O editorial da Folha de São Paulo a favor da NORMA CULTA (assim, com maiúsculas) é um primor de senso comum com tentativas canhestras de arrotar conhecimento,* e um preconceito de classe esperado, mas meio ridículo na sua obviedade. Também tem um ar um pouco retrô - remete aos editoriais dos jornalões americanos denunciando o uso de "ebonics" em escolas situadas em guetos negros, na segunda metade dos anos noventa.
Mas o que choca mesmo são as afirmativas que ele comete, para se esquivar da acusação de preconceito de classe (já que não pegaria bem para um jornal dizer "alguns dos meus melhores amigos falam errado," como aqueles melhores amigos negros dos racistas), a de que a norma culta é "um lastro, que também evolui no tempo, cujo sentido é tornar a língua estável e previsível; sem tal garantia, as variações cresceriam de forma desordenada até inviabilizar a própria comunicação." A Folha acaba, pelo visto, de revolucionar a linguística, além de anular a história. Não existe nenhuma associação entre a existência de algum tipo de norma culta e homogeneidade linguística, ou taxa de evolução da heterogeneidade. Línguas e dialetos (a diferença é geralmente mais política que qualquer outra coisa) sem uma "norma culta" não caminham nem mais nem menos rápido para a Torre de Babel do que aqueles que a possuem.
A ameaça é ainda mais engraçada no Brasil, aonde mutatis mutandis a maior parte da população fala praticamente a mesma variedade de português; há mais heterogeneidade no falar entre as regiões do minúsculo Portugal do que entre as do enorme Brasil - não é privilégio nosso, dá-se o mesmo nas Américas hispânica e Anglo-Saxã, comparadas com suas antigas metróples, como qualquer um que já tenha assistido um filme do Ken Loach sabe. E dizer que a norma culta das escolas é o que preserva a unidade da língua mátria, num país em que só muito recentemente uma maioria da população chegou ao ensino básico é outra grande piada; se nos preocupamos com a Nação em línguas, mais vale reclamar com a Globo que com o MEC.
O jornal afirma ainda que o aprendizado da norma culta "faz parte da disciplina intelectual que deveria ser estimulada em qualquer estabelecimento de ensino. Aprender custa tempo e esforço." Ora, se é assim, se se trata apenas de levantar pesos com o cérebro, por que a norma culta do português e não, sei lá. Geologia aplicada. Astrologia indiana. Alquimia taoísta.
Mas a chave para o entendimento do edital,talvez a contragosto do próprio, está no penúltimo parágrafo, ipsis literis De algumas décadas para cá, a pretexto de promover uma educação “popular” ou “democrática”, muitos educadores dedicam-se a solapar toda forma de saber implicada no repertório de conteúdos que a humanidade vem acumulando ao longo das gerações. Ou seja, é reacionarismo puro e simples, contra o que é popular ou democrático. O que fica claro e explícito porque, ao contrário do alegado pela Folha, a distinção social é, sim, a função primária da "norma culta," que nasce a partir dos dialetos específicos falados pela elite letrada, à medida que cada "língua nacional" é criada junto com a noção de estado-nação, com direito à perseguição legal e física de quem se atreve a falar as línguas gerais, patois, e vernáculos. Tanto que a norma culta (de sotaque assim como de gramática) inglesa-britânica, antes de se chamar como hoje "received pronunciation," "sotaque recebido," chamava-se, e mais corretamente já que não envolve só sotaque, "the queen's English," o inglês da rainha (ou do rei, dependendo da genitália assente no trono).
*Falar en passant, como se fosse coisa que o autor acha tão de conhecimento comum que nem precisa ser explicada, das "ferozes controvérsias gramaticais da República Velha." E aí apor "1889-1930."
PS o mais divertido da grita, como com a prova de inglês do Itamaraty, é a quantidade de gente urrando pela NORMA CULTA e que comete erros primários.
2 comentários:
ai gente, na capa do globon hoje tinha erros de concordância graves. deu vontade de fazer um print da tela. mas tirando isso, dá pra mandar esse texto praquele senhor que é responsável por nossa existência? todo dia agora me liga pra fazer piada do mec. tô ficando de saco muito do cheio.
O que enche o saco é a politização de quase toda a notícia (por mais irrelevante que seja para a política em geral) que o permita.
Parece que o pessoal fica com saudades do embate do 2o Turno das eleições... É que nem lutador de briga de rua, bata ou apanhe, o negócio dele é brigar sempre que encontrar uma brecha.
Para mim, a única relevância disso tudo é que posso usar o termo "TODOS CHORA", não porque isso tenha qualquer coisa a ver com o livro do MEC (mas os tucanistas prontamente se idenficicam como se tivesse), mas simplesmente porque eu gosto de usar o termo mesmo :)
TODOS CHORA
raph
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