Graças à greve de fome de um bispo, a transposição do São Francisco conseguiu virar tema de debate nacional. Até agora, estava só no rol de obras bilionárias daquelas "necessárias para o crescimento," pelo menos fora do Nordeste. Neste exato momento, o governo tenta mentir para o bispo falando de uma revitalização que custaria 6bn ao longo de 20 anos. Ora, 6bn ao longo de vinte anos, ainda mais com um aumento da irrigação ao longo das margens, mais a transposição, mais a continuada degradação das cabeceiras do rio...pode ajudar, claro, mas "revitalizar" é que não vai. E outra coisa: pra proteger o São Francisco, ações em Minas são mais importantes do que no Nordeste, já que só 25% das águas do rio, que é quase um Nilo, entram nele depois da fronteira MG-BA.
Curiosamente, o governo está sendo vítima da própria boca. Isso porque a "transposição" não é um projeto tão grandioso quanto parece. É muito menos do que os 740m3/s que, sem tanto alarde, os californianos tiram do Colorado (que hoje em dia, como o Hwang Ho, às vezes não chega no mar), ou do que é tirado dos rios no Sudeste brasileiro para abastecimento de água. Afetaria menos o rio do que as barragens que fazem do seu curso inferior uma sucessão de lagos - não custa lembrar que Sobradinho é o maior lago do Brasil, e a perda por evaporação adicional nesse lago imenso é de 132m3/s, mais do que o quíntuplo da "transposição."
O projeto também tem falhas conceituais - por exemplo, quando falam em aumentar a vazão dele "só quando o São Francisco estiver vertendo água em Sobradinho," estão querendo dizer que vamos pagar por bombas e túneis de 127m3/s que vão funcionar a 21% a maior parte do tempo? E como essa irrigação sazonal vai entrar numa agricultura regular, já que o S. Francisco tem ciclos plurianuais de cheia e seca? E porque estimular a fixação humana num ambiente precário, ainda mais baseando-se na agricultura, ao invés de tentar reduzir o uso de água nesse ambiente, que não chega a ser desértico, e onde, portanto, uma cultura menos hidrointensiva poderia sobreviver sem problemas?
Agora, fora isso tudo, a grande piada, a ironia realmente deliciosa da coisa é que o maior dano ecológico da transposição não seria no São Francisco, mas na área "beneficiada" pelas obras. Transformar uma área de rios sazonais em área de rios perenes é alterar o ecossistema tanto quanto tirar a água de uma parte onde ela é abundante. Só que, infelizmente, a caatinga não tem o carisma da Amazônia, e desertos em geral continuam sendo vistos como áreas a ser colonizadas, não preservadas. O que não é um problema tão grande para os desertos propriamente ditos, já que a humanidade ainda não consegue atacá-los com facilidade, mas está transformando em desertos os semiáridos.
Faz falta um Liet Kynes.
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