TIGER, tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?
Difícil encontrar unanimidade maior do que a de que gatos são um bicho fofo. Olha que bonitinho, o gatinho brincando com o novelo! Et pourtant, gatos são um dos maiores problemas ecológicos do mundo, responsáveis por maiores perdas de biodiversidade do que todos os pukka sahibs e Hortelinos Troca-Letras com suas espingardas. Afinal de contas, venhando e convenhando, qualquer dono de gato sabe que, ao contrário dos cães, eles são carnívoros exclusivos. Os romanos, antes de a moda vinda do Egito de criar gatos se espalhar pelo império, descreviam eles como "panteras em miniatura." (Conheci um gato vegetariano que, sabe-se lá como, sobrevivia. Mas não é o normal.) Pior do que isso: como todos os mamíferos carnívoros, o gato mata mesmo quando não precisa, por brincadeira. Ao contrário dos gatos selvagens, os domésticos e semidomésticos, alimentados fartamente à base de ração, não vão morrer se matarem todos os animais que podem lhes servir de presa - e é exatamente isso que eles fazem.
A solução, claro, é espinhosa. O artigo do IBAMA australiano ligado acima fala de gatos mustangues, gatos domésticos tornados em selvagens, e estes são relativamente "fáceis" de se lidar; longe dos olhos da maioria das pessoas, são exterminados como qualquer outro predador invasivo o seria. Nem tão fácil assim, em termos práticos, já que é um predador relativamente inteligente, furtivo, capaz de subir em árvores e que se reproduz mais ou menos rapidamente. E, o pior, um predador cujo rebanho é reabastecido com espécimes de fora da área controlada, vindos de áreas domésticas.
E esse é o busílis da questão: quanto mais próximo de habitações humanas, mais difícil se torna controlar os gatos, por conta dos laços afetivos estabelecidos entre eles e os seres humanos. É difícil falar em controlar a população de gatos em parque, ou mesmo de impedir que eles sejam alimentados à farta. É mais difícil ainda, quase impensável, falar em controlar gatos domésticos, do tipo que vive entre a casa e o ninho de passarinho da árvore vizinha. Falo de laços afetivos, e não de questões éticas ou morais, que é o discurso no qual muitas vezes se insere o tratamento a gatos e cães, porque sinceramente, para mim qualquer relação moral a se estabelecer com bichos deve se pautar como critério de distinção entre espécies animais pela inteligência (e possível consciência) dos mesmos, caso em que os porcos são provavelmente mais merecedores de consideração que os cães, e sem dúvida alguma do que os gatos. E, se há quem questione a criação de porcos para comer, menos gente acharia um absurdo matar javalis e porcos escapados que estão destruindo passarinