquial; paradoxalmente, o sistema federativo confuso e misturado significa que se pensa no seu estado ou município contra o resto da federação ou a União acima de tudo. Os governadores do PSDB não estão defendendo empresas privadas, mas sim as companhias estatais de energia elétrica pertencentes a seus respectivos estados; nenhum tucano que não tenha interesse direto está lá se coçando muito contra a redução da conta de luz da Dilma. A questão é só de dinheiro no caixa estadual mesmo, e ideológica só por acidente e coincidência.
O tempora o mores.
Nessa situação, não deixa de ser um refresco ver um debate claramente ideológico entre uma presidenta de centro-esquerda, que quer forçar as companhias elétricas privatizadas a abaixarem seus preços, e o partido que se reinvindica líder da oposição de direita, que defende as empresas contra o governo, e propõe como solução para o mesmo problema, ao invés do corte de lucros, o corte de impostos sobre lucros de empresas e de fundos do trabalhador. O PSDB está defendendo suas convicções ideológicas como partido liberal mesmo ao custo de impopularidade. Parece uma vitória clara da ideologia, não? Há algo que exprima mais a convicção ideológica de um partido do que defendê-la mesmo contra a vontade popular? Mas como diabos o PSDB, que fugiu tanto de se assumir liberal de direita (até as campanhas moralistas contra "o partido do aborto e do kit gay" eram terceirizadas e negadas em público) foi se tomar de brios ideológicos de repente?
A resposta, infelizmente pra quem gostaria de ver uma discussão ideológica na política, é que o embate ideológico é apenas coincidental. A disputa é muito mais simples e,como cada vez mais na política brasileira, paroquial; paradoxalmente, o sistema federativo confuso e misturado significa que se pensa no seu estado ou município contra o resto da federação ou a União acima de tudo. Os governadores do PSDB não estão defendendo empresas privadas, mas sim as companhias estatais de energia elétrica pertencentes a seus respectivos estados; nenhum tucano que não tenha interesse direto está lá se coçando muito contra a redução da conta de luz da Dilma. A questão é só de dinheiro no caixa estadual mesmo, e ideológica só por acidente e coincidência.
O tempora o mores.
10.12.12
Minhocão, espécie de território controlado
Num post anterior, comentei sobre a demolição do tenebroso minhocão da Perimetral, no Rio, e a súbita conversão da esquerda à religião rodoviarista de Robert Moses. Mas, lamentavelmente, ao falar da cidade de "classes" sonhada pelo prefeito Eduardo Paes, esqueci de um pequeno detalhe. Ou melhor, um detalhe enorme. É que enquanto demole um viaduto rodoviário na área de expansão do centro de negócios, a prefeitura está erguendo novos ao longo de bairros mais afastados. Em contraste com obras do metrô na Zona Sul, inteiramente subterrâneas, ou com o enterramento da via expressa entre Santos Dumont e Francisco Bicalho, o BRT Transcarioca erguerá diversos viadutos, além da barreira da própria via expressa, ao longo dos bairros que ficam entre Jacarepaguá e a Penha.
E não, não se trata - como, digamos, no pedaço que sobrará da Perimetral, entre a Francisco Bicalho e a Ponte - de áreas industriais, ou, como na Barra, de amplas áreas aonde um viaduto não causa tanto problema. São áreas densas, em alguns casos de comércio intenso, que ficarão à sombra do BRT. Nesse sentido, ele é pior do que a parte praça Mauá-Francisco Bicalho da Perimetral quando originalmente construída, já que então cortava um porto em atividade. E por isso mesmo, ao contrário dos outros dois BRTs, que ligam áreas pouco adensadas e portanto têm espaço para sair barato sem prejuízo maior ao urbanismo, o BRT Transcarioca desde o começo foi questionável como projeto; a maior vantagem dele em relação a um monotrilho, por exemplo, acaba sendo a velocidade com que fica pronto, e a diferença de custo não é mais tão grande. (É a mesma lógica de Cabral preferir fazer uma segunda estação de metrô na General Osório ao invés de desapropriar os prédios necessários para estender a via a partir da estação existente.)
PS Num projeto de BRT realmente asinino, o Expresso Tiradentes em São Paulo, fez-se logo, em condições semelhantes, um viaduto em todo o percurso. (O preço, portanto, quase o de um metrô.)
E não, não se trata - como, digamos, no pedaço que sobrará da Perimetral, entre a Francisco Bicalho e a Ponte - de áreas industriais, ou, como na Barra, de amplas áreas aonde um viaduto não causa tanto problema. São áreas densas, em alguns casos de comércio intenso, que ficarão à sombra do BRT. Nesse sentido, ele é pior do que a parte praça Mauá-Francisco Bicalho da Perimetral quando originalmente construída, já que então cortava um porto em atividade. E por isso mesmo, ao contrário dos outros dois BRTs, que ligam áreas pouco adensadas e portanto têm espaço para sair barato sem prejuízo maior ao urbanismo, o BRT Transcarioca desde o começo foi questionável como projeto; a maior vantagem dele em relação a um monotrilho, por exemplo, acaba sendo a velocidade com que fica pronto, e a diferença de custo não é mais tão grande. (É a mesma lógica de Cabral preferir fazer uma segunda estação de metrô na General Osório ao invés de desapropriar os prédios necessários para estender a via a partir da estação existente.)
PS Num projeto de BRT realmente asinino, o Expresso Tiradentes em São Paulo, fez-se logo, em condições semelhantes, um viaduto em todo o percurso. (O preço, portanto, quase o de um metrô.)
7.12.12
O oligopólio dos homens bons
Não, não virei filial do Professor Hariovaldo. Os homens bons em questão foram assim chamados por si mesmos, como nessa capa da Veja. E achei curioso, nas duas últimas notícias sobre Luciano Huck, como esse status é pouco questionado. Pedindo o perdão de fazer algo que abomino - a comparação com os EUA.
Notícia 1: Luciano Huck constrói casa e demole sonho do boxeador Touro Moreno.
Luciano Huck tem um programa no qual reconstrói a casa de alguém - olha como ele é bonzinho - inspirado em programa similar da TV americana. No caso de Touro Moreno, aquele sujeito que viu dois filhos subirem no pódio olímpico de tão fanático por boxe que ele é, a casa em questão ocupou um terreno que Moreno comprou com as economias de décadas, para fazer uma academia de boxe. Porque TALVEZ o boxe seja mais importante pra ele do que uma confortável casa classe média. Incidentalmente, a conta de luz também foi pra 600 mangos.
A notícia sendo divulgada em notinhas online sem maior importância (de novo: a família Moreno é responsável por um quinto das medalhas olímpicas brasileiras), Huck afirmou, por meio de sua assessoria, que o programa apenas entregou o prometido pelo quadro.
Notícia 1: Luciano Huck constrói casa e demole sonho do boxeador Touro Moreno.
Luciano Huck tem um programa no qual reconstrói a casa de alguém - olha como ele é bonzinho - inspirado em programa similar da TV americana. No caso de Touro Moreno, aquele sujeito que viu dois filhos subirem no pódio olímpico de tão fanático por boxe que ele é, a casa em questão ocupou um terreno que Moreno comprou com as economias de décadas, para fazer uma academia de boxe. Porque TALVEZ o boxe seja mais importante pra ele do que uma confortável casa classe média. Incidentalmente, a conta de luz também foi pra 600 mangos.
A notícia sendo divulgada em notinhas online sem maior importância (de novo: a família Moreno é responsável por um quinto das medalhas olímpicas brasileiras), Huck afirmou, por meio de sua assessoria, que o programa apenas entregou o prometido pelo quadro.
— Quanto à casa, fizemos aquilo com que nos comprometemos: se a família vencesse a prova, reformaríamos a casa, e foi o que fizemos. O ringue e todos os equipamentos doados foram um tempero a mais. Se eles querem uma academia, podem se inscrever no Mandando Bem, nosso quadro de fomento ao empreendedorismo. Quem sabe...
A resposta é, no mínimo, desrespeitosa. Não apenas não tenta sequer fingir que está compungida, lavando as mãos que nem se fosse teleatendimento de companhia telefônica, como dá o passo extra de ironizar a situação da família Moreno. Alguém imagina essa situação nos EUA? Um programa putativamente "bonzinho," denunciado pela família do Phelps, dando uma resposta dessas?
A segunda notícia: Luciano Huck pego dirigindo bêbado. Como todo rico pego em tais circunstâncias, tomou "só uma tacinha de vinho" e se recusou ao bafômetro. O "humorista" Rafinha Bastos destila sua verve afiada chamando Huck, no Facebook, de playboy inconsequente. Não, não é lá muito engraçado, mas também queriam o que do Rafinha Bastos? Ameaçado de processo, nosso Mark Twain pediu desculpas.
De novo: alguém imagina isso nos EUA? Um humorista, ou qualquer outra pessoa (vamos ser sinceros, chamar o Rafinha de humorista é como chamar o Pinheiros de rio - só correto tecnicamente), chama um apresentador que se apresenta como bom moço, preso por dirigir bêbado, de "playboy inconsequente" e recua após ameaça de processo? E o contraste, claro, com as diversas ofensas raciais, homofóbicas, demofóbicas, machistas e o que seja de Rafinha Bastos, que ao contrário não lhe causam problema algum. Ênfase na imagem de Huck, por favor. Não é um polemista que vive de despertar ódios sendo pego e processando quem xinga. E para a falta de interesse da imprensa em geral, e em especial da imprensa de escândalos, por ambos os casos. Principalmente para o primeiro, em que do outro lado está, repita-se, sublinhe-se, uma família pobre mas que rendeu ao Brasil medalhas olímpicas. Sério, a biografia do Touro Moreno é impressionante. De fazer qualquer um que foda com ele e faça pouco caso ser crucificado pela mídia.
Só que, evidentemente, não. Por que isso? Por que não temos uma mídia sentindo cheiro de sangue com o comportamento não exatamente escrupuloso do "bom moço" oficial do maior grupo de mídia do país? Quando falo que nos EUA, ou na maioria dos países, seria diferente não é pela decência deles mas exatamente pelo contrário. Do que estou falando é de não termos por aqui o tablóide de escândalo (não, a Veja não conta). De não termos a mídia se engalfinhando, se fagocitando, se degladiando. Nossa mídia se assemelha mais a um clube de cavalheiros londrino, em que até as rivalidades mais mortais são civilizadas, do que a uma rinha de cães.
Reflexo, claro, do oligopólio que ela representa. Uma dúzia de famílias concentram, com a sociedade de boa parte da classe política Brasil afora, todos os principais canais de TV, jornais, rádios, revistas, portais de notícias, e distribuidoras de cabo. Nessa situação, até o animal que, em outros climas menos civilizados, é o mais frágil do cenário de entretenimento, o bom moço, é blindado. E fica a pergunta: se a Globo blinda o Luciano Huck, o quanto mais não blinda gente mais importante? O quanto pode se falar em liberdade de imprensa num país em que a mídia (com poucas e irrelevantes exceções) fala com uma só voz?
4.12.12
Rockin' in Rio
A Firjan, Federação das Indústrias do Rio de Janeiro, cujo presidente eterno é cunhado de certa vereadora carioca udenista e higienista, publicou seu "índice de desenvolvimento municipal," o IFDM no qual tenta avaliar as condições - inclusive as de desenvolvimento social, segundo a federação - para o bom crescimento econômico. É curioso comparar a lista com o IDH, em que o peso do "desenvolvimento" econômico é menor, e maior o peso de saúde e educação.
À direita, a posição de cada município no "IFDM," dentro do estado do Rio. À esquerda (sem trocadilhos), no IDH
1 Niterói 4°
2 Rio de Janeiro 6°
3 Volta Redonda 7°
4 Nova Friburgo 11°
5 Resende 3°
6 Barra Mansa 12°
7 Petrópolis 13°
8 Itatiaia 17°
9 Iguaba Grande 78°
10 Pinheiral 66°
11 Cabo Frio 36°
12 Armação dos Búzios 81°
13 Quatis 53°
14 Arraial do Cabo 15°
15 Macaé 8°
16 Mangaratiba 51°
17 Teresópolis 10°
18 Cordeiro 67°
19 Nilópolis 91°
20 Itaperuna 14°
21 Maricá 29°
22 São Gonçalo 24°
23 Três Rios 19°
24 Barra do Piraí 44°
34 Rio das Ostras 2°
36 Angra dos Reis 5°
42 Itaguaí 9°
58 Porto Real 1°
Nada demais quando os dois índices estão pelo menos perto um do outro. Mas alguns municípios com muito dinheiro correndo e boa infraestrutura física e administrativa amargam posições lamentáveis no IDH. Porto Real, por exemplo, é a cidade mais "pronta para o desenvolvimento" do estado, e a 58ª em IDH.
E caveat emptor: a integração entre economias e sociedades de diversos municípios, bem como a disparidade de tamanho entre eles, torna essa comparação complicada. O Rio, com 7 milhões de pessoas, não é bem comparável a Itaperuna, com 95.000. Niterói tem o IDH assim tão alto mas menor do que o da Zona Sul do Rio, da qual não deixa de ser hoje uma extensão. Etc etc etc.
À direita, a posição de cada município no "IFDM," dentro do estado do Rio. À esquerda (sem trocadilhos), no IDH
1 Niterói 4°
2 Rio de Janeiro 6°
3 Volta Redonda 7°
4 Nova Friburgo 11°
5 Resende 3°
6 Barra Mansa 12°
7 Petrópolis 13°
8 Itatiaia 17°
9 Iguaba Grande 78°
10 Pinheiral 66°
11 Cabo Frio 36°
12 Armação dos Búzios 81°
13 Quatis 53°
14 Arraial do Cabo 15°
15 Macaé 8°
16 Mangaratiba 51°
17 Teresópolis 10°
18 Cordeiro 67°
19 Nilópolis 91°
20 Itaperuna 14°
21 Maricá 29°
22 São Gonçalo 24°
23 Três Rios 19°
24 Barra do Piraí 44°
34 Rio das Ostras 2°
36 Angra dos Reis 5°
42 Itaguaí 9°
58 Porto Real 1°
Nada demais quando os dois índices estão pelo menos perto um do outro. Mas alguns municípios com muito dinheiro correndo e boa infraestrutura física e administrativa amargam posições lamentáveis no IDH. Porto Real, por exemplo, é a cidade mais "pronta para o desenvolvimento" do estado, e a 58ª em IDH.
