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29.10.12

Pope Satan e os minhocões

O viaduto Perimetral é um monstrengo de concreto que liga o Aterro do Flamengo ao seu primo-irmão viaduto do Gasômetro, e por ele aos acessos de saída do Rio de Janeiro, na Avenida Brasil e na Ponte Marechal Ditador Costa e Silva (nome compartilhado pelo outro primo da Perimetral, o Minhocão de São Paulo). Faz parte de um projeto do auge do planejamento rodoviarista, de se criar a "perna litorânea" de um anel viário de grande capacidade no Rio. Por isso, e por criar um túnel escuro e sujo numa área que após sua construção se esvaziou tanto de população quanto de atividade econômica, ficou por muito tempo no ideário progressista como ao mesmo tempo culpado por essa decadência e ´símbolo máximo (no Rio) do pensamento rodoviarista, em que se dá ao carro a primazia, não apenas dos deslocamentos, mas da própria forma da cidade. (Bem entendido, o carro vai de mão em mão com a especulação imobiliária, pela extensão que dá à forma urbana.)

Esta noção é mais razoável do que a primeira, porque a decadência da região portuária do Rio tem mais a ver com a decadência do próprio porto, e com a migração (por conta da revolução no transporte) de sua atividade dos cais de 1910, cortados pela Perimetral, à ponta do Caju; ao contrário do que ocorre em São Paulo, aonde o Minhocão cortou áreas residenciais e comerciais, a Perimetral cortou uma área já dedicada à atividade industrial e de movimentação de carga pesada. O barulho e poluição do tráfego expresso não afastariam atividades elas próprias geradoras intensas de barulho e poluição; em Santos, as zonas próximas ao porto são em sua maioria zonas degradadas justamente pelo barulho e poluição.

Pois bem, a mesma perimetral rodoviária, hoje, é defendida por gente progressista, incluindo o candidato Marcelo Freixo, agora que o prefeito planeja sua demolição como parte de um projeto de "revitalização" do Porto, trocando a vocação da área para moradia, turismo, e escritórios. Argumenta-se que sem a rodoviária terá-se um "nó no trânsito." Ora, este é o supra-sumo do argumento rodoviarista,  a contraparte lógica do que pautou sua construção. E - logicamente, já que Eduardo Paes é um tecnocrata de direita, pouco inclinado a questionar a lógica rodoviarista* - tecnicamente errado. A Perimetral, hoje, é uma parte de uma das duas alternativas de deslocamento entre o Centro do Rio e o conjunto de viadutos e vias expressas de saída da cidade: pela orla ou pela Avenida Ditador-Presidente Vargas.

A orla consiste da Perimetral, uma via expressa tipo zero, sem cruzamentos nem sinais com duas faixas por sentido, conectando-se ao Aterro do Flamengo ao sudoeste, e abaixo dela a Rodrigues Alves, uma avenida de três faixas por sentido, com sinais e cruzamentos, conectando-se à Praça Mauá ao sudoeste; ambas conectam-se a leste ao viaduto do Gasômetro. Ora, no novo modelo a ser implantado pela Prefeitura, uma Rodrigues Alves expressa, tipo zero, sem sinais nem cruzamentos, substituirá a Perimetral, enquanto uma nova avenida, ainda sem nome, substituirá a atual Rodrigues Alves; graças a um conjunto de túneis, ambas terão exatamente os mesmos acessos do conjunto viário atual, mas com uma faixa expressa por sentido a mais.Fazendo a conta: hoje temos 2+2 linhas expressas e 3+3 locais; em 2016, teremos 3+3 exp, 3+3 locais, e o mesmo traçado em termos de acessos. 

Em outras palavras: o encampamento do argumento rodoviarista pela esquerda está tecnicamente, faticamente errado, além de representar uma contradição do discurso passado, sem passar pela autocrítica (eu, pessoalmente, mantenho o velho discurso e seria a favor da derrubada da Perimetral SEM alternativa viária expressa - a região já é próxima ao metrô e à supervia, e terá sistema de VLT para os deslocamentos internos a partir da Central).

Não que não haja muito o que criticar nas circunstâncias nas quais se dá a derrubada da Perimetral, numa operação urbana que, como suas equivalentes havidas em outras cidades, de Barcelona a Buenos Aires, tem como objetivo a inserção da cidade num modelo em que os turistas e os executivos globais prosperam e os outros, quando não pitorescos, permanecem excluídos. A operação é transparente como uma folha de granito, e transfere atribuições públicas a uma companhia privada. A gentrificação que é parte integrante dela expulsa moradores da área.** A perimetral poderia ser, com custo equivalente ao de sua demolição, reaproveitada como viaduto metroviário. Os largos terrenos vazios e próximos ao centro também seriam ótimos para fazer moradia social de alta densidade, ignorada pelo projeto. E por aí em diante.

