A usina de Belo Monte recebeu nesta quarta autorização do Ibama para construir suas ensecadeiras. Traduzindo: para desviar o curso do Xingu, e o rio morre, como ecossistema, a partir deste momento. Não, não é exagero: o Ibama comentou, mas não considerou impeditivo, sobre o fato da correnteza no novo leito ter uma velocidade de 2,5m/s. O número não significa muita coisa assim, para a maioria das pessoas, pouco acostumada a falar em velocidades de metros por segundo, mas vamos traduzi-lo também: nove quilômetros por hora, ou, se preferirem o jargão náutico, cinco nós. É a velocidade de uma pessoa trotando, ou quase o triplo do Michael Phelps batendo um recorde. A área toda da Volta Grande (aquela que não vira um leito seco) vira uma enorme corredeira, em que não será possível nadar, e embarcações de pequeno porte terão dificuldades para se deslocar.
O momento é particularmente importante porque Belo Monte não é apenas uma represa: é o começo de um grande projeto de ocupação da Amazônia, sonhado desde a Guerra Fria, que inclui mineração, agricultura, e estradas. E os habitantes atuais do lugar - índios, bichos, caboclos, ribeirinhos - que se danem. Votamos numa guerrilheira torturada para ela realizar os sonhos dos militares que a torturaram. Como foi mesmo que isso aconteceu? Dilma teve o cérebro trocado pelo de Geisel numa operação paranormal da CIA? Pior que não. A explicação é mais prosaica, menos divertida, e o pior: mais difícil de lutar contra. Dilma não encampa o projeto de ocupação/devastação da Amazônia por maldade nem por burrice, mas por uma conta bastante simples: a classe média que se importa com os índios é menor do que a classe média que reclamaria de um aumento de impostos (algo paradoxalmente, em muitos casos é a mesma). Não dá pra continuar o projeto petista de diminuição da pobreza (com resultados admitidamente impressionantes em uma década) sem ou bem dividir o bolo, ou bem fazê-lo crescer rápido; e a conversão de capital natural acumulado é uma fórmula de crescimento rápido, como muito bem demonstrado, no caso da destruição das florestas e pradarias americanas, pelo William Cronon.
Dividir o bolo não significa apenas tirar dinheiro dos muito ricos e abastados, o 1% do movimento Occupy Wall Street. A classe média de que falamos, os 20% mais ricos, já possui renda média 3x superior à renda per capita brasileira, ou 12x superior à dos 20% mais pobres. Apenas para situar, uma igual fatia da Itália de Berlusconi recebe 6,5x a renda do quintil mais baixo. Na Rússia da "máfia ultracapitalista," são 7,6x. Estamos - sublinho - falando de uma estatística que ignora o 1%. Não é o Eike Batista, é alguém que ganha 4000 de salário bruto por mês e se acha pobre, ou alguém que ganha 10.000 e se acha remediado. Porque sim, o Brasil ainda é um país pobre, na média. Para continuar fazendo dos muito pobres menos pobres, sem fazer crescer a renda total (o que não é fácil, ainda mais que estamos na fase descendente de Kondratjev), só aumentando impostos, inclusive sobre a classe média, e/ou diminuindo as transferências de dinheiro público, de novo incluindo para a classe média.
Ora, apesar das evidências em contrário, (a carga tributária líquida, contando impostos e transferências diretas, brasileira é baixa E regressiva) a classe média continua achando que paga muitos impostos para sustentar vagabundo; a diferença entre a esquerda e a direita é basicamente o nome que se dá ao vagabundo, se banqueiro ou favelado. Não que eu discuta que banqueiros ganham muito dinheiro às custas do estado, mas o enfrentamento com a Febraban mostra que não foi os banqueiros que Dilma decidiu priorizar. O que faz todo o sentido pragmático - banqueiros, e as forças do capital em geral, não têm exatamente muita lealdade política: apoiarão o governo, qualquer governo, mas ao primeiro sinal de fraqueza voltam a seus candidatos do coração. Enquanto isso, não enfrentar a classe média fez com que Dilma - autoritária, sem carisma, tecnocrata, burocrata, o que mais se quiser xingá-la, aí incluídos os xingamentos homofóbicos e misóginos - superasse Lula em popularidade.
Não é só em nome da alegria dos banqueiros e ruralistas que a Amazônia está sendo jogada na fogueira. É, também para conciliar uma equação em que convivem o iphone e o bolsa-família, o vinhozinho e o cohab. É para dar o direito do pobre ao saneamento sem sacrificar o direito do "pobre" à viagem internacional.
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