E caveat emptor: a integração entre economias e sociedades de diversos municípios, bem como a disparidade de tamanho entre eles, torna essa comparação complicada. O Rio, com 7 milhões de pessoas, não é bem comparável a Itaperuna, com 95.000. Niterói tem o IDH assim tão alto mas menor do que o da Zona Sul do Rio, da qual não deixa de ser hoje uma extensão. Etc etc etc.
30.11.12
Casando comidas
Não, não estou falando do feijão com arroz, muito menos do steak tartare com batata frita, mas de casar a produção dos alimentos, usando uma mesma área para todos. Um dos grandes problemas das monoculturas, em geral, é o quão suscetíveis elas são a pragas e doenças. Não existe uma única razão pela qual um mato vive feliz sem nenhuma aplicação de nada (bem, pelo menos até que uma espécie invasiva apareça), enquanto uma monocultura precisa de aplicações industriais de pesticidas para controlar pragas. Parte é por conta da homogeneidade genética; assim como o ser humano, as plantas e animais por ele domesticados são geneticamente pobres, principalmente os industriais. Parte, entretanto, é uma questão, digamos, semântica.
Assim, o problema da aplicação de pesticida não é que as pragas matariam necessariamente a cultura desejada, mas que não se quer que nada interfira com ela, proporcionando o máximo rendimento. Acima de tudo, controla-se o aparecimento de qualquer coisa que não seja o organismo sendo criado, porque "qualquer coisa" pode ser daninha, e é mais fácil eliminar qualquer coisa antes que ela cresça. O problema com isso é óbvio: como cada cultura, vegetal ou animal, ocupa um único nicho no ecossistema; com a monocultura mantém todos os outros nichos em aberto. Como a natureza, ao contrário da política brasileira, abomina o vácuo, a energia, e os poluentes, despendidos para manter esse monte de vácuos abertos é imenso - e sempre aparecem novas pragas para escapar da vigilância do agricultor.
A solução para o problema parece relativamente simples, mas é abominada pela agricultura industrial, até por significar, em geral, mais trabalho e menos possibilidade de mecanização: trata-se de preencher o máximo razoável de nichos ecológicos com espécies produtivas. Assim, desde priscas eras - OK, desde o século VIII, mais ou menos carpas são criadas em arrozais da China (e olhe que o arroz de campo molhado desenvolvido no sul da China é justamente o primeiro exemplo de monocultura, e talvez tenha sido o primeiro ou segundo grande vilão do aquecimento global, muito antes dos combustíveis fósseis); nas ésias, de Madagáscar ao Havaí, se cultiva coqueiro, bananeira, e abacaxi no mesmo espaço; o café é cultivado à sombra de árvores frutíferas; e por aí em diante. Para o sistema de grandes empresas, significa menor produtividade por hectare (às vezes, mas nem sempre), mas se você pensar do ponto de vista de produtividade líquida, contando a energia e o dinheiro despendidos pelo agricultor, invariavelmente é um sistema muito mais racional.
Assim, o projeto de consorciar tilápia e camarão mencionado na reportagem da Ciência Hoje não é particularmente revolucionário. O potencial de se utilizá-lo em larga escala, no entanto, é. Isso porque o Brasil tem, sabe-se lá por que motivo, uma Secretaria Especial da Pesca, visando a estimular a pesca e a aquicultura, apesar de nossos mares (que não são lá muito piscosos, com a exceção mal e mal de Santa Catarina e Pará) já sofrerem com a sobrepesca desde os anos 60. É como se tivéssemos uma Secretaria das Madeireiras, estimulando o desmatamento, já que a pesca não é senão caça de recursos naturais, como se ainda estivéssemos no paleolítico só que com navios fábrica, aviões batedores, redes literalmente quilométricas, e dinamite. Se se concentrasse unicamente na ainda incipiente aquicultura brasileira, e estimulasse projetos como esse, que além de economicamente práticos resultam em menos resíduos e poluição, a Secretaria da Pesca seria menos absurda.
OK, desde que não estimulasse a implantação, que já ocorre, de viveiros de camarão em áreas de mangue...
Assim, o problema da aplicação de pesticida não é que as pragas matariam necessariamente a cultura desejada, mas que não se quer que nada interfira com ela, proporcionando o máximo rendimento. Acima de tudo, controla-se o aparecimento de qualquer coisa que não seja o organismo sendo criado, porque "qualquer coisa" pode ser daninha, e é mais fácil eliminar qualquer coisa antes que ela cresça. O problema com isso é óbvio: como cada cultura, vegetal ou animal, ocupa um único nicho no ecossistema; com a monocultura mantém todos os outros nichos em aberto. Como a natureza, ao contrário da política brasileira, abomina o vácuo, a energia, e os poluentes, despendidos para manter esse monte de vácuos abertos é imenso - e sempre aparecem novas pragas para escapar da vigilância do agricultor.
A solução para o problema parece relativamente simples, mas é abominada pela agricultura industrial, até por significar, em geral, mais trabalho e menos possibilidade de mecanização: trata-se de preencher o máximo razoável de nichos ecológicos com espécies produtivas. Assim, desde priscas eras - OK, desde o século VIII, mais ou menos carpas são criadas em arrozais da China (e olhe que o arroz de campo molhado desenvolvido no sul da China é justamente o primeiro exemplo de monocultura, e talvez tenha sido o primeiro ou segundo grande vilão do aquecimento global, muito antes dos combustíveis fósseis); nas ésias, de Madagáscar ao Havaí, se cultiva coqueiro, bananeira, e abacaxi no mesmo espaço; o café é cultivado à sombra de árvores frutíferas; e por aí em diante. Para o sistema de grandes empresas, significa menor produtividade por hectare (às vezes, mas nem sempre), mas se você pensar do ponto de vista de produtividade líquida, contando a energia e o dinheiro despendidos pelo agricultor, invariavelmente é um sistema muito mais racional.
Assim, o projeto de consorciar tilápia e camarão mencionado na reportagem da Ciência Hoje não é particularmente revolucionário. O potencial de se utilizá-lo em larga escala, no entanto, é. Isso porque o Brasil tem, sabe-se lá por que motivo, uma Secretaria Especial da Pesca, visando a estimular a pesca e a aquicultura, apesar de nossos mares (que não são lá muito piscosos, com a exceção mal e mal de Santa Catarina e Pará) já sofrerem com a sobrepesca desde os anos 60. É como se tivéssemos uma Secretaria das Madeireiras, estimulando o desmatamento, já que a pesca não é senão caça de recursos naturais, como se ainda estivéssemos no paleolítico só que com navios fábrica, aviões batedores, redes literalmente quilométricas, e dinamite. Se se concentrasse unicamente na ainda incipiente aquicultura brasileira, e estimulasse projetos como esse, que além de economicamente práticos resultam em menos resíduos e poluição, a Secretaria da Pesca seria menos absurda.
OK, desde que não estimulasse a implantação, que já ocorre, de viveiros de camarão em áreas de mangue...
27.11.12
Fear of small numbers II - oclo, demo, eudaimonio
O historiador e panfletista americano Mike Davis, em sua coletânea "Elogio dos Bárbaros," narra o confronto entre um militante do Partido Democrata e um mineiro dos apalaches - isto é, um representante de uma classe (trabalhadora) e uma região (pobre e beneficiária do New Deal) que tradicionalmente representava a base sólida do partido - na qual o primeiro pergunta ao segundo "por que vocês nos abandonaram?" A resposta, algo óbvia, é "não fomos nós que abandonamos vocês, mas o contrário." O Partido Democrata se afastou das posições sociais-democratas rooseveltianas, baseando sua oposição aos republicanos (que por sua vez se mantém com todo o cabedal conservador unificado, desde a Southern Strategy) em questões morais-culturais e abraçando o neoliberalismo reaganita. Seus maiores esteios não são mais sindicatos e a classe trabalhadora, mas indústrias criativas e advogados, de um lado, e não-brancos, do outro; suas bandeiras principais são da guerra moral - direitos de minorias, acesso universal, meio ambiente - e não a representação dos trabalhadores contra o capital. Clinton, afinal, promoveu um processo de achatamento dos impostos
A estória, claro, é bem mais complicada do que o resuminho acima, e já o era mesmo antes de Obama resgatar, no mundo pós-Goldman Sachs, bandeiras como aumento de impostos e saúde universal. E, ao contrário do que Davis conclui em seu artigo, a distribuição de votos para Obama implica que os democratas não estão tão errados assim, em termos puramente pragmático-eleitorais. Mas ela reflete uma realidade problemática para a esquerda global, que não é óbvia, muito menos automática, mas é marcante: a disputa entre a defesa do bem-estar material do maior número de pessoas e a defesa daqueles particularmente oprimidos pelo sistema. As duas, que podem ser vistas como partes de um todo de resistência contra uma quiriarquia opressora, na prática são vistas, ao contrário, como afinididades eletivas e mesmo concorrentes.
É isso, e não algum pacto com o demônio, que faz com que seja possível a Dilma, seguindo os passos dos governos do socialismo real, planejar a destruição dos ambientes naturais e povos tradicionais da Amazônia, em nome do desenvolvimento. É uma falácia múltipla, sem dúvida, já que a conta que ela pressupõe é a de que não é possível promover desenvolvimento rápido sem comoção social de outra forma, e comoção social é (alguns poderíamos argumentar) exatamente do que precisamos; na conta de Dilma & Co o modo de vida da classe média, com consumo regular de duráveis*, incluindo carro, com casa própria, com viagens frequentes, não pode ser ameaçado e deve, ao contrário se expandir eventualmente a todos os cidadãos.
Não dá pra dizer simplesmente que essa não é uma visão de esquerda; ela é, afinal, o sonho stalinista, que se irmanava com seus irmãos do outro lado da cortina de ferro, discordando apenas nos meios pelos quais chegaríamos lá, e nem tanto assim, em muitos casos.** Se trata da adição de "prosperidade" à lista da revolução francesa de liberté egalité fraternité. Bem entendido, no caso do Stalin, com supressão da "liberdade." E a questão da prosperidade não pode ser respondida, numa situação brasileira, com a simples renúncia ao aumento da prosperidade coletiva, como nos países ricos. Uma igualdade universal nos EUA, com uma renda de 4.000R$ por mês de renda disponível pra cada um, talvez fosse razoável, mas uma igualdade universal a menos de 800R$ por mês per capita? Não significa não apenas não viajar, mas não ter acesso a serviços que consideramos básicos; e uma vindicação aparente da "esquerda tradicional proletária anti-mudernidades de minorias" dilmista estaria no fato de o Brasil ter sido o país com o maior ganho de bem-estar do mundo entre 2006 e 2011.
Da igualdade de todos como seres humanos resulta que os anseios coletivos, no seu agregado numérico, sejam legítimos, mesmo que para tal os anseios de poucos tenham que ser sacrificados, sejam estes poucos atuais opressores ou atuais oprimidos, e nesta última alternativa está a falácia presente quando o modelo dilmista e daqueles que, na situação corrente, falam em "muita terra pra pouco índio" e congêneres.*** Admitindo uma soma-zero entre índios e não-índios, está ausente o reconhecimento de que grandes fazendeiros, sejam eles latifundiários clássicos ou o novo e reluzente (de agrotóxico) agronegócio, concentram muito mais terra arável do que os índios, mesmo tomado o conjunto do Brasil, que inclui a mais remota Amazônia. Os pretensos anseios por equidade contidos na reclamação de "muita terra" pros índios só se sustentam se você ignorar, ou tomar por absolutamente legítima, qualquer desigualdade dentro do campo "não-índios." Em outras palavras, só faz sentido se você julgar as coisas em termos nacionais-chauvinistas-caindo-pro-racismo, e decretar que índios não são brasileiros. É o que faz Katia Abreu, em seus exercícios de antropologia. Se é brasileiro, se não é um bom selvagem isolado, então não é índio. O exercício é mais sutil do que à primeira vista parece, porque ele não deixa saída para os índios. Se não é índio, mas brasileiro, não merece ter sua terra isolada da ação do "mercado" (com grilagem e fuzil). Se é índio, não é brasileiro, e aí os índios têm terra demais.
A estratégia de Kátia Sahlins, de invocar a comunidade nacional para justificar as desigualdades no meio desta, é denunciada, claro está, pela esquerda desde sempre. Ela, Katia, tem mais terra em seu nome do que os Guarani-Caiová, e são (digamos, incluindo a família Sahlins inteira) umas 30 pessoas, contra 45.000 guaranis-caiová. Mil vezes mais terra do que os "índios que têm muita terra." Se o problema é a distribuição equânime da terra entre todos os brasileiros, faria mais sentido começar por eliminar os casos de desigualdade mais forte; no Mato Grosso do Sul dos Guarani-Caiová, por exemplo, o índice de Gini da distribuição de terra (sem contar os índios, que têm menos de dois hectares cada) é de mais de 0,8 - pra comparar, o índice de desigualdade de renda brasileiro, altíssimo, é 0,51. Nem se trata apenas de brasileiros e pessoas físicas: as fazendinhas de Katia são muito menores do que aquelas possuídas por grupos estrangeiros como Carrefour, Archer Daniels Midland, Bunge, Cargill, Nestlé, Louis Dreyfus, e companhia. O capital já atingiu desde antes de ser capital o internacionalismo com que os proletários sonham, e suas balas são antes de tudo para os próprios soldados.
Contra o hipócrita nacionalismo das multinacionais, urgem duas posições, uma imediata e outra definitiva. A imediata é simples: apontar a falácia, perguntar se a CNA que fala em muita terra para pouco índio não é, também, a favor da reforma agrária, ou pelo menos de um simples aumento no ITR para valores próximos aos pagos por proprietários de terrenos urbanos. A mais definitiva requer, entretanto, uma resposta para a pergunta - "por que alguns merecem ter terras que outros não merecem" - que se sustente mesmo após um hipotético e utópico fim das desigualdades. Ela não é necessária apenas para esse feliz fim da história, mas como resposta presente, já que a reforma agrária tira o argumento da CNA, mas não é em si um argumento positivo para afirmar os direitos dos povos tradicionais. Não é uma questão desimportante: afinal, se todos são iguais numa democracia, por que uma exceção a essa regra se justifica?
