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15.1.10

Braços secos

Muita gente tem comentado sobre como o Haiti tem "azar" na história. País mais pobre das Américas, etc etc. Eu mesmo comentei isso quando ouvi do terremoto pela primeira vez. Pois bem, só pra constar: o Haiti não é o país mais pobre das Américas por azar, por incúria dos nativos, ou por um acaso inexplicável. É o país mais pobre das Américas porque tem sido, sistematicamente, alvo das atenções das grandes potências européias e dos EUA, que roubaram tudo que não estava pregado no chão. E olhe lá.

A história do Haiti começa em 1804. Enquanto as revoluções burguesas da mesma época nos EUA e França tiveram participação popular mas foram dirigidas pela burguesia (e, nos EUA, a pequena aristocracia local), no Haiti a pequena burguesia foi a reboque, e a aristocracia foi pra fogueira. A revolução começou no Bois Caiman (capão dos jacarés), onde o houngan (pai de santo) Dutty Boukman organizou uma grande cerimônia vudu para selar o compromisso da revolta e pedir apoio espiritual; a filha de santo que, possuída pela loa Erzuli Dantor (o aspecto Petro, terrível, da loa Erzuli, cujo aspecto Rada, benévolo, é a deusa do amor) sacrificou um porco negro na cerimônia se transformou depois, segundo a lenda, na loa terrível Marinette Bwa Sech, padroeira das revoltas e dos lobisomens, cujos cavalos são marcados para a morte pela violência. O próprio Dutty foi morto pelas autoridades francesas; outros levaram a revolução adiante até que o Haiti se tornou o primeiro país livre das Américas, derrotando para isso o general Leclerc, cunhado de Napoleão Bonaparte, e 35.000 granadeiros daqueles que deixavam os exércitos da Europa tremendo que nem vara verde.

A revolução haitiana povoou as mentes das elites americanas por todo o século XIX. Debates nos parlamentos dos vários países que se separaram da Europa mas mantinham escravos faziam referências frequentes a elas; tal ou qual medida era sempre apoiada porque "evitaria um Haiti" ou atacada porque "levaria ao Haiti." O próprio Haiti, entretanto, veria, além das lutas internas entre negros e mulatos, uma derrama de seus cofres a pagar em idenizações à França pela própria independência; a contrapartida era o reconhecimento pela França e por outros países, sem o que a economia do país, baseada na agroexportação, não funcionaria. (OS EUA foram os únicos a não reconhecer a independência mesmo depois do pagamento à França.)

Além da imensa dívida à frança (21 bilhões de euros, em valores de hoje), o Haiti foi alvo de extorsões diversas ao longo do século XIX. Funcionava assim: alemão (ou americano, francês, britânico) era acusado de algum crime no Haiti e preso. Governo do cidadão se indignava com o fato de negros prenderem um homem de bem. Mandava uma ou duas canhoneiras bloquearem o porto de Port-au-Prince até que o cidadão fosse libertado e fosse paga uma bela "idenização." Nessas extorsões foram outros 9 bilhões, em valores de hoje.

Depois da segunda guerra mundial, as extorsões saíram de moda. As lutas entre negros e mulatos (estes compondo a maior parte da elite econômica) continuaram, entretanto. Além disso, em 1915, os EUA invadiram e ocuparam o país, a pedidos da HASCO, agrocorp açucareira que temia uma alta nos impostos. O banco central do Haiti, com suas reservas, foi entregue ao National City Bank of New York, que antes da ocupação já havia comprado uma participação no BC, mas depois dela anexou tudo e passou a se esquecer de pagar juros sobre os valores depositados. Foram instauradas no Haiti as leis raciais "jim crow" do sul dos EUA, parte de uma constituição (escrita pelo FDR) outorgada e aprovada por 98.75% dos eleitores haitianos. (Arrã.) Um dos marines no Haiti, Smedley Butler, depois descreveu suas próprias ações assim:

"I spent 33 years and four months in active military service and during that period I spent most of my time as a high class thug for Big Business, for Wall Street and the bankers. In short, I was a racketeer, a gangster for capitalism. I helped make Mexico and especially Tampico safe for American oil interests in 1914. I helped make Haiti and Cuba a decent place for the National City Bank boys to collect revenues in. I helped in the raping of half a dozen Central American republics for the benefit of Wall Street. I helped purify Nicaragua for the International Banking House of Brown Brothers in 1902-1912. I brought light to the Dominican Republic for the American sugar interests in 1916. I helped make Honduras right for the American fruit companies in 1903. In China in 1927 I helped see to it that Standard Oil went on its way unmolested. Looking back on it, I might have given Al Capone a few hints. The best he could do was to operate his racket in three districts. I operated on three continents."

Em 1934, os americanos pararam de administrar o país diretamente, e passaram a apenas patrocinar diversos ditadores, como no resto do hemisfério ocidental, entre eles o infame Papa Doc Duvalier, que apesar da reputação foi melhor do que a média, em parte porque conseguiu usar o reconhecimento oficial da religião vudu como fonte de legitimação popular própria, e assim resistir a parte das pressões americanas ("legitimação popular" que passava também pelo terror, tanto dos poderes vudu atribuídos ao ditador quanto pelos seus esbirros, os tontons macoutes, bem entendido). O padrão, com os EUA interferindo o tempo todo em políticas de camarilha, segue até hoje - sendo que a última deposição presidencial, na qual o presidente foi empacotado e levado por marines para a República Centro-Africana, continua mal explicada.

Azar o caramba. A história do Haiti é de opressão alheia, mesmo. Marinette dos braços secos merece mais rezas pelo país do que Ayida Wedo, loa da boa sorte e da riqueza.

Só pra lembrar:

site de doação do Médecins sans Frontières

site de doação do Programa Alimentar Mundial da ONU

4 comentários:

raph disse...

Eu estava postando sobre isso, então aproveitei que você explicou muito bem o "azar" do Haiti, e inclui um link no meu post para este aqui:

http://textosparareflexao.blogspot.com/2010/01/o-haiti-e-aqui.html

Também vale a pena ver a resposta de um embaixador a suposta "maldição do Pat Robertson":

http://www.huffingtonpost.com/2010/01/13/pat-robertson-haiti-curse_n_422099.html

Abs
raph

Christiano Milfont disse...

Lendo seu texto dá a entender que só os malvados europeus e os americanos são os culpados diretos pelo Haiti.
Ainda suaviza o grande humanista dr. Papa Doc.
Menos né, dizer que Papa Doc foi o melhor do que a média é brincadeira de mal gosto.

thuin disse...

Interpretação de texto: quando digo que ele foi melhor do que a média, com itálicos, deixo entendido que a reputação "infame" dele foi inteiramente merecida. É pra sublinhar que os outros foram piores.

E sim, a diferença entre o Haiti e os outros países é o grau e tipo de interferência externa. Não é coincidência a África ser o continente que está pior.

Na Transversal do Tempo - Acho que o amor é a ausência de engarrafamento disse...

Excelente, aliás, todo o Blog.Discordo por vezes de textos e posturas, mas seria leviano negar a qualidade,excepcional,do blog como um todo e de sua preocupaçãocom um conteúdo informado e pesquisado. Tá favoritado.