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19.12.12

O menino que gritava lobo

Se aproxima (na verdade era pra já ter chegado há um mês, atraso que deixa desesperada nossa presidenta elétrica) a estação das chuvas na Serra do Mar. Com ela, mais uma vez ficará patente a balela que é a declaração de que "o Brasil não tem desastres naturais." Choverá mais do que no Furacão Sandy que arrasou os EUA, sobre solos finos cobrindo a pedra gneiss íngreme, e isso resultará na - quase inevitável - morte de dezenas. Talvez centenas. Possivelmente milhares. É uma tragédia recorrente: em 2010 foram S. Luiz do Paraitinga e Angra, além do Rio de Janeiro,  em 2011 foi a Serra dos Órgãos e em Santa Catarina. E esses são os grandes, os que ganham notícia; mortes em menor escala, nas periferias e ocupações, não ganham os jornais. As mortes recorrentes são recorrentemente atribuídas, como explicação universal, à "moradia em situação de risco," com tal força que apenas recentemente começou a se cogitar coisas como alarmes, evacuações, e alertas de desastre nessa serra propensa a desastres e com 80 milhões de pessoas em cima. Assim, parece à primeira vista paradoxal que quando se fala em remover pessoas de situações de alto risco, as próprias pessoas resistam, e ainda sejam apoiadas por muitos.

Os boatos que "explicam a verdadeira razão" das remoções parecem coisa de paranóico. Especulação imobiliária, no fundo de uma favela? Hotel do Eike Batista, a ser alcançado só pelo plano inclinado da mesma favela? As soluções alternativas, pouco razoáveis, propugnando uma contenção de encostas sem remoção dos atuais barracos (pode até ser feita, provavelmente a preço de ouro, uma contenção ali, mas durante a obra os barracos teriam que pular fora). Mas por que as pessoas, se sabem da tragédia recorrente das chuvas, se inclinam a esse tipo de explicação? Bem, talvez seja porque a prefeitura, que pode até ter razão nesse caso, mente como um tapete, no feliz trocadilho inglês, sobre remoções. Depois de gritar lobo falsamente por duas vezes, o menino foi devorado na terceira; Dudinha (e todos os prefeitos antes dele) gritou o lobo da remoção essencial muito mais de duas vezes, e quem pode ser devorado não é ele.

Assim, as pessoas removidas para a obra da Transoeste, justificada como instalação de um transporte de massa ligando o eixo oeste da cidade, realmente extremamente necessária (junto foram umas pistinhas de carro, que ninguém é de ferro), continuam sem lar até hoje, e os terrenos foram usados para outros fins. Assim, a Vila Autódromo, já parcialmente urbanizada, sem nenhum risco ambiental, e que o plano do parque olímpico aprovado em concurso preservava, vai pro saco com justificativas nebulosas (ora é a olimpíada, ora BRT, ora meio ambiente). E por aí em diante.  Como confiar numa prefeitura dessas? Como não acreditar que quer remover algo precioso para dar ao Eike, se é exatamente o que o aliado Cabral quer fazer no Maracanã?

E como não dar razão a quem não quer ser removido, se as remoções, até hoje, são para depósitos de gente - talvez menos longínquos e carentes de infraestrutura do que foi Cidade de Deus, mas igualmente desprovidos de qualquer planejamento urbano? Um imenso conjunto-bairro sem espaço para o comércio ou outras atividades além da moradia não apenas é um lugar desagradável de morar: para quem não tem carro nem tempo, é inviável mesmo. Sem cabelereiro (e vá conseguir um emprego sem cabelo arrumado, especialmente se o cabelo for "ruim"), sem igreja, sem bar, sem mercadinho que deixa comprar fiado... (a imprensa, ao invés de reconhecer a carência urbanística, denuncia os que tentam preenchê-la). Isso tudo, claro, supondo que há um conjunto habitacional habitável esperando os removidos, o que está longe de ser sempre verdade, como mostra esta reportagem d'O Globo:

Depois de quase três anos vivendo em situação precária no 3º Batalhão de Infantaria (BI), em São Gonçalo, parte das 89 famílias sobreviventes da tragédia do Morro do Bumba, em Niterói, vê a possibilidade de enfim se mudar para uma casa própria se distanciar. A entrega de apartamentos do programa Minha Casa Minha Vida prometida para julho deste ano deve ser adiada pela construtora, após dois dos 11 prédios erguidos no bairro do Fonseca apresentarem rachaduras, como mostrou ontem o “RJ-TV”, da TV Globo. Pelo menos um deles terá que ser inteiramente demolido e reerguido. Em relação ao outro, ainda está sendo analisado se será posto abaixo ou se há possibilidade de ser recuperado. Cada edifício custou R$ 2 milhões da verba total de R$ 27 milhões liberada pela Caixa Econômica Federal para a construtora Imperial Serviços Limitada


Favelas são, realmente, muitas vezes construídas em áreas de risco, por motivos óbvios: são as áreas que a cidade formal não quis ocupar. São áreas ruins, por algum motivo (favelas na lonjura da periferia têm mais chances de serem erguidas em terrenos razoáveis - nesse caso a condição negativa é a própria lonjura).  Se não fossem, estariam certos os reacionários que acham que favelados são "folgados" inescrupulosos que simplesmente querem morar bem sem pagar pelos terrenos. Então é, mais que verdade, quase axioma que muitas favelas são complicadas de resolver urbanisticamente, e uma proporção nada insignificante tem que ser removida mesmo. O problema é quando se mistura essa proposição com o preconceito, a truculência, e os interesses velados, que fazem com que a remoção de gente que atrapalha os negócios ser mais comum do que a de gente que está em risco. Num exemplo paulistano em que se mistura a razoabilidade da remoção com o interesse escuso, a favela do Moinho, que pegou fogo duas vezes este ano, é realmente um lugar inabitável. Foi construída sobre terreno contaminado; não se guarda água no lugar por causa disso. Mas o motivo que move a sua remoção (e, quem sabe, os incêndios) é, antes, o interesse na área pela CPTM, bem como a desvalorização que a favela causa no entorno. Qualquer alegação ambiental fica ridícula, quando o bosquinho da favela, que escapou ao fogo, foi desmatado por uma empresa de estacionamento.

E assim se vão os lobos a devorarem aldeias.

PS Este post, de 19 dezembro de 2012, foi anterior em exatamente 3 meses às chuvas torrenciais que atingiram Petrópolis com mais água do que o Katrina em Nova Órleans. Quando fui pegar o outro post para apensá-lo a este, além de fazer este pós-escrito, sobre como "área de risco" em algum grau é toda a Serra do Mar, descobri que Kassab em 2011 fez exatamente a mesma coisa que Dilma em 2013. A única diferença é que não se sabe o que foi fazer depois da declaração - Dilma continuou seu passeio turístico em Roma.

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