Uma resposta comum entre aqueles que defendem as causas indígenas, aquela para o romantismo, ao falar, por exemplo, dos índios "cidadãos de um universo harmonioso," em contraposição a nós, os desarmoniosos, de quem deveríamos aprender a harmonia. Não é, aí, o bom selvagem, mas uma construção mais complexa, que fala de modos de relação com a natureza, mas peca por assumir que a relação destrutiva "ocidental" com a natureza é uma queda do paraíso (apesar da crítica à noção ocidental de paraíso no texto referenciado de E. Viveiros de Castro), uma questão de virtude que teríamos a aprender. Utilitariamente, a visão não funciona. O modo de vida dos índios na Amazônia (e de outras populações florestais, seja na Papua Nova Guiné de hoje ou no Japão Jõmon) é tão "harmônico com a natureza" (categoria ela mesma ocidental, pelo menos em seu modo comparativo) quanto outras populações tradicionais não-florestais, como, por exemplo, um camponês medieval (nem são, camponês ou índio, apenas avatares ou epígonos de seus respectivos ecossistemas antroponaturais. Sem trocadilho com James Cameron). Se tudo que os índios tivessem para nos ensinar, fosse uma diferença assim, resumível em meia dúzia de palavras ou incomunicável senão pelo lento aprendizado, não seria uma diferença tão interessante assim. E não teria tanta utilidade prática - ausente um suicídio em massa, as taxas de ocupação da terra ideais de um sistema econômico florestal-agricultura de coivara precisariam de ainda mais terra do que o atual sistema.
Os índios não têm direito a suas terras, eu diria, porque encerrariam em si algum recurso aproveitável, incorporável à nossa riqueza (no caso, espiritual), mas simplesmente pelo direito à diferença, que implica na manutenção da diversidade. A diversidade do planeta está caindo em ritmo assustador, em todas as frentes. Espécies na natureza, sim, todos sabem disso, mas também a diversidade humana cai rapidamente, e aquela que é um pouco humana e um pouco natural. Línguas são extintas, como seus povos, como variedades de plantas e animais domésticos (e epidomésticos). A mortandade em curso desde a Revolução Industrial é, já, das maiores de todos os tempos no planeta, em qualquer registro. E isso deixa o planeta mais pobre. O ser humano, que durante seus primeiros milhares de anos causou menos extinções do que criou coisas novas, agora vê isso deixar de ser verdade, mesmo com o fantástico incremento na novidade científica-técnica; os milhares de culturas e manifestações são incorporados em meia dúzia de campos, todos eles ordenáveis através de cadeias globais de dinheiro e prestígio (com direito a Taj Mahal em Dubai). A criação de uma cultura global é, dessa forma, um empobrecimento. E um empobrecimento que não se dá em bases igualitárias, lembremo-nos novamente: não são nós versus os outros, de outra cultura. Culturas são hierárquicas, e quanto maior mais hierárquica. Não que a cultura global seja assim tão totalitária; nascem subculturas dentro dela o tempo todo, e algumas até se recusam à posterior reincorporação. Mas dentro desse cenário de mortandade, é necessário, é o mínimo, reconhecer o direito de alguém, de um povo, a se recusar à incorporação, e essa recusa não significa o isolamento total, mas pautar o grau e o ritmo de ligação com a cultura totalizante.****
Não é uma questão de noblesse oblige, mas de direito humano, nos termos mais pragmáticos, porque a incorporação forçada, e por baixo (sempre por baixo) a uma sociedade desigual resulta, quase que fatalmente, em uma taxa altíssima de sofrimento . Negar aos índios o direito às suas terras tradicionais é matá-los, cotidianamente. Não é uma questão abstrata, é uma necessidade direta; quantos cadáveres vale uma tonelada de soja? Um farnel de algodão? Uma meda de milho? Em nome da integração de territórios à nação produtiva, quantos mortos serão válidos, quantos genocídios? Não deixa de ser historicamente coerente: afinal, se todos os impérios têm enorme conta de mortos, não lembro de outros monumentos como o das Bandeiras no Ibirapuera, em que o caçador de escravos heróico é representado no momento da captura de seres humanos, ao invés de ter esse lado de suas atividades escamoteado.
E, mais pragmaticamente ainda, ignorando até os direitos humanos (afinal, diria o Grande Irmão, os direitos de poucos podem ser ignorados em prol do interesse de todos), a manutenção da diversidade, da alteridade, é uma preservação de informação e, portanto, de segurança no sistema. Existe a possibilidade do apocalipse monocultural, versão em qualquer outra esfera do ocorrido na Grande Fome da Irlanda, em que a monocultura da batata não revelou-se uma boa idéia quando apareceu uma doença da batata. (Não que tenha sido essa a única causa da fome - o capitalismo deu uma ajudinha.) Culturas diferentes, assim como seres vivos diferentes, são um reservatório de possibilidades, reservatórios de alteridades que significam a resposta para perguntas que ainda nem fizemos (ou, talvez, nem possamos fazer antes da observação). Não porque são mais sábios e nobres que nós, apesar de não terem ar condicionado nem iPad, mas simplesmente porque são diferentes. Os interesses da multidão também são servidos pela preservação dos que preferem continuar outros. Nos seus próprios termos.
E, evidentemente, porque um planeta mais diverso é muito mais interessante. O que, para explicar as coisas em termos que até os engenheiros gernsbackianos como Dilma e Co podem entender, será muito importante na economia do turismo e do entretenimento do século XXI. Mucho money. Mooooney.
*com obsolescência programada, evidentemente.
**a ditadura militar brasileira, enquanto torturava e matava comunistas e índios, estatizava setores inteiros da economia. Em 85, eram estatais a produção de aço, petróleo, produtos químicos, aviões, armas e eletricidade; os serviços de telefonia, operação portuária, operação aeroportuária, transporte aéreo, e transporte regional ferroviário; eram fortemente controlados pelo estado a produção de biocombustíveis, a produção naval, e a distribuição de alimentos. A presença estatal na economia brasileira se assemelhava à finlandesa. A diferença estava na distribuição da riqueza, mais do que no modelo econômico; a ditadura brasileira, por supuesto, não acreditava nem em liberdade, nem em fraternidade, nem em igualdade.
A estória, claro, é bem mais complicada do que o resuminho acima, e já o era mesmo antes de Obama resgatar, no mundo pós-Goldman Sachs, bandeiras como aumento de impostos e saúde universal. E, ao contrário do que Davis conclui em seu artigo, a distribuição de votos para Obama implica que os democratas não estão tão errados assim, em termos puramente pragmático-eleitorais. Mas ela reflete uma realidade problemática para a esquerda global, que não é óbvia, muito menos automática, mas é marcante: a disputa entre a defesa do bem-estar material do maior número de pessoas e a defesa daqueles particularmente oprimidos pelo sistema. As duas, que podem ser vistas como partes de um todo de resistência contra uma quiriarquia opressora, na prática são vistas, ao contrário, como afinididades eletivas e mesmo concorrentes.
É isso, e não algum pacto com o demônio, que faz com que seja possível a Dilma, seguindo os passos dos governos do socialismo real, planejar a destruição dos ambientes naturais e povos tradicionais da Amazônia, em nome do desenvolvimento. É uma falácia múltipla, sem dúvida, já que a conta que ela pressupõe é a de que não é possível promover desenvolvimento rápido sem comoção social de outra forma, e comoção social é (alguns poderíamos argumentar) exatamente do que precisamos; na conta de Dilma & Co o modo de vida da classe média, com consumo regular de duráveis*, incluindo carro, com casa própria, com viagens frequentes, não pode ser ameaçado e deve, ao contrário se expandir eventualmente a todos os cidadãos.
Não dá pra dizer simplesmente que essa não é uma visão de esquerda; ela é, afinal, o sonho stalinista, que se irmanava com seus irmãos do outro lado da cortina de ferro, discordando apenas nos meios pelos quais chegaríamos lá, e nem tanto assim, em muitos casos.** Se trata da adição de "prosperidade" à lista da revolução francesa de liberté egalité fraternité. Bem entendido, no caso do Stalin, com supressão da "liberdade." E a questão da prosperidade não pode ser respondida, numa situação brasileira, com a simples renúncia ao aumento da prosperidade coletiva, como nos países ricos. Uma igualdade universal nos EUA, com uma renda de 4.000R$ por mês de renda disponível pra cada um, talvez fosse razoável, mas uma igualdade universal a menos de 800R$ por mês per capita? Não significa não apenas não viajar, mas não ter acesso a serviços que consideramos básicos; e uma vindicação aparente da "esquerda tradicional proletária anti-mudernidades de minorias" dilmista estaria no fato de o Brasil ter sido o país com o maior ganho de bem-estar do mundo entre 2006 e 2011.
Da igualdade de todos como seres humanos resulta que os anseios coletivos, no seu agregado numérico, sejam legítimos, mesmo que para tal os anseios de poucos tenham que ser sacrificados, sejam estes poucos atuais opressores ou atuais oprimidos, e nesta última alternativa está a falácia presente quando o modelo dilmista e daqueles que, na situação corrente, falam em "muita terra pra pouco índio" e congêneres.*** Admitindo uma soma-zero entre índios e não-índios, está ausente o reconhecimento de que grandes fazendeiros, sejam eles latifundiários clássicos ou o novo e reluzente (de agrotóxico) agronegócio, concentram muito mais terra arável do que os índios, mesmo tomado o conjunto do Brasil, que inclui a mais remota Amazônia. Os pretensos anseios por equidade contidos na reclamação de "muita terra" pros índios só se sustentam se você ignorar, ou tomar por absolutamente legítima, qualquer desigualdade dentro do campo "não-índios." Em outras palavras, só faz sentido se você julgar as coisas em termos nacionais-chauvinistas-caindo-pro-racismo, e decretar que índios não são brasileiros. É o que faz Katia Abreu, em seus exercícios de antropologia. Se é brasileiro, se não é um bom selvagem isolado, então não é índio. O exercício é mais sutil do que à primeira vista parece, porque ele não deixa saída para os índios. Se não é índio, mas brasileiro, não merece ter sua terra isolada da ação do "mercado" (com grilagem e fuzil). Se é índio, não é brasileiro, e aí os índios têm terra demais.
A estratégia de Kátia Sahlins, de invocar a comunidade nacional para justificar as desigualdades no meio desta, é denunciada, claro está, pela esquerda desde sempre. Ela, Katia, tem mais terra em seu nome do que os Guarani-Caiová, e são (digamos, incluindo a família Sahlins inteira) umas 30 pessoas, contra 45.000 guaranis-caiová. Mil vezes mais terra do que os "índios que têm muita terra." Se o problema é a distribuição equânime da terra entre todos os brasileiros, faria mais sentido começar por eliminar os casos de desigualdade mais forte; no Mato Grosso do Sul dos Guarani-Caiová, por exemplo, o índice de Gini da distribuição de terra (sem contar os índios, que têm menos de dois hectares cada) é de mais de 0,8 - pra comparar, o índice de desigualdade de renda brasileiro, altíssimo, é 0,51. Nem se trata apenas de brasileiros e pessoas físicas: as fazendinhas de Katia são muito menores do que aquelas possuídas por grupos estrangeiros como Carrefour, Archer Daniels Midland, Bunge, Cargill, Nestlé, Louis Dreyfus, e companhia. O capital já atingiu desde antes de ser capital o internacionalismo com que os proletários sonham, e suas balas são antes de tudo para os próprios soldados.
Contra o hipócrita nacionalismo das multinacionais, urgem duas posições, uma imediata e outra definitiva. A imediata é simples: apontar a falácia, perguntar se a CNA que fala em muita terra para pouco índio não é, também, a favor da reforma agrária, ou pelo menos de um simples aumento no ITR para valores próximos aos pagos por proprietários de terrenos urbanos. A mais definitiva requer, entretanto, uma resposta para a pergunta - "por que alguns merecem ter terras que outros não merecem" - que se sustente mesmo após um hipotético e utópico fim das desigualdades. Ela não é necessária apenas para esse feliz fim da história, mas como resposta presente, já que a reforma agrária tira o argumento da CNA, mas não é em si um argumento positivo para afirmar os direitos dos povos tradicionais. Não é uma questão desimportante: afinal, se todos são iguais numa democracia, por que uma exceção a essa regra se justifica?
Uma resposta comum entre aqueles que defendem as causas indígenas, aquela para o romantismo, ao falar, por exemplo, dos índios "cidadãos de um universo harmonioso," em contraposição a nós, os desarmoniosos, de quem deveríamos aprender a harmonia. Não é, aí, o bom selvagem, mas uma construção mais complexa, que fala de modos de relação com a natureza, mas peca por assumir que a relação destrutiva "ocidental" com a natureza é uma queda do paraíso (apesar da crítica à noção ocidental de paraíso no texto referenciado de E. Viveiros de Castro), uma questão de virtude que teríamos a aprender. Utilitariamente, a visão não funciona. O modo de vida dos índios na Amazônia (e de outras populações florestais, seja na Papua Nova Guiné de hoje ou no Japão Jõmon) é tão "harmônico com a natureza" (categoria ela mesma ocidental, pelo menos em seu modo comparativo) quanto outras populações tradicionais não-florestais, como, por exemplo, um camponês medieval (nem são, camponês ou índio, apenas avatares ou epígonos de seus respectivos ecossistemas antroponaturais. Sem trocadilho com James Cameron). Se tudo que os índios tivessem para nos ensinar, fosse uma diferença assim, resumível em meia dúzia de palavras ou incomunicável senão pelo lento aprendizado, não seria uma diferença tão interessante assim. E não teria tanta utilidade prática - ausente um suicídio em massa, as taxas de ocupação da terra ideais de um sistema econômico florestal-agricultura de coivara precisariam de ainda mais terra do que o atual sistema.
