As pessoas ficaram chocadas com o reverendo Pat Robertson, que num espetáculo de insensibilidade, logo após o terremoto disse que o Haiti mereceu o acontecido porque teria feito um pacto com o demo para expulsar os franceses. O âncora da NBC Keith Olberman inclusive soltou o verbo em cima do Pat Robertson e do comentarista Rush Limbaugh.
A besteira do reverendo tem sua origem no fato de (como já mencionado no post anterior) a revolução haitiana ter começado numa cerimônia vudu. Como vudu é coisa do demônio, logo... O que acho curioso, entretanto, é que muita gente concordaria instintivamente com o Pat Robertson sobre o vudu. No caso dele, qualquer religião que não seja o neopentecostalismo é coisa de Satã - ele já disse textualmente que Islã, Catolicismo, e Anglicanismo, pelo menos, o são. Mas a idéia do vudu como religião satânica é bem mais ampla do que entre os evangélicos.
Até o começo do século XX, essa visão do vudu como coisa do demo, ou então "selvagem" e terrível era estendida a todas as outras religiões afro-americanas. Mas nos anos 20, 30, as outras foram ganhando cartas de alforria, graças em parte ao trabalho de antropólogos e escritores que inclusive fizeram de algumas delas, como a Santería cubana e o Candomblé baiano, ícones da Kultur nacional e/ou regional.
Já o vudu, em parte por ser, graças à sua filial em Nova Orléans e à ocupação americana do Haiti em 1915-34, mais próximo dos EUA, teve a "sorte" de entrar para a mitologia americana como religião demoníaca. Parênteses: existe uma religião afro-americana nativa dos próprios EUA, o Obeah, mas no século XX ele já tinha se tornado algo vestigial, quase sem praticantes. O que faz sentido se você lembrar que o total de seres humanos embarcados para os EUA foi bem menor que o total do Haiti, para um país imensamente menor - o total do Caribe como um todo é de uns quatro milhões, número similar ao do Brasil, enquanto para os EUA foram uns 360.000 e só para o Haiti mais de 950.000.
Influenciados por essa representação mitológica, muita gente ainda tentou traçar as origens da diferença (fictícia) entre o Haiti e os cultos afro "bonzinhos." Nesse esforço, coopera o fato de os loas haitianos serem (como em algumas variantes da Umbanda) divididos em duas nações, Rada (oriundos da África) e Petro (nativos do Haiti). As nações podem ser vistas como loas separados ou como aspectos de cada loa (embora alguns, como a petro Marinette Bwa Sech não tenham correspondente na outra nação), e o fato de a nação terrível ser tida como crioula representaria, para os estudiosos que tentaram vestir a carapuça no vudu, como "evidência" de que o vudu teria se brutalizado no Haiti, devido à história de sangueiras do país (Leclerc, na tentativa napoleônica de debelar a revolução, matou um terço da população, e guerras civis foram uma constante desde então.)
Fechando com chave de ouro a má reputação do vudu, numa época em que começava-se a ter mais respeito por religiões pagãs até nos EUA, o pai-de-santo e médico François Duvalier, Papa Doc subiu ao poder no Haiti e se, por um lado, encampou o reconhecimento oficial do vudu como religião nacional, por outro lado abusou de sua reputação de pai-de-santo do mal, com direito a apelidar ele mesmo suas milícias políticas de tonton-macoutes, bichos papões. É em parte graças a ele que só hoje em dia o vudu finalmente começa a se livrar (fora dos círculos evangélicos) da reputação de coisa do capeta.
Pra fechar, sem nada a ver com o vudu, o vídeo do Arcade Fire falando do Haiti.
3 comentários:
Como de costume, artigo excelente. A música, então, é muito, muito boa.
A ignorância e a intolerância é o mal do mundo.
Só uma correção: Keith Olbermann é do canal a cabo MSNBC, não da NBC.
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