Até por essa abundância de motivos para criticar o projeto, não dá para deixar de perceber a grita contra o fim da Perimetral, em que a esquerda irmana-se ao Otavio Leite, como um antinomismo, uma redefinição de hay gobierno soy contra em que se a direita faz algo, sou contra. Não importa o quê. Do mesmo modo, as remoções de casas de áreas de risco são criticadas não apenas pela truculência e falta de transparência, mas pela própria remoção, pondo em aspas "área de risco," como se a existência de moradias em áreas de risco, e até sua prevalência, não fosse reconhecida e criticada, principalmente no período das chuvas. Afinal,  um dos grandes fatores que levam à criação de uma favela em determinada área é justamente a indesejabilidade daquela área para quem pode morar em lugar melhor, entre outros fatores pelo risco climático-geológico.

De novo: não se trata, aqui, de defender o tecnocrata reacionário, com seus "choques de ordem" e sua cidade global para os cidadãos globais, que muito flexivelmente se alçou à prefeitura como mosqueteiro da CPI do Mensalão, junto com ACM Neto e Heloísa Helena, para em seguida governar unha-e-carne com o governo federal. Mas o antinomismo, em que tudo que ele faz é errado por definição, é uma renúncia à crítica, e não uma crítica. É, como os satanismos da vida, tanto os ingênuos de metaleiros e medievos quanto o satírico de Anton LaVey, uma condição subordinada, em que se é tão-somente espelho invertido do que se opõe; é se deixar pautar, ainda que negativamente, pela direita. Se Otavio Leite vencesse, a Perimetral voltaria ao seu status anterior de chaga urbana?

Pior: o antinomismo faz com que seja tanto mais fácil ignorar completamente a esquerda. Afinal, em termos de poder real, não há comparação entre as forças envolvidas. A direita pode abdicar do convencimento e se dedicar tão-somente à demonização do adversário porque é o lado da quiriarquia, o lado do poder por definição - e aí está o problema da minha própria crítica ao antinomismo, o de que a crítica ponderada não pode nunca se confundir com o apoio ou composição. Ponderada não quer dizer menos radical, apenas mais complexa. Não é fácil, nem um pouco. Nem poderia ser.


*Aliás, muito pelo contrário: habilmente usou a construção de corredores de BRT para integrar à malha de transporte público da cidade a Zona Oeste - em si acertada e necessária - como boi de piranha para erigir túneis rodoviários que servissem também a automóveis particulares, em especial o da Grota Funda, ambição antiga de todos os prefeitos cariocas, abrindo novas áreas à especulação imobiliária.

**Esclareça-se: o problema da gentrificação não ocorre quando um morador ou comerciante vende a própria casa ou comércio e vai para o subúrbio morar num lugar melhor. Se assim fosse, quem o põe em pauta seria, como querem os liberais, um apologista da pobreza. O problema é quando os aluguéis aumentam de maneira desmesurada, expulsando gente sem propriedade nenhuma. E na maioria das favelas brasileiras, bem como em boa parte dos bairros da zona portuária do Rio, a casa própria não é exatamente comum...



PS para reconhecer algum mérito até no modelo rodoviarista, foi graças a ele, sob o udenista Lacerda, que o Rio ganhou seu maior parque público, numa cidade carente de parques: o Aterro do Flamengo, que por sua vez foi complemento de uma via expressa que prolonga a Perimetral até as portas de Copacabana.

PPS se o choro pela Perimetral é ridículo, outros marcos do Rio de Janeiro estão sendo postos abaixo na maior desfaçatez, ante a omissão ou participação ativa dos governos estadual e municipal. Há o museu do Índio do Maracanã, que foi sede do Rondon e antes disso do Ministério da Agricultura e tem 154 anos, a antiga embaixada da Áustria que foi a primeira casa modernista da cidade, a fábrica da Brahma ao lado do Sambódromo que foi a primeira fábrica de cerveja de grande escala do Brasil...

Um comentário:

raph disse...

"É, como os satanismos da vida, tanto os ingênuos de metaleiros e medievos quanto o satírico de Anton LaVey, uma condição subordinada, em que se é tão-somente espelho invertido do que se opõe;"

Quem dera se todo mundo conseguisse chegar a essa visão, diria, "taoista" do assunto. Isso vale para quase todos os embates de ideias...

Abs
raph