Os índios não têm direito a suas terras, eu diria, porque encerrariam em si algum recurso aproveitável, incorporável à nossa riqueza (no caso, espiritual), mas simplesmente pelo direito à diferença, que implica na manutenção da diversidade. A diversidade do planeta está caindo em ritmo assustador, em todas as frentes. Espécies na natureza, sim, todos sabem disso, mas também a diversidade humana cai rapidamente, e aquela que é um pouco humana e um pouco natural. Línguas são extintas, como seus povos, como variedades de plantas e animais domésticos (e epidomésticos). A mortandade em curso desde a Revolução Industrial é, já, das maiores de todos os tempos no planeta, em qualquer registro. E isso deixa o planeta mais pobre. O ser humano, que durante seus primeiros milhares de anos causou menos extinções do que criou coisas novas, agora vê isso deixar de ser verdade, mesmo com o fantástico incremento na novidade científica-técnica; os milhares de culturas e manifestações são incorporados em meia dúzia de campos, todos eles ordenáveis através de cadeias globais de dinheiro e prestígio (com direito a Taj Mahal em Dubai). A criação de uma cultura global é, dessa forma, um empobrecimento. E um empobrecimento que não se dá em bases igualitárias, lembremo-nos novamente: não são nós versus os outros, de outra cultura. Culturas são hierárquicas, e quanto maior mais hierárquica. Não que a cultura global seja assim tão totalitária; nascem subculturas dentro dela o tempo todo, e algumas até se recusam à posterior reincorporação. Mas dentro desse cenário de mortandade, é necessário, é o mínimo, reconhecer o direito de alguém, de um povo, a se recusar à incorporação, e essa recusa não significa o isolamento total, mas pautar o grau e o ritmo de ligação com a cultura totalizante.****
Não é uma questão de noblesse oblige, mas de direito humano, nos termos mais pragmáticos, porque a incorporação forçada, e por baixo (sempre por baixo) a uma sociedade desigual resulta, quase que fatalmente, em uma taxa altíssima de sofrimento . Negar aos índios o direito às suas terras tradicionais é matá-los, cotidianamente. Não é uma questão abstrata, é uma necessidade direta; quantos cadáveres vale uma tonelada de soja? Um farnel de algodão? Uma meda de milho? Em nome da integração de territórios à nação produtiva, quantos mortos serão válidos, quantos genocídios? Não deixa de ser historicamente coerente: afinal, se todos os impérios têm enorme conta de mortos, não lembro de outros monumentos como o das Bandeiras no Ibirapuera, em que o caçador de escravos heróico é representado no momento da captura de seres humanos, ao invés de ter esse lado de suas atividades escamoteado.
E, mais pragmaticamente ainda, ignorando até os direitos humanos (afinal, diria o Grande Irmão, os direitos de poucos podem ser ignorados em prol do interesse de todos), a manutenção da diversidade, da alteridade, é uma preservação de informação e, portanto, de segurança no sistema. Existe a possibilidade do apocalipse monocultural, versão em qualquer outra esfera do ocorrido na Grande Fome da Irlanda, em que a monocultura da batata não revelou-se uma boa idéia quando apareceu uma doença da batata. (Não que tenha sido essa a única causa da fome - o capitalismo deu uma ajudinha.) Culturas diferentes, assim como seres vivos diferentes, são um reservatório de possibilidades, reservatórios de alteridades que significam a resposta para perguntas que ainda nem fizemos (ou, talvez, nem possamos fazer antes da observação). Não porque são mais sábios e nobres que nós, apesar de não terem ar condicionado nem iPad, mas simplesmente porque são diferentes. Os interesses da multidão também são servidos pela preservação dos que preferem continuar outros. Nos seus próprios termos.
E, evidentemente, porque um planeta mais diverso é muito mais interessante. O que, para explicar as coisas em termos que até os engenheiros gernsbackianos como Dilma e Co podem entender, será muito importante na economia do turismo e do entretenimento do século XXI. Mucho money. Mooooney.
*com obsolescência programada, evidentemente.
**a ditadura militar brasileira, enquanto torturava e matava comunistas e índios, estatizava setores inteiros da economia. Em 85, eram estatais a produção de aço, petróleo, produtos químicos, aviões, armas e eletricidade; os serviços de telefonia, operação portuária, operação aeroportuária, transporte aéreo, e transporte regional ferroviário; eram fortemente controlados pelo estado a produção de biocombustíveis, a produção naval, e a distribuição de alimentos. A presença estatal na economia brasileira se assemelhava à finlandesa. A diferença estava na distribuição da riqueza, mais do que no modelo econômico; a ditadura brasileira, por supuesto, não acreditava nem em liberdade, nem em fraternidade, nem em igualdade.
***trata-se de um vasto e bizarro campo de insatisfação com privilégios percebidos como auferidos por índios, pobres, prisioneiros, mulheres, gays e outrem - sem, entretanto, em momento algum pular para a crítica aos privilégios auferidos pelo Thor Batista.
****Claro que o direito à escolha do isolamento total também deve ser respeitado. Há diversos povos que optaram por ele, na Amazônia e alhures.
13.11.12
Frei Muad'dib
Graças à greve de fome de um bispo, a transposição do São Francisco conseguiu virar tema de debate nacional. Até agora, estava só no rol de obras bilionárias daquelas "necessárias para o crescimento," pelo menos fora do Nordeste. Neste exato momento, o governo tenta mentir para o bispo falando de uma revitalização que custaria 6bn ao longo de 20 anos. Ora, 6bn ao longo de vinte anos, ainda mais com um aumento da irrigação ao longo das margens, mais a transposição, mais a continuada degradação das cabeceiras do rio...pode ajudar, claro, mas "revitalizar" é que não vai. E outra coisa: pra proteger o São Francisco, ações em Minas são mais importantes do que no Nordeste, já que só 25% das águas do rio, que é quase um Nilo, entram nele depois da fronteira MG-BA.
Curiosamente, o governo está sendo vítima da própria boca. Isso porque a "transposição" não é um projeto tão grandioso quanto parece. É muito menos do que os 740m3/s que, sem tanto alarde, os californianos tiram do Colorado (que hoje em dia, como o Hwang Ho, às vezes não chega no mar), ou do que é tirado dos rios no Sudeste brasileiro para abastecimento de água. Afetaria menos o rio do que as barragens que fazem do seu curso inferior uma sucessão de lagos - não custa lembrar que Sobradinho é o maior lago do Brasil, e a perda por evaporação adicional nesse lago imenso é de 132m3/s, mais do que o quíntuplo da "transposição."
O projeto também tem falhas conceituais - por exemplo, quando falam em aumentar a vazão dele "só quando o São Francisco estiver vertendo água em Sobradinho," estão querendo dizer que vamos pagar por bombas e túneis de 127m3/s que vão funcionar a 21% a maior parte do tempo? E como essa irrigação sazonal vai entrar numa agricultura regular, já que o S. Francisco tem ciclos plurianuais de cheia e seca? E porque estimular a fixação humana num ambiente precário, ainda mais baseando-se na agricultura, ao invés de tentar reduzir o uso de água nesse ambiente, que não chega a ser desértico, e onde, portanto, uma cultura menos hidrointensiva poderia sobreviver sem problemas?
Agora, fora isso tudo, a grande piada, a ironia realmente deliciosa da coisa é que o maior dano ecológico da transposição não seria no São Francisco, mas na área "beneficiada" pelas obras. Transformar uma área de rios sazonais em área de rios perenes é alterar o ecossistema tanto quanto tirar a água de uma parte onde ela é abundante. Só que, infelizmente, a caatinga não tem o carisma da Amazônia, e desertos em geral continuam sendo vistos como áreas a ser colonizadas, não preservadas. O que não é um problema tão grande para os desertos propriamente ditos, já que a humanidade ainda não consegue atacá-los com facilidade, mas está transformando em desertos os semiáridos.
Faz falta um Liet Kynes.
Curiosamente, o governo está sendo vítima da própria boca. Isso porque a "transposição" não é um projeto tão grandioso quanto parece. É muito menos do que os 740m3/s que, sem tanto alarde, os californianos tiram do Colorado (que hoje em dia, como o Hwang Ho, às vezes não chega no mar), ou do que é tirado dos rios no Sudeste brasileiro para abastecimento de água. Afetaria menos o rio do que as barragens que fazem do seu curso inferior uma sucessão de lagos - não custa lembrar que Sobradinho é o maior lago do Brasil, e a perda por evaporação adicional nesse lago imenso é de 132m3/s, mais do que o quíntuplo da "transposição."
O projeto também tem falhas conceituais - por exemplo, quando falam em aumentar a vazão dele "só quando o São Francisco estiver vertendo água em Sobradinho," estão querendo dizer que vamos pagar por bombas e túneis de 127m3/s que vão funcionar a 21% a maior parte do tempo? E como essa irrigação sazonal vai entrar numa agricultura regular, já que o S. Francisco tem ciclos plurianuais de cheia e seca? E porque estimular a fixação humana num ambiente precário, ainda mais baseando-se na agricultura, ao invés de tentar reduzir o uso de água nesse ambiente, que não chega a ser desértico, e onde, portanto, uma cultura menos hidrointensiva poderia sobreviver sem problemas?
Agora, fora isso tudo, a grande piada, a ironia realmente deliciosa da coisa é que o maior dano ecológico da transposição não seria no São Francisco, mas na área "beneficiada" pelas obras. Transformar uma área de rios sazonais em área de rios perenes é alterar o ecossistema tanto quanto tirar a água de uma parte onde ela é abundante. Só que, infelizmente, a caatinga não tem o carisma da Amazônia, e desertos em geral continuam sendo vistos como áreas a ser colonizadas, não preservadas. O que não é um problema tão grande para os desertos propriamente ditos, já que a humanidade ainda não consegue atacá-los com facilidade, mas está transformando em desertos os semiáridos.
Faz falta um Liet Kynes.
7.11.12
Proposta metrô pro Rio de Janeiro II
Agora incluídos a Supervia, os BRTs do Paes, e uma linha de BRTrólebus (pra baratear os túneis imensos) usando a ponte e indo da Gávea à região oceânica de Niterói
Centro expandido:
Grande Rio:
Centro expandido:
Grande Rio:
29.10.12
Pope Satan e os minhocões
O viaduto Perimetral é um monstrengo de concreto que liga o Aterro do Flamengo ao seu primo-irmão viaduto do Gasômetro, e por ele aos acessos de saída do Rio de Janeiro, na Avenida Brasil e na Ponte Marechal Ditador Costa e Silva (nome compartilhado pelo outro primo da Perimetral, o Minhocão de São Paulo). Faz parte de um projeto do auge do planejamento rodoviarista, de se criar a "perna litorânea" de um anel viário de grande capacidade no Rio. Por isso, e por criar um túnel escuro e sujo numa área que após sua construção se esvaziou tanto de população quanto de atividade econômica, ficou por muito tempo no ideário progressista como ao mesmo tempo culpado por essa decadência e ´símbolo máximo (no Rio) do pensamento rodoviarista, em que se dá ao carro a primazia, não apenas dos deslocamentos, mas da própria forma da cidade. (Bem entendido, o carro vai de mão em mão com a especulação imobiliária, pela extensão que dá à forma urbana.)
Esta noção é mais razoável do que a primeira, porque a decadência da região portuária do Rio tem mais a ver com a decadência do próprio porto, e com a migração (por conta da revolução no transporte) de sua atividade dos cais de 1910, cortados pela Perimetral, à ponta do Caju; ao contrário do que ocorre em São Paulo, aonde o Minhocão cortou áreas residenciais e comerciais, a Perimetral cortou uma área já dedicada à atividade industrial e de movimentação de carga pesada. O barulho e poluição do tráfego expresso não afastariam atividades elas próprias geradoras intensas de barulho e poluição; em Santos, as zonas próximas ao porto são em sua maioria zonas degradadas justamente pelo barulho e poluição.
Pois bem, a mesma perimetral rodoviária, hoje, é defendida por gente progressista, incluindo o candidato Marcelo Freixo, agora que o prefeito planeja sua demolição como parte de um projeto de "revitalização" do Porto, trocando a vocação da área para moradia, turismo, e escritórios. Argumenta-se que sem a rodoviária terá-se um "nó no trânsito." Ora, este é o supra-sumo do argumento rodoviarista, a contraparte lógica do que pautou sua construção. E - logicamente, já que Eduardo Paes é um tecnocrata de direita, pouco inclinado a questionar a lógica rodoviarista* - tecnicamente errado. A Perimetral, hoje, é uma parte de uma das duas alternativas de deslocamento entre o Centro do Rio e o conjunto de viadutos e vias expressas de saída da cidade: pela orla ou pela Avenida Ditador-Presidente Vargas.
A orla consiste da Perimetral, uma via expressa tipo zero, sem cruzamentos nem sinais com duas faixas por sentido, conectando-se ao Aterro do Flamengo ao sudoeste, e abaixo dela a Rodrigues Alves, uma avenida de três faixas por sentido, com sinais e cruzamentos, conectando-se à Praça Mauá ao sudoeste; ambas conectam-se a leste ao viaduto do Gasômetro. Ora, no novo modelo a ser implantado pela Prefeitura, uma Rodrigues Alves expressa, tipo zero, sem sinais nem cruzamentos, substituirá a Perimetral, enquanto uma nova avenida, ainda sem nome, substituirá a atual Rodrigues Alves; graças a um conjunto de túneis, ambas terão exatamente os mesmos acessos do conjunto viário atual, mas com uma faixa expressa por sentido a mais.Fazendo a conta: hoje temos 2+2 linhas expressas e 3+3 locais; em 2016, teremos 3+3 exp, 3+3 locais, e o mesmo traçado em termos de acessos.
Em outras palavras: o encampamento do argumento rodoviarista pela esquerda está tecnicamente, faticamente errado, além de representar uma contradição do discurso passado, sem passar pela autocrítica (eu, pessoalmente, mantenho o velho discurso e seria a favor da derrubada da Perimetral SEM alternativa viária expressa - a região já é próxima ao metrô e à supervia, e terá sistema de VLT para os deslocamentos internos a partir da Central).
