Quando foi lançado o filme Thor, baseado na história em quadrinhos homônima da Marvel sobre o super-herói epônimo, eu comentei que o filme já me dava alegria mesmo antes d'eu vê-lo, porque várias associações de conservadores reclamaram do fato de um dos personagens, Heimdall, ser interpretado por um ator negro, já que os asgardianos são inspirados, um pouco, nos deuses nórdicos. Não que eles fossem racistas, claro, era apenas uma questão de fidelidade histórica. OK, eles são racistas sim, porque fidelidade histórica é o escambau. Mesmo deixando de lado o fato de que os asgardianos são apenas vagamente inspirados na mitologia nórdica, na qual Thor não era parente de Odin e era especificamente descrito como ruivo, nem os Aesir são deuses, e não alienígenas com uma Bifrost canhão de teletransporte, mesmo deixando tudo isso pra lá, se eles não fossem racistas, não teriam se agarrado à cor do Idris Elba como coisa mais destoante da nordicidade do filme. Isso porque o Loki é mesmo Laufeyson, filho de Laufey, na mitologia - mas no filme, esse Laufey é o rei dos gigantes do gelo, e em norueguês (tanto arcaico quanto moderno) Laufey é um nome de menina. O pai do Loki é Farbauti, um gigante cujo nome já foi interpretado pra dizer que ele representaria o raio - o que faria de Loki, meio-irmão e não filho de Odin na mitologia, de certa forma filho do Thor. Um norueguês que assista o filme, a não ser que seja ele mesmo um nazi (o que não é de todo impossível) vai achar muito mais estranho o rei dos gigantes se chamando Ana Maria do que um dos deuses sendo negro.
E o fato de eles terem sido olimpicamente (asgardianamente?) ignorados pela produção do filme muito me alegrou. Faz sentido - a Marvel, cuja encarnação moderna, assim como quase todos os superheróis principais, foram criados por um bando de judeu novaiorquino, mexe com, e contra preconceito, há algum tempo. No que se refere especificamente ao racismo stricto sensu, a editora tem os primeiros personagens de quadrinhos de superheróis negros, desde os anos sessenta - e no começo dos anos setenta lançou um monte de superheróis negros, como Luke Cage (este com sua própria revistinha) e o Irmão Vudu, que - parte até pelo desconhecimento desse bando de judeu novaiorquino sobre cultura negra, parte em atendimento à onda do blaxploitation - em retrospecto têm no seu visual e atitude algo de preconceito também, mas pô, foi bem intencionado.
Na mesma linha do efeito antecipado, e um pouco mais sério do que uns racistas enrustidos chorando por um filme de gibi, o novo código florestal do Aldo Rebelo já está provocando problemas antes mesmo de ser aprovado, com fazendeiros querendo desmatar o máximo possível para se beneficiar da anistia prometida pelo Aldo (hoje, por pressão do governo, foi retirada a anistia do texto, mas ruralistas já avisaram que vão reintroduzi-la durante a votação). O processo é particularmente preocupante porque reverte, rapidamente, toda a luta contra o desmatamento realizada ao longo de quase uma década pelo ministério do Meio Ambiente sob Marina Silva e Carlos Minc. A diminuição do desmatamento ocorrida no governo Lula foi, em boa parte, fruto, mais até do que diretamente da fiscalização que agora acontecia (e ao contrário de soluços temporários para menos anteriores, que só ocorriam em épocas de vacas magras econômicas), da percepção de que o governo não toleraria o desmatamento; em outras palavras, da insegurança jurídica do negócio ilegal. Com o aceno de Aldo Rebelo, os madeireiros e fazendeiros perderam esse medo do investimento soçobrar.
Também é preocupante pela pergunta que levanta: no governo Lula, muitos passaram a idéia de uma oposição entre uma Dilma "Magnitogorsk," comprometida com o desenvolvimento econômico a ferro e fogo, mesmo que implicasse em problemas ambientais e sociais, e as áreas mais, digamos, à esquerda, ou a uma concepção específica de esquerda (que, admito, é aquela com a qual eu mesmo me identifico), que acham que não vale a pena um megaempreendimento a qualquer custo de pessoas deslocadas de seus lares e matas destruídas. A visão Magnitogorsk do mundo hoje é questionada até por economistas, devido ao fato de que os bons índices de desenvolvimento alcançados A) ignoram a dilapidação de ativos não quantificados, e B) no longo prazo, enfrentam tetos de produtividade e retornos decrescentes; mas são muitos os chefes de estado que acham que os números do PIB valem qualquer sacrifício (pelos outros).
Resta saber se Dilma realmente é uma deles. O empenho do governo em negociar um "meio termo" entre o absurdo do código ruralista e o atual (e civilizado) texto, junto com a aprovação explícita a Belo Monte e tácita aos outros grandes projetos de hidrelétricas na Amazônia, indicam que, se não chega a ser, tende muito mais para esse lado do que o governo Lula.
O governador do Mato Grosso, que estimulou o desmatamento ilegal à espera do fait accompli, conta com isso, e esta notícia-editorial (coisa cada vez mais comum no jornalismo brasileiro, que daqui a pouco vira uma blogolândia impressa) do Diário de Cuiabá, oficialista como a maioria dos órgãos de imprensa regionais, resume a filosofia: "Mato Grosso deve praticar o positivismo sempre acreditando que o projeto maior dispensa discussões periféricas, que sempre abrem brechas aos contestadores de plantão contra o desenvolvimento." Discussões periféricas, claro, como cui bono, quem realmente vai lucrar com o "desenvolvimento," e sua contraparte menos famosa, cui malo - quem não apenas não vai lucrar, como só vai é tomar no lombo.
PS falando em representações bem intencionadas mas problemáticas de negros, e só um pouco antes dos heróis blaxploitation da Marvel, olha que bonitinho o ganhador do prêmio nacional [japonês] de literatura infantil de 1969.
Um comentário:
O Irmão Vudu é hoje o Sorcerer Supreme do universo Marvel, vamos ver quanto vai durar... Mas já é maneiro o fato de ter sido, quando na época especulavam um monte de gente (quando o Dr. Estranho estava para se "aposentar" do cargo), e acho que praticamente ninguém havia pensado no Irmão Vudu.
Abs
raph
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