Não que não haja muito o que criticar nas circunstâncias nas quais se dá a derrubada da Perimetral, numa operação urbana que, como suas equivalentes havidas em outras cidades, de Barcelona a Buenos Aires, tem como objetivo a inserção da cidade num modelo em que os turistas e os executivos globais prosperam e os outros, quando não pitorescos, permanecem excluídos. A operação é transparente como uma folha de granito, e transfere atribuições públicas a uma companhia privada. A gentrificação que é parte integrante dela expulsa moradores da área.** A perimetral poderia ser, com custo equivalente ao de sua demolição, reaproveitada como viaduto metroviário. Os largos terrenos vazios e próximos ao centro também seriam ótimos para fazer moradia social de alta densidade, ignorada pelo projeto. E por aí em diante.
Até por essa abundância de motivos para criticar o projeto, não dá para deixar de perceber a grita contra o fim da Perimetral, em que a esquerda irmana-se ao Otavio Leite, como um antinomismo, uma redefinição de hay gobierno soy contra em que se a direita faz algo, sou contra. Não importa o quê. Do mesmo modo, as remoções de casas de áreas de risco são criticadas não apenas pela truculência e falta de transparência, mas pela própria remoção, pondo em aspas "área de risco," como se a existência de moradias em áreas de risco, e até sua prevalência, não fosse reconhecida e criticada, principalmente no período das chuvas. Afinal, um dos grandes fatores que levam à criação de uma favela em determinada área é justamente a indesejabilidade daquela área para quem pode morar em lugar melhor, entre outros fatores pelo risco climático-geológico.
De novo: não se trata, aqui, de defender o tecnocrata reacionário, com seus "choques de ordem" e sua cidade global para os cidadãos globais, que muito flexivelmente se alçou à prefeitura como mosqueteiro da CPI do Mensalão, junto com ACM Neto e Heloísa Helena, para em seguida governar unha-e-carne com o governo federal. Mas o antinomismo, em que tudo que ele faz é errado por definição, é uma renúncia à crítica, e não uma crítica. É, como os satanismos da vida, tanto os ingênuos de metaleiros e medievos quanto o satírico de Anton LaVey, uma condição subordinada, em que se é tão-somente espelho invertido do que se opõe; é se deixar pautar, ainda que negativamente, pela direita. Se Otavio Leite vencesse, a Perimetral voltaria ao seu status anterior de chaga urbana?
Pior: o antinomismo faz com que seja tanto mais fácil ignorar completamente a esquerda. Afinal, em termos de poder real, não há comparação entre as forças envolvidas. A direita pode abdicar do convencimento e se dedicar tão-somente à demonização do adversário porque é o lado da quiriarquia, o lado do poder por definição - e aí está o problema da minha própria crítica ao antinomismo, o de que a crítica ponderada não pode nunca se confundir com o apoio ou composição. Ponderada não quer dizer menos radical, apenas mais complexa. Não é fácil, nem um pouco. Nem poderia ser.
*Aliás, muito pelo contrário: habilmente usou a construção de corredores de BRT para integrar à malha de transporte público da cidade a Zona Oeste - em si acertada e necessária - como boi de piranha para erigir túneis rodoviários que servissem também a automóveis particulares, em especial o da Grota Funda, ambição antiga de todos os prefeitos cariocas, abrindo novas áreas à especulação imobiliária.
**Esclareça-se: o problema da gentrificação não ocorre quando um morador ou comerciante vende a própria casa ou comércio e vai para o subúrbio morar num lugar melhor. Se assim fosse, quem o põe em pauta seria, como querem os liberais, um apologista da pobreza. O problema é quando os aluguéis aumentam de maneira desmesurada, expulsando gente sem propriedade nenhuma. E na maioria das favelas brasileiras, bem como em boa parte dos bairros da zona portuária do Rio, a casa própria não é exatamente comum...
PS para reconhecer algum mérito até no modelo rodoviarista, foi graças a ele, sob o udenista Lacerda, que o Rio ganhou seu maior parque público, numa cidade carente de parques: o Aterro do Flamengo, que por sua vez foi complemento de uma via expressa que prolonga a Perimetral até as portas de Copacabana.
PPS se o choro pela Perimetral é ridículo, outros marcos do Rio de Janeiro estão sendo postos abaixo na maior desfaçatez, ante a omissão ou participação ativa dos governos estadual e municipal. Há o museu do Índio do Maracanã, que foi sede do Rondon e antes disso do Ministério da Agricultura e tem 154 anos, a antiga embaixada da Áustria que foi a primeira casa modernista da cidade, a fábrica da Brahma ao lado do Sambódromo que foi a primeira fábrica de cerveja de grande escala do Brasil...
Esta noção é mais razoável do que a primeira, porque a decadência da região portuária do Rio tem mais a ver com a decadência do próprio porto, e com a migração (por conta da revolução no transporte) de sua atividade dos cais de 1910, cortados pela Perimetral, à ponta do Caju; ao contrário do que ocorre em São Paulo, aonde o Minhocão cortou áreas residenciais e comerciais, a Perimetral cortou uma área já dedicada à atividade industrial e de movimentação de carga pesada. O barulho e poluição do tráfego expresso não afastariam atividades elas próprias geradoras intensas de barulho e poluição; em Santos, as zonas próximas ao porto são em sua maioria zonas degradadas justamente pelo barulho e poluição.
Pois bem, a mesma perimetral rodoviária, hoje, é defendida por gente progressista, incluindo o candidato Marcelo Freixo, agora que o prefeito planeja sua demolição como parte de um projeto de "revitalização" do Porto, trocando a vocação da área para moradia, turismo, e escritórios. Argumenta-se que sem a rodoviária terá-se um "nó no trânsito." Ora, este é o supra-sumo do argumento rodoviarista, a contraparte lógica do que pautou sua construção. E - logicamente, já que Eduardo Paes é um tecnocrata de direita, pouco inclinado a questionar a lógica rodoviarista* - tecnicamente errado. A Perimetral, hoje, é uma parte de uma das duas alternativas de deslocamento entre o Centro do Rio e o conjunto de viadutos e vias expressas de saída da cidade: pela orla ou pela Avenida Ditador-Presidente Vargas.
A orla consiste da Perimetral, uma via expressa tipo zero, sem cruzamentos nem sinais com duas faixas por sentido, conectando-se ao Aterro do Flamengo ao sudoeste, e abaixo dela a Rodrigues Alves, uma avenida de três faixas por sentido, com sinais e cruzamentos, conectando-se à Praça Mauá ao sudoeste; ambas conectam-se a leste ao viaduto do Gasômetro. Ora, no novo modelo a ser implantado pela Prefeitura, uma Rodrigues Alves expressa, tipo zero, sem sinais nem cruzamentos, substituirá a Perimetral, enquanto uma nova avenida, ainda sem nome, substituirá a atual Rodrigues Alves; graças a um conjunto de túneis, ambas terão exatamente os mesmos acessos do conjunto viário atual, mas com uma faixa expressa por sentido a mais.Fazendo a conta: hoje temos 2+2 linhas expressas e 3+3 locais; em 2016, teremos 3+3 exp, 3+3 locais, e o mesmo traçado em termos de acessos.
Em outras palavras: o encampamento do argumento rodoviarista pela esquerda está tecnicamente, faticamente errado, além de representar uma contradição do discurso passado, sem passar pela autocrítica (eu, pessoalmente, mantenho o velho discurso e seria a favor da derrubada da Perimetral SEM alternativa viária expressa - a região já é próxima ao metrô e à supervia, e terá sistema de VLT para os deslocamentos internos a partir da Central).
Não que não haja muito o que criticar nas circunstâncias nas quais se dá a derrubada da Perimetral, numa operação urbana que, como suas equivalentes havidas em outras cidades, de Barcelona a Buenos Aires, tem como objetivo a inserção da cidade num modelo em que os turistas e os executivos globais prosperam e os outros, quando não pitorescos, permanecem excluídos. A operação é transparente como uma folha de granito, e transfere atribuições públicas a uma companhia privada. A gentrificação que é parte integrante dela expulsa moradores da área.** A perimetral poderia ser, com custo equivalente ao de sua demolição, reaproveitada como viaduto metroviário. Os largos terrenos vazios e próximos ao centro também seriam ótimos para fazer moradia social de alta densidade, ignorada pelo projeto. E por aí em diante.
Até por essa abundância de motivos para criticar o projeto, não dá para deixar de perceber a grita contra o fim da Perimetral, em que a esquerda irmana-se ao Otavio Leite, como um antinomismo, uma redefinição de hay gobierno soy contra em que se a direita faz algo, sou contra. Não importa o quê. Do mesmo modo, as remoções de casas de áreas de risco são criticadas não apenas pela truculência e falta de transparência, mas pela própria remoção, pondo em aspas "área de risco," como se a existência de moradias em áreas de risco, e até sua prevalência, não fosse reconhecida e criticada, principalmente no período das chuvas. Afinal, um dos grandes fatores que levam à criação de uma favela em determinada área é justamente a indesejabilidade daquela área para quem pode morar em lugar melhor, entre outros fatores pelo risco climático-geológico.
De novo: não se trata, aqui, de defender o tecnocrata reacionário, com seus "choques de ordem" e sua cidade global para os cidadãos globais, que muito flexivelmente se alçou à prefeitura como mosqueteiro da CPI do Mensalão, junto com ACM Neto e Heloísa Helena, para em seguida governar unha-e-carne com o governo federal. Mas o antinomismo, em que tudo que ele faz é errado por definição, é uma renúncia à crítica, e não uma crítica. É, como os satanismos da vida, tanto os ingênuos de metaleiros e medievos quanto o satírico de Anton LaVey, uma condição subordinada, em que se é tão-somente espelho invertido do que se opõe; é se deixar pautar, ainda que negativamente, pela direita. Se Otavio Leite vencesse, a Perimetral voltaria ao seu status anterior de chaga urbana?
Pior: o antinomismo faz com que seja tanto mais fácil ignorar completamente a esquerda. Afinal, em termos de poder real, não há comparação entre as forças envolvidas. A direita pode abdicar do convencimento e se dedicar tão-somente à demonização do adversário porque é o lado da quiriarquia, o lado do poder por definição - e aí está o problema da minha própria crítica ao antinomismo, o de que a crítica ponderada não pode nunca se confundir com o apoio ou composição. Ponderada não quer dizer menos radical, apenas mais complexa. Não é fácil, nem um pouco. Nem poderia ser.
*Aliás, muito pelo contrário: habilmente usou a construção de corredores de BRT para integrar à malha de transporte público da cidade a Zona Oeste - em si acertada e necessária - como boi de piranha para erigir túneis rodoviários que servissem também a automóveis particulares, em especial o da Grota Funda, ambição antiga de todos os prefeitos cariocas, abrindo novas áreas à especulação imobiliária.
**Esclareça-se: o problema da gentrificação não ocorre quando um morador ou comerciante vende a própria casa ou comércio e vai para o subúrbio morar num lugar melhor. Se assim fosse, quem o põe em pauta seria, como querem os liberais, um apologista da pobreza. O problema é quando os aluguéis aumentam de maneira desmesurada, expulsando gente sem propriedade nenhuma. E na maioria das favelas brasileiras, bem como em boa parte dos bairros da zona portuária do Rio, a casa própria não é exatamente comum...
PS para reconhecer algum mérito até no modelo rodoviarista, foi graças a ele, sob o udenista Lacerda, que o Rio ganhou seu maior parque público, numa cidade carente de parques: o Aterro do Flamengo, que por sua vez foi complemento de uma via expressa que prolonga a Perimetral até as portas de Copacabana.
PPS se o choro pela Perimetral é ridículo, outros marcos do Rio de Janeiro estão sendo postos abaixo na maior desfaçatez, ante a omissão ou participação ativa dos governos estadual e municipal. Há o museu do Índio do Maracanã, que foi sede do Rondon e antes disso do Ministério da Agricultura e tem 154 anos, a antiga embaixada da Áustria que foi a primeira casa modernista da cidade, a fábrica da Brahma ao lado do Sambódromo que foi a primeira fábrica de cerveja de grande escala do Brasil...
A morada do poder
Em meio a toda a profusão de mapas de votação mostrando uma distância bem nítida entre as preferências eleitorais da periferia pobre (esquerda, menos no Rio) e do centro rico (direita, menos no Rio) das capitais brasileiras, achei curiosa a falta de distância entre os endereços dos candidatos propriamente ditos. Pensei nisso, ontem, ao ver a dúzia de carros de satélite próximos ao apartamento do Haddad (que vota na frente da minha casa). O Paraíso, aonde eu e Haddad moramos, é quase na ponta leste do setor sudoeste paulistano, em que se concentra a burguesia tradicional (há bolsões burgueses em cada região da cidade, que nesse sentido é bem descentralizada, bem como na sua região metropolitana, com direito a subúrbio à americana em Cotia e Mairiporã). Quase na ponta oeste está o Alto de Pinheiros, bairro onde fica a mansão de José Serra. Nem São Paulo é excepcional nesse quesito; pelo contrário, ainda está "bem distribuída." No Rio, Freixo e Paes moram em bairros vizinhos, Leblon e São Conrado. Em Salvador, Pelegrino e ACMinho moram no mesmo bairro, e uma velhinha artrítica não teria problemas em percorrer a distância que lhes separa.
Resolvi, então, conferir a distância (as the crow flies) entre os principais candidatos em algumas cidades, bem como o metro quadrado de seus bairros:
Resolvi, então, conferir a distância (as the crow flies) entre os principais candidatos em algumas cidades, bem como o metro quadrado de seus bairros:
São Paulo: Haddad: 11.806. Serra: 8.278
Rio de Janeiro: Paes 11.514. Freixo: 18.332
Salvador: Pelegrino e ACMini: 3.377
Belo Horizonte: Marcio Lacerda: 7.812. Patrus Ananias: 4.998.
E daí isso tudo? E daí nada. A maioria dos candidatos a prefeito de capital já são políticos, e políticos ganham muito bem; no caso são todos de classe média, e de origem classe média, mas nesse sentido a política brasileira está bem mais democrática do que a americana, por exemplo (Obama, de família classe média-alta, é uma exceção pra baixo; Clinton gostava de dizer que nasceu num trailer park, a favela deles, mas se mudou pruma mansão antes de aprender a falar). É só curiosidade mesmo. A informação mais relevante desses números é o abismo entre os valores de cada cidade.
26.10.12
Homens invisíveis
Um excelente artigo do Leonard Pitts desce o malho no vice-governador da Carolina do Sul, que num acesso de honestidade comparou os pobres a vira-latas, e fala de como falta voz e consciência de si aos pobres nos EUA. E estava lendo sobre a história ambiental da China, especificamente sobre a história do uso da água por lá, e descobri que até hoje o governo chinês resiste a se utilizar dos recursos hídricos tibetanos, apesar do Tibete sozinho ter um potencial hidrelétrico mais ou menos equivalente ao do Brasil inteiro, e um quase-nada de gente.
As duas coisas juntas me pensaram nas vantagens de se ser colônia de verdade sobre ser colônia de fato. Afinal, numa colônia de verdade, a dominação, e portanto a responsabilidade - chame de noblesse oblige, se quiser - ficam evidentes, enquanto no caso de locais em situação de exploração mas sem laços oficiais, abundam as declarações compungidas de que "esquecemos" a região. A China não quer enfiar as garras no Tibete porque sabe que, com o enorme movimento Free Tibet (principalmente derivado do carisma do Dalai Lama, e da atração que uma versão pasteurizada do budismo exerce em Hollywood), se fizesse isso seria atacada por fazê-lo no mundo inteiro, sem contar a resistência local. Pelo contrário, as transferências de riqueza se dão no sentido China-Tibete. Enquanto isso, no coração histórico da própria China, na região das Três Gargantas, faz uma megausina que inclusive é maior do que precisaria ser por razões de prestígio nacional. (Na área do lago, poderiam ser feitas, ao invés de uma usina de 18Gw, três de 7Gw, a custos ambientais, humanos e financeiros menores, mas aí nenhuma delas seria a maior do mundo.)
Enquanto isso, no Brasil não se tem nenhum problema em explorar regiões remotas no interesse das regiões dominantes. Pelo contrário, principalmente em São Paulo mas também no resto do Sul-Sudeste, pessoas têm a noção bizarra de que "sustentam" o Norte-Nordeste. E tome-lhe Belo Montes e Jiraus e Carajás, num esquema de exploração de recursos minerais bem colonial. Assim como, nos EUA, famosamente as pessoas superestimam em 4.000% o valor da ajuda externa doada pelo país, e acham que eles que transferem riqueza aos países subdesenvolvidos.
No ocaso do colonialismo, quando começou-se a desenvolver algum tipo de consciência, a transferência de riqueza ainda ia no sentido colônia-metrópole, mas em grau menor do que atualmente; do mesmo jeito, os estados de bem-estar derivaram, todos, de uma consciência de classe forte e da vontade da elite de apaziguar as massas famélicas. (Nesse sentido, o Brasil, com um estado de bem-estar aparecendo neste momento histórico, talvez seja uma exceção.)
Não é que der esmola atrapalhe a revolução, nem que se os franceses jogassem críquete com seus servos como nós não teria havido esse problema. Mas é que, sim, uma igualdade oficial e uma comunidade imaginária podem ser obstáculos para igualdade e comunidades reais. Talvez os governadores de Rondônia e do Pará não fossem tão amigáveis à construção de hidrelétricas se estas se destinassem a alimentar um país estrangeiro. (As subestações recebedoras de Belo Monte ficarão em Nova Iguaçu-RJ e Estreito-MG; as de Jirau e Santo Antônio em Araraquara-SP, e a de Itaipu em Mogi das Cruzes-SP.)
As duas coisas juntas me pensaram nas vantagens de se ser colônia de verdade sobre ser colônia de fato. Afinal, numa colônia de verdade, a dominação, e portanto a responsabilidade - chame de noblesse oblige, se quiser - ficam evidentes, enquanto no caso de locais em situação de exploração mas sem laços oficiais, abundam as declarações compungidas de que "esquecemos" a região. A China não quer enfiar as garras no Tibete porque sabe que, com o enorme movimento Free Tibet (principalmente derivado do carisma do Dalai Lama, e da atração que uma versão pasteurizada do budismo exerce em Hollywood), se fizesse isso seria atacada por fazê-lo no mundo inteiro, sem contar a resistência local. Pelo contrário, as transferências de riqueza se dão no sentido China-Tibete. Enquanto isso, no coração histórico da própria China, na região das Três Gargantas, faz uma megausina que inclusive é maior do que precisaria ser por razões de prestígio nacional. (Na área do lago, poderiam ser feitas, ao invés de uma usina de 18Gw, três de 7Gw, a custos ambientais, humanos e financeiros menores, mas aí nenhuma delas seria a maior do mundo.)
Enquanto isso, no Brasil não se tem nenhum problema em explorar regiões remotas no interesse das regiões dominantes. Pelo contrário, principalmente em São Paulo mas também no resto do Sul-Sudeste, pessoas têm a noção bizarra de que "sustentam" o Norte-Nordeste. E tome-lhe Belo Montes e Jiraus e Carajás, num esquema de exploração de recursos minerais bem colonial. Assim como, nos EUA, famosamente as pessoas superestimam em 4.000% o valor da ajuda externa doada pelo país, e acham que eles que transferem riqueza aos países subdesenvolvidos.
No ocaso do colonialismo, quando começou-se a desenvolver algum tipo de consciência, a transferência de riqueza ainda ia no sentido colônia-metrópole, mas em grau menor do que atualmente; do mesmo jeito, os estados de bem-estar derivaram, todos, de uma consciência de classe forte e da vontade da elite de apaziguar as massas famélicas. (Nesse sentido, o Brasil, com um estado de bem-estar aparecendo neste momento histórico, talvez seja uma exceção.)
Não é que der esmola atrapalhe a revolução, nem que se os franceses jogassem críquete com seus servos como nós não teria havido esse problema. Mas é que, sim, uma igualdade oficial e uma comunidade imaginária podem ser obstáculos para igualdade e comunidades reais. Talvez os governadores de Rondônia e do Pará não fossem tão amigáveis à construção de hidrelétricas se estas se destinassem a alimentar um país estrangeiro. (As subestações recebedoras de Belo Monte ficarão em Nova Iguaçu-RJ e Estreito-MG; as de Jirau e Santo Antônio em Araraquara-SP, e a de Itaipu em Mogi das Cruzes-SP.)
24.10.12
Os muitos genocídios guaranis-kaiowá
Os índios brasileiros vêm sendo vítimas de genocídio há - pelo menos - 400 anos. Digo 400, não 500, porque o primeiro grande ato de genocídio europeu nas américas, através da transmissão das doenças euro-afro-asiáticas, foi involuntário. O segundo, longe das terras tupiniquins, foi bem voluntário, a extinção dos taínos pela família Colombo. No século XIX, o romantismo levou a que muitas famílias da aristocracia brasileira ganhassem nomes aludindo a índios - é o caso de um certo ex-candidato a vice-presidente - mas essa simpatia era por índios mantidos num passado mítico, equivalentes nativos dos teutônicos que povoavam, na mesma época, as fantasias de Wagner. Os índios de verdade, vivos, continuaram a ser mortos em profusão; ainda havia matas e índios em boa parte da superfície dos estados do Sul e Sudeste até os anos 1930.
Essa ligação entre matas e índios ajudou, na crista da onda do ecologismo dos anos 80, a solidificar a noção dos direitos à terra dos índios e outras populações tradicionais, no Brasil e no mundo. Não diminuiu a pressão contra em nenhum momento, mas houve passos importantes, como a homologação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol, face a uma quase rebelião do governo do estado de Roraima, no Brasil, ou a conquista do imenso e gélido território de Nunavut pelos inuit. Foram ganhos em face de um genocídio cotidiano. Sim, cotidiano: o aumento das populações índigenas como um todo no Brasil na última década esconde em si um sem-número de grupos que foram sendo extintos, à custa de requintes de violência física e social. É um genocídio cotidiano, que gera bem pouca atenção e atende interesses de fazendeiros, mineradoras, empreiteiras, e governos. Em parte para testar essa visibilidade, está aí a hidrelétrica de Belo Monte, próxima da reserva indígena mais famosa do Brasil, que não me deixa mentir. Se o resultado tivesse sido protesto em massa, o resto do projeto de aménagement da Amazônia teria sido congelado; como foi a indiferença maciça, vai avançando. E o projeto amazônico, em que conluiam governo e agronegócio, é parte de uma contrainvestida maior, em que herdeiros da guerra fria de ambos os lados se unem contra o inimigo maior que é a natureza e os povos tradicionais, que não cabem nas utopias totalizantes. Depois podem discutir se a utopia de toga branca será capitalista ou socialista; urge que antes ela seja de engenheiros.
Neste momento, felizmente, uma instância específica desse genocídio - a morte dos guarani-kaiowá, cujas terras são invadidas por fazendeiros, assim como o são as terras de grupos próximos - ganhou bem mais visibilidade, basicamente graças a um feliz mal-entendido vagamente racista. Explico-me: o manifesto dos guaranis-kaiowás alertando para sua breve extinção, resultado natural de resistir até o fim, foi confundido, nas redes virtuais, principalmente a partir do artigo de Eliane Brum na Época que falava em "declaração de morte," como uma disposição para o suicídio coletivo como ato de protesto. O inaudito de um tal protesto chamou a atenção, e foi explicado pela diferença da "cultura índia" e reforçado pela realidade dos altos índices de suicídio na reserva (e em reservas tradicionais oprimidas mundo afora). Com uma pequena ajuda de quem viu no caso uma cause cèlebre antipetista, apesar da reserva ter sido homologada por Lula e proibida por Gilmar Mendes, com o processo parado, ou antes andando a passo de jabuti, no STF desde então.
Sim, felizmente. Se é verdade que Dilma não é atriz principal, como se lhe quer atribuir, deste drama específico, o é dos muitos dramas no entorno da Volta Grande do Xingu, e pretende ser de muitos outros ainda Amazônia afora. E muita gente de poder bem mais sólido que o dela também. Os muitos xingamentos no twitter, desta vez, podem não dar em nada, mas talvez sejam o embrião de alguma coisa.
Essa ligação entre matas e índios ajudou, na crista da onda do ecologismo dos anos 80, a solidificar a noção dos direitos à terra dos índios e outras populações tradicionais, no Brasil e no mundo. Não diminuiu a pressão contra em nenhum momento, mas houve passos importantes, como a homologação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol, face a uma quase rebelião do governo do estado de Roraima, no Brasil, ou a conquista do imenso e gélido território de Nunavut pelos inuit. Foram ganhos em face de um genocídio cotidiano. Sim, cotidiano: o aumento das populações índigenas como um todo no Brasil na última década esconde em si um sem-número de grupos que foram sendo extintos, à custa de requintes de violência física e social. É um genocídio cotidiano, que gera bem pouca atenção e atende interesses de fazendeiros, mineradoras, empreiteiras, e governos. Em parte para testar essa visibilidade, está aí a hidrelétrica de Belo Monte, próxima da reserva indígena mais famosa do Brasil, que não me deixa mentir. Se o resultado tivesse sido protesto em massa, o resto do projeto de aménagement da Amazônia teria sido congelado; como foi a indiferença maciça, vai avançando. E o projeto amazônico, em que conluiam governo e agronegócio, é parte de uma contrainvestida maior, em que herdeiros da guerra fria de ambos os lados se unem contra o inimigo maior que é a natureza e os povos tradicionais, que não cabem nas utopias totalizantes. Depois podem discutir se a utopia de toga branca será capitalista ou socialista; urge que antes ela seja de engenheiros.
Neste momento, felizmente, uma instância específica desse genocídio - a morte dos guarani-kaiowá, cujas terras são invadidas por fazendeiros, assim como o são as terras de grupos próximos - ganhou bem mais visibilidade, basicamente graças a um feliz mal-entendido vagamente racista. Explico-me: o manifesto dos guaranis-kaiowás alertando para sua breve extinção, resultado natural de resistir até o fim, foi confundido, nas redes virtuais, principalmente a partir do artigo de Eliane Brum na Época que falava em "declaração de morte," como uma disposição para o suicídio coletivo como ato de protesto. O inaudito de um tal protesto chamou a atenção, e foi explicado pela diferença da "cultura índia" e reforçado pela realidade dos altos índices de suicídio na reserva (e em reservas tradicionais oprimidas mundo afora). Com uma pequena ajuda de quem viu no caso uma cause cèlebre antipetista, apesar da reserva ter sido homologada por Lula e proibida por Gilmar Mendes, com o processo parado, ou antes andando a passo de jabuti, no STF desde então.
Sim, felizmente. Se é verdade que Dilma não é atriz principal, como se lhe quer atribuir, deste drama específico, o é dos muitos dramas no entorno da Volta Grande do Xingu, e pretende ser de muitos outros ainda Amazônia afora. E muita gente de poder bem mais sólido que o dela também. Os muitos xingamentos no twitter, desta vez, podem não dar em nada, mas talvez sejam o embrião de alguma coisa.
17.10.12
Carta aos reaças II
Sou - creio - meio chato na tecla de se reduzir a desigualdade através do aumento dos impostos de renda e patrimônio. Isso porque acredito que a igualdade é um bem-em-si; o golfo social entre eu e outros privilegiados, de um lado, e a massa maior do outro me incomoda mais até do que o golfo entre eu e os "1%" do movimento Occupy wall street. Mas existe um motivo bom, liberal-ortodoxo em economia, para reduzir a desigualdade, e que não tem nada a ver com socialismo, fraternidade, ou outras questões de bichinha coração de banana. É que a desigualdade aumenta os custos do Estado. E, afinal de contas, reduzir custos, especialmente os do Estado, é uma das bandeiras mais velhas do liberalismo. Foi a bandeira da criação do semanário inglês The Economist, cujo nome antedata a profissão de economista, e se refere à frugalidade.
Não é um processo muito complicado. A expectativa de renda de uma pessoa não é ilimitada (como proposto por algumas escolas econômico-filosóficas) mas, empiricamente, ancorada numa noção de renda justa que tem muito a ver com a renda observada do mesmo estrato social. As consequencias disso para o gasto do Estado se devem ao número de profissionais altamente qualificados que são necessários para a manutenção dos serviços públicos, desde a implantação de princípios ostensivamente meritocráticos para a burocracia de Estado na Prússia e na França (ok, e bem antes disso na China). Esses profissionais, parte de uma elite social por um zilhão de motivos (inclusive a reprodução intergeneracional de seu capital social ostensivamente meritocrático), e tem suas expectativas de renda balizadas pelo seu entorno. O Estado, portanto, (como qualquer empregador) a longo prazo terá o salário médio de seus profissionais qualificados puxado para a média dos salários de elite, ou bem terá que conviver com a insatisfação crônica desses profissionais e, no limite, o abandono por parte deles das carreiras públicas.
Vamos fazer uma simplificação tosca pra exemplificar a conta: Falemos de duas nações, Laputa e Houyhnhn. Em ambas, os funcionários públicos qualificados - médicos, professores universitários, promotores, auditores, e quejandos - representam 5% da população. Em ambos, os governos têm como prioridade o bom funcionamento dos serviços públicos, então o salário médio de seus funcionários está em linha com suas expectativas, isso é, em linha com os rendimentos do quintil (20%) mais rico da população. A diferença é que em Laputa, o quintil mais rico ganha 3,6x mais que o PIB per capita, enquanto em Houyhnhn, mais igualitária, o quintil mais rico ganha apenas 1,7x o PIB per capita.* Pois bem, para fazer funcionar a contento sua máquina pública, Laputa gastará 18% do PIB só em salários de funcionários qualificados, enquanto Houyhnhn gastará 8,5% do PIB com os mesmos funcionários.
Vamos lá: o simples fato de a desigualdade ser menor em Houyhnhn faz com que seu governo, para prover os mesmos serviços aos cidadãos, possa ter uma carga tributária 10% menor. O equivalente a desonerar o tal "setor produtivo" de toda a arrecadação estadual brasileira. Não é uma discussão pequena, em tempos em que hospitais erguidos não funcionam por falta de médicos, e universidades novas não conseguem achar professores. Na mesma tradição da direita que, previdente, pretende reformar a previdência pensando no longo prazo, os efeitos de uma redução de 10% na carga tributária no longo prazo não podem er subestimados. Sem coração de banana.
*Sâo as razões brasileira e japonesa, respectivamente.
Não é um processo muito complicado. A expectativa de renda de uma pessoa não é ilimitada (como proposto por algumas escolas econômico-filosóficas) mas, empiricamente, ancorada numa noção de renda justa que tem muito a ver com a renda observada do mesmo estrato social. As consequencias disso para o gasto do Estado se devem ao número de profissionais altamente qualificados que são necessários para a manutenção dos serviços públicos, desde a implantação de princípios ostensivamente meritocráticos para a burocracia de Estado na Prússia e na França (ok, e bem antes disso na China). Esses profissionais, parte de uma elite social por um zilhão de motivos (inclusive a reprodução intergeneracional de seu capital social ostensivamente meritocrático), e tem suas expectativas de renda balizadas pelo seu entorno. O Estado, portanto, (como qualquer empregador) a longo prazo terá o salário médio de seus profissionais qualificados puxado para a média dos salários de elite, ou bem terá que conviver com a insatisfação crônica desses profissionais e, no limite, o abandono por parte deles das carreiras públicas.
Vamos fazer uma simplificação tosca pra exemplificar a conta: Falemos de duas nações, Laputa e Houyhnhn. Em ambas, os funcionários públicos qualificados - médicos, professores universitários, promotores, auditores, e quejandos - representam 5% da população. Em ambos, os governos têm como prioridade o bom funcionamento dos serviços públicos, então o salário médio de seus funcionários está em linha com suas expectativas, isso é, em linha com os rendimentos do quintil (20%) mais rico da população. A diferença é que em Laputa, o quintil mais rico ganha 3,6x mais que o PIB per capita, enquanto em Houyhnhn, mais igualitária, o quintil mais rico ganha apenas 1,7x o PIB per capita.* Pois bem, para fazer funcionar a contento sua máquina pública, Laputa gastará 18% do PIB só em salários de funcionários qualificados, enquanto Houyhnhn gastará 8,5% do PIB com os mesmos funcionários.
Vamos lá: o simples fato de a desigualdade ser menor em Houyhnhn faz com que seu governo, para prover os mesmos serviços aos cidadãos, possa ter uma carga tributária 10% menor. O equivalente a desonerar o tal "setor produtivo" de toda a arrecadação estadual brasileira. Não é uma discussão pequena, em tempos em que hospitais erguidos não funcionam por falta de médicos, e universidades novas não conseguem achar professores. Na mesma tradição da direita que, previdente, pretende reformar a previdência pensando no longo prazo, os efeitos de uma redução de 10% na carga tributária no longo prazo não podem er subestimados. Sem coração de banana.
*Sâo as razões brasileira e japonesa, respectivamente.
5.10.12
O Xingu é aqui
Bem, aqui não, no Rio.
Em meio ao recrudescimento da conquista pela FIFA do Brasil, nesta semana vimos a mafiosa entidade suíça proibir o tabuleiro da baiana num raio de 2km do estádio Fonte Nova, em Salvador. O absurdo tem vários níveis. Proibir o produto local em prol do patrocinador massificado dentro do estádio já é absurdo, e desmente toda a parolagem piedosa de "sustentabilidade" e "legado social" que a FIFA roubou ao (um pouco menos mafioso) Comitê Olímpico Internacional. Na Alemanha, quando imposição semelhante foi feita em relação à cerveja, algumas das cidades conseguiram rebelar-se contra a possibilidade de ter que beber Heineken. Mas a FIFA foi além do estádio: proíbe que uma atividade tradicional e (até aqui) lícita aconteça nas ruas da cidade. Impõe sua lei a espaços que nada têm a ver com a copa (perdão, com a Copa do Mundo da FIFAtm), a gente que não se interessa por futebol. E - num momento em que a burrice, ao invés de servir de alternativa à malícia como explicação, se alia a esta - propõe um raio que só faz sentido num subúrbio americano para sua imposição. 2km da Fonte Nova inclui quase todo o Centro de Salvador, e todo o centro histórico, além de Comércio, Tororó, Lapinha... enfim, toda a região central da cidade. Quem estabeleceu o tamanho do raio de controle da FIFA das duas uma; ou mora num subúrbio de baixíssima densidade (não é só nos EUA que isso existe), ou não faz idéia do significado de 2km. Enfim, resumindo: não é tão hipérbole assim dizer que a FIFA quer, em 2014, proibir o tabuleiro da baiana.
Em Porto Alegre, o ataque à democracia foi menos radical, mas mais sangrento, e a FIFA pode até lavar as mãos do sangue literalmente derramado. Para defender o boneco representando o mascote da Copa 2014 – que chegou a ser derrubado -, foram deslocados cerca de 60 policiais militares do Pelotão de Operações Especiais (POE) do 9º Batalhão de Polícia Militar, além de tropas da Guarda Municipal. Os policiais jogaram bombas de gás lacrimogêneo, dispararam tiros com munição não-letal e partiram para cima dos manifestantes com seus cassetetes. Os relatos informam que sequer os jornalistas presentes foram poupados. Pelo menos três, que estavam devidamente identificados com seus crachás, foram agredidos: um fotógrafo do jornal Zero Hora, um repórter do Correio do Povo e um repórter da Rádio Guaíba. A lavagem de mãos é óbvia, afinal não foi ninguém da FIFA que mandou a polícia bater no povo para defender um boneco inflável. Et pourtant, se alguém usa de força desmesurada para defender os seus interesses, você é culpado sim. A mesma FIFA que se arroga o poder de proibir a venda de comida na rua em todo o centro de Salvador poderia usar da mesma arrogância para passar um pito no governo que a defendeu com sangue, no mínimo.
Não que tudo que os governos brasileiros façam com a desculpa da Copa do Mundo da FIFAtm seja realmente culpa dela. No Rio de Janeiro, Sérgio Cabral alega que a derrubada do antigo museu do índio, ao lado do Maracanã, é exigência da entidade, que nega. O edifício de 150 anos, que já foi sede do Serviço de Proteção ao Índio, do Rondon, e deixou de ser museu em 1978 quando o museu do índio foi transferido para Botafogo, foi ocupado por um grupo de índios de verdade, de todo o Brasil, que procuram fazer ali um centro cultural indígena. A idéia não foi considerada lucrativa pelo governo do estado, que prefere a área como estacionamento para o Maracanã - que o mesmo governo do estado já anunciou pretender privatizar, com um certo empresário dono de peruca como principal candidato a concessionário. Com shopping center associado, claro.
Não deixa de ser irônico: a FIFA, useira e vezeira em sacrificar a democracia ao lucro, está sendo usada como desculpa para que Sérgio Cabral venda um shopping center a Eike Batista, acobertando uma demolição e uma expulsão que, de outro modo, seriam impalatáveis politicamente. E é uma amostra da integração nacional, nos moldes desenvolvimentistas: índios no remoto Xingu são expulsos para gerar a energia necessária para iluminar o shopping center a ser criado aonde índios costumavam viver, na antiga capital federal.
(Sim, porque a energia de Belo Monte descerá por linhas DC para Furnas (MG) ou Tijuco (SP) diretamente. Não será gerada para a região Norte.)
Atualização: Assustado com a repercussão do causo, o governador da Bahia Jacques Wagner promete que não permitirá a proibição do Acarajé. A ver.
Em meio ao recrudescimento da conquista pela FIFA do Brasil, nesta semana vimos a mafiosa entidade suíça proibir o tabuleiro da baiana num raio de 2km do estádio Fonte Nova, em Salvador. O absurdo tem vários níveis. Proibir o produto local em prol do patrocinador massificado dentro do estádio já é absurdo, e desmente toda a parolagem piedosa de "sustentabilidade" e "legado social" que a FIFA roubou ao (um pouco menos mafioso) Comitê Olímpico Internacional. Na Alemanha, quando imposição semelhante foi feita em relação à cerveja, algumas das cidades conseguiram rebelar-se contra a possibilidade de ter que beber Heineken. Mas a FIFA foi além do estádio: proíbe que uma atividade tradicional e (até aqui) lícita aconteça nas ruas da cidade. Impõe sua lei a espaços que nada têm a ver com a copa (perdão, com a Copa do Mundo da FIFAtm), a gente que não se interessa por futebol. E - num momento em que a burrice, ao invés de servir de alternativa à malícia como explicação, se alia a esta - propõe um raio que só faz sentido num subúrbio americano para sua imposição. 2km da Fonte Nova inclui quase todo o Centro de Salvador, e todo o centro histórico, além de Comércio, Tororó, Lapinha... enfim, toda a região central da cidade. Quem estabeleceu o tamanho do raio de controle da FIFA das duas uma; ou mora num subúrbio de baixíssima densidade (não é só nos EUA que isso existe), ou não faz idéia do significado de 2km. Enfim, resumindo: não é tão hipérbole assim dizer que a FIFA quer, em 2014, proibir o tabuleiro da baiana.
Em Porto Alegre, o ataque à democracia foi menos radical, mas mais sangrento, e a FIFA pode até lavar as mãos do sangue literalmente derramado. Para defender o boneco representando o mascote da Copa 2014 – que chegou a ser derrubado -, foram deslocados cerca de 60 policiais militares do Pelotão de Operações Especiais (POE) do 9º Batalhão de Polícia Militar, além de tropas da Guarda Municipal. Os policiais jogaram bombas de gás lacrimogêneo, dispararam tiros com munição não-letal e partiram para cima dos manifestantes com seus cassetetes. Os relatos informam que sequer os jornalistas presentes foram poupados. Pelo menos três, que estavam devidamente identificados com seus crachás, foram agredidos: um fotógrafo do jornal Zero Hora, um repórter do Correio do Povo e um repórter da Rádio Guaíba. A lavagem de mãos é óbvia, afinal não foi ninguém da FIFA que mandou a polícia bater no povo para defender um boneco inflável. Et pourtant, se alguém usa de força desmesurada para defender os seus interesses, você é culpado sim. A mesma FIFA que se arroga o poder de proibir a venda de comida na rua em todo o centro de Salvador poderia usar da mesma arrogância para passar um pito no governo que a defendeu com sangue, no mínimo.
Não que tudo que os governos brasileiros façam com a desculpa da Copa do Mundo da FIFAtm seja realmente culpa dela. No Rio de Janeiro, Sérgio Cabral alega que a derrubada do antigo museu do índio, ao lado do Maracanã, é exigência da entidade, que nega. O edifício de 150 anos, que já foi sede do Serviço de Proteção ao Índio, do Rondon, e deixou de ser museu em 1978 quando o museu do índio foi transferido para Botafogo, foi ocupado por um grupo de índios de verdade, de todo o Brasil, que procuram fazer ali um centro cultural indígena. A idéia não foi considerada lucrativa pelo governo do estado, que prefere a área como estacionamento para o Maracanã - que o mesmo governo do estado já anunciou pretender privatizar, com um certo empresário dono de peruca como principal candidato a concessionário. Com shopping center associado, claro.
Não deixa de ser irônico: a FIFA, useira e vezeira em sacrificar a democracia ao lucro, está sendo usada como desculpa para que Sérgio Cabral venda um shopping center a Eike Batista, acobertando uma demolição e uma expulsão que, de outro modo, seriam impalatáveis politicamente. E é uma amostra da integração nacional, nos moldes desenvolvimentistas: índios no remoto Xingu são expulsos para gerar a energia necessária para iluminar o shopping center a ser criado aonde índios costumavam viver, na antiga capital federal.
(Sim, porque a energia de Belo Monte descerá por linhas DC para Furnas (MG) ou Tijuco (SP) diretamente. Não será gerada para a região Norte.)
Atualização: Assustado com a repercussão do causo, o governador da Bahia Jacques Wagner promete que não permitirá a proibição do Acarajé. A ver.
14.9.12
Holocaustos aos deuses
A usina de Belo Monte recebeu nesta quarta autorização do Ibama para construir suas ensecadeiras. Traduzindo: para desviar o curso do Xingu, e o rio morre, como ecossistema, a partir deste momento. Não, não é exagero: o Ibama comentou, mas não considerou impeditivo, sobre o fato da correnteza no novo leito ter uma velocidade de 2,5m/s. O número não significa muita coisa assim, para a maioria das pessoas, pouco acostumada a falar em velocidades de metros por segundo, mas vamos traduzi-lo também: nove quilômetros por hora, ou, se preferirem o jargão náutico, cinco nós. É a velocidade de uma pessoa trotando, ou quase o triplo do Michael Phelps batendo um recorde. A área toda da Volta Grande (aquela que não vira um leito seco) vira uma enorme corredeira, em que não será possível nadar, e embarcações de pequeno porte terão dificuldades para se deslocar.
O momento é particularmente importante porque Belo Monte não é apenas uma represa: é o começo de um grande projeto de ocupação da Amazônia, sonhado desde a Guerra Fria, que inclui mineração, agricultura, e estradas. E os habitantes atuais do lugar - índios, bichos, caboclos, ribeirinhos - que se danem. Votamos numa guerrilheira torturada para ela realizar os sonhos dos militares que a torturaram. Como foi mesmo que isso aconteceu? Dilma teve o cérebro trocado pelo de Geisel numa operação paranormal da CIA? Pior que não. A explicação é mais prosaica, menos divertida, e o pior: mais difícil de lutar contra. Dilma não encampa o projeto de ocupação/devastação da Amazônia por maldade nem por burrice, mas por uma conta bastante simples: a classe média que se importa com os índios é menor do que a classe média que reclamaria de um aumento de impostos (algo paradoxalmente, em muitos casos é a mesma). Não dá pra continuar o projeto petista de diminuição da pobreza (com resultados admitidamente impressionantes em uma década) sem ou bem dividir o bolo, ou bem fazê-lo crescer rápido; e a conversão de capital natural acumulado é uma fórmula de crescimento rápido, como muito bem demonstrado, no caso da destruição das florestas e pradarias americanas, pelo William Cronon.
Dividir o bolo não significa apenas tirar dinheiro dos muito ricos e abastados, o 1% do movimento Occupy Wall Street. A classe média de que falamos, os 20% mais ricos, já possui renda média 3x superior à renda per capita brasileira, ou 12x superior à dos 20% mais pobres. Apenas para situar, uma igual fatia da Itália de Berlusconi recebe 6,5x a renda do quintil mais baixo. Na Rússia da "máfia ultracapitalista," são 7,6x. Estamos - sublinho - falando de uma estatística que ignora o 1%. Não é o Eike Batista, é alguém que ganha 4000 de salário bruto por mês e se acha pobre, ou alguém que ganha 10.000 e se acha remediado. Porque sim, o Brasil ainda é um país pobre, na média. Para continuar fazendo dos muito pobres menos pobres, sem fazer crescer a renda total (o que não é fácil, ainda mais que estamos na fase descendente de Kondratjev), só aumentando impostos, inclusive sobre a classe média, e/ou diminuindo as transferências de dinheiro público, de novo incluindo para a classe média.
Ora, apesar das evidências em contrário, (a carga tributária líquida, contando impostos e transferências diretas, brasileira é baixa E regressiva) a classe média continua achando que paga muitos impostos para sustentar vagabundo; a diferença entre a esquerda e a direita é basicamente o nome que se dá ao vagabundo, se banqueiro ou favelado. Não que eu discuta que banqueiros ganham muito dinheiro às custas do estado, mas o enfrentamento com a Febraban mostra que não foi os banqueiros que Dilma decidiu priorizar. O que faz todo o sentido pragmático - banqueiros, e as forças do capital em geral, não têm exatamente muita lealdade política: apoiarão o governo, qualquer governo, mas ao primeiro sinal de fraqueza voltam a seus candidatos do coração. Enquanto isso, não enfrentar a classe média fez com que Dilma - autoritária, sem carisma, tecnocrata, burocrata, o que mais se quiser xingá-la, aí incluídos os xingamentos homofóbicos e misóginos - superasse Lula em popularidade.
Não é só em nome da alegria dos banqueiros e ruralistas que a Amazônia está sendo jogada na fogueira. É, também para conciliar uma equação em que convivem o iphone e o bolsa-família, o vinhozinho e o cohab. É para dar o direito do pobre ao saneamento sem sacrificar o direito do "pobre" à viagem internacional.
O momento é particularmente importante porque Belo Monte não é apenas uma represa: é o começo de um grande projeto de ocupação da Amazônia, sonhado desde a Guerra Fria, que inclui mineração, agricultura, e estradas. E os habitantes atuais do lugar - índios, bichos, caboclos, ribeirinhos - que se danem. Votamos numa guerrilheira torturada para ela realizar os sonhos dos militares que a torturaram. Como foi mesmo que isso aconteceu? Dilma teve o cérebro trocado pelo de Geisel numa operação paranormal da CIA? Pior que não. A explicação é mais prosaica, menos divertida, e o pior: mais difícil de lutar contra. Dilma não encampa o projeto de ocupação/devastação da Amazônia por maldade nem por burrice, mas por uma conta bastante simples: a classe média que se importa com os índios é menor do que a classe média que reclamaria de um aumento de impostos (algo paradoxalmente, em muitos casos é a mesma). Não dá pra continuar o projeto petista de diminuição da pobreza (com resultados admitidamente impressionantes em uma década) sem ou bem dividir o bolo, ou bem fazê-lo crescer rápido; e a conversão de capital natural acumulado é uma fórmula de crescimento rápido, como muito bem demonstrado, no caso da destruição das florestas e pradarias americanas, pelo William Cronon.
Dividir o bolo não significa apenas tirar dinheiro dos muito ricos e abastados, o 1% do movimento Occupy Wall Street. A classe média de que falamos, os 20% mais ricos, já possui renda média 3x superior à renda per capita brasileira, ou 12x superior à dos 20% mais pobres. Apenas para situar, uma igual fatia da Itália de Berlusconi recebe 6,5x a renda do quintil mais baixo. Na Rússia da "máfia ultracapitalista," são 7,6x. Estamos - sublinho - falando de uma estatística que ignora o 1%. Não é o Eike Batista, é alguém que ganha 4000 de salário bruto por mês e se acha pobre, ou alguém que ganha 10.000 e se acha remediado. Porque sim, o Brasil ainda é um país pobre, na média. Para continuar fazendo dos muito pobres menos pobres, sem fazer crescer a renda total (o que não é fácil, ainda mais que estamos na fase descendente de Kondratjev), só aumentando impostos, inclusive sobre a classe média, e/ou diminuindo as transferências de dinheiro público, de novo incluindo para a classe média.
Ora, apesar das evidências em contrário, (a carga tributária líquida, contando impostos e transferências diretas, brasileira é baixa E regressiva) a classe média continua achando que paga muitos impostos para sustentar vagabundo; a diferença entre a esquerda e a direita é basicamente o nome que se dá ao vagabundo, se banqueiro ou favelado. Não que eu discuta que banqueiros ganham muito dinheiro às custas do estado, mas o enfrentamento com a Febraban mostra que não foi os banqueiros que Dilma decidiu priorizar. O que faz todo o sentido pragmático - banqueiros, e as forças do capital em geral, não têm exatamente muita lealdade política: apoiarão o governo, qualquer governo, mas ao primeiro sinal de fraqueza voltam a seus candidatos do coração. Enquanto isso, não enfrentar a classe média fez com que Dilma - autoritária, sem carisma, tecnocrata, burocrata, o que mais se quiser xingá-la, aí incluídos os xingamentos homofóbicos e misóginos - superasse Lula em popularidade.
Não é só em nome da alegria dos banqueiros e ruralistas que a Amazônia está sendo jogada na fogueira. É, também para conciliar uma equação em que convivem o iphone e o bolsa-família, o vinhozinho e o cohab. É para dar o direito do pobre ao saneamento sem sacrificar o direito do "pobre" à viagem internacional.
5.9.12
Noblesse Oblige
Seguindo os passos de seu antecessor César Maia, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, pôs nos ombros da Baixada Fluminense a culpa pela superlotação nos hospitais da capital. Menos alucinado e mais político do que Maia, Paes teve o cuidado de falar mal dos prefeitos (et pourtant, todos seus aliados), ao invés de num povo que "mentiria sobre o próprio endereço" sabe-se lá por quê, mas a essência é a mesma: os hospitais da cidade central atendem uma proporção grande de pacientes da região metropolitana, e isso é injusto. É este corolário que é problemático.
A alegação de Paes é comum em tudo que é região metropolitana no mundo, mas no Brasil ela é particularmente enviesada. Isso porque, ao contrário da maior parte do mundo, o imposto sobre terras é a principal fonte de recursos municipais; em outras palavras, a idéia de que "nós estamos pagando esses hospitais que os outros usam," conquanto moralmente condenável, pelo menos faz sentido lógico. Num lugar em que o imposto do próprio município construiu um hospital e paga seus médicos, é compreensível reclamar de que outros utilizem-se desses serviços.
Não é o caso do Brasil. O IPTU não apenas não responde pela maior parte da receita municipal, como é bem menor, in toto, do que o ISS, pago em qualquer transação dentro do município - e este também é pago pelos cidadãos dos municípios suburbanos que estão na capital. Sendo esses subúrbios, como são, em maior ou menor grau cidades dormitório, seus habitantes gastam e ganham boa parte de seu dinheiro na cidade central, o que faz com que paguem impostos à prefeitura central, e não àquelas aonde moram. Em outras palavras, é bem possível que a proporção dos pacientes da região metropolitana nos hospitais do Rio (um pouco menos de um quinto) seja próxima à proporção dos impostos cariocas que saíram de seus bolsos. Sem nem levar em consideração o dinheiro vindo do SUS (nesse caso, a proporção paga pelo Grande Rio é maior do que os 18%). A reclamação de Maia e Paes é falsa como uma nota de três dólares.
Não que de qualquer jeito fosse razoável, mesmo em situações em que realmente o município está gastando dinheiro dos habitantes centrais pra atender os periféricos. E não estamos falando de um imperativo moral da caridade unilateral, mas de uma troca. Mesmo que não fossem os seus impostos a pagar pelo hospital, o trabalho e o consumo dos habitantes da periferia movem a economia da capital. As cidades centrais, beneficiárias da fragmentação metropolitana, têm o dever de ajudar suas vizinhas, em interesse próprio. Ao contrário, o que foi feito no Rio e em outras capitais foi um processo de competição intensa e desleal (com, por exemplo, a criação do polo de Santa Cruz, para desviar a instalação de indústrias na Baixada Fluminense).
Sim, interesse próprio: alguém duvida que seria de interesse do Rio uma maior oferta de empregos e opções culturais nas cidades da periferia, aliviando a intensidade dos deslocamentos e gerando mais oportunidades para todos? E o mesmo pode-se dizer, em outra escala, do comportamento dos governos estaduais, todos engalfinhados num jogo de soma zero; até 2003, os estados mais pobres transferiam renda via governo para os mais ricos. Mesmo hoje, o nível de transferência dos estados mais ricos para os mais pobres é pífio - bem menor do que o americano, por exemplo (não deixa de ser uma ironia que os estados democratas financiem os estados vermelhos "antigoverno," é verdade). Levando com isso a brutais desigualdades regionais, que não beneficiam a ninguém. O homem lobo do homem hobbesiano pode nunca ter existido naqueles termos, mas está vivo nos prefeitos e governadores brasileiros.
PS Não, essa não é apenas uma tentativa de justificar meu desejo pela transferência do Rio-Zôo para a Granja da Marinha de Caxias. :P
A alegação de Paes é comum em tudo que é região metropolitana no mundo, mas no Brasil ela é particularmente enviesada. Isso porque, ao contrário da maior parte do mundo, o imposto sobre terras é a principal fonte de recursos municipais; em outras palavras, a idéia de que "nós estamos pagando esses hospitais que os outros usam," conquanto moralmente condenável, pelo menos faz sentido lógico. Num lugar em que o imposto do próprio município construiu um hospital e paga seus médicos, é compreensível reclamar de que outros utilizem-se desses serviços.
Não é o caso do Brasil. O IPTU não apenas não responde pela maior parte da receita municipal, como é bem menor, in toto, do que o ISS, pago em qualquer transação dentro do município - e este também é pago pelos cidadãos dos municípios suburbanos que estão na capital. Sendo esses subúrbios, como são, em maior ou menor grau cidades dormitório, seus habitantes gastam e ganham boa parte de seu dinheiro na cidade central, o que faz com que paguem impostos à prefeitura central, e não àquelas aonde moram. Em outras palavras, é bem possível que a proporção dos pacientes da região metropolitana nos hospitais do Rio (um pouco menos de um quinto) seja próxima à proporção dos impostos cariocas que saíram de seus bolsos. Sem nem levar em consideração o dinheiro vindo do SUS (nesse caso, a proporção paga pelo Grande Rio é maior do que os 18%). A reclamação de Maia e Paes é falsa como uma nota de três dólares.
Não que de qualquer jeito fosse razoável, mesmo em situações em que realmente o município está gastando dinheiro dos habitantes centrais pra atender os periféricos. E não estamos falando de um imperativo moral da caridade unilateral, mas de uma troca. Mesmo que não fossem os seus impostos a pagar pelo hospital, o trabalho e o consumo dos habitantes da periferia movem a economia da capital. As cidades centrais, beneficiárias da fragmentação metropolitana, têm o dever de ajudar suas vizinhas, em interesse próprio. Ao contrário, o que foi feito no Rio e em outras capitais foi um processo de competição intensa e desleal (com, por exemplo, a criação do polo de Santa Cruz, para desviar a instalação de indústrias na Baixada Fluminense).
Sim, interesse próprio: alguém duvida que seria de interesse do Rio uma maior oferta de empregos e opções culturais nas cidades da periferia, aliviando a intensidade dos deslocamentos e gerando mais oportunidades para todos? E o mesmo pode-se dizer, em outra escala, do comportamento dos governos estaduais, todos engalfinhados num jogo de soma zero; até 2003, os estados mais pobres transferiam renda via governo para os mais ricos. Mesmo hoje, o nível de transferência dos estados mais ricos para os mais pobres é pífio - bem menor do que o americano, por exemplo (não deixa de ser uma ironia que os estados democratas financiem os estados vermelhos "antigoverno," é verdade). Levando com isso a brutais desigualdades regionais, que não beneficiam a ninguém. O homem lobo do homem hobbesiano pode nunca ter existido naqueles termos, mas está vivo nos prefeitos e governadores brasileiros.
PS Não, essa não é apenas uma tentativa de justificar meu desejo pela transferência do Rio-Zôo para a Granja da Marinha de Caxias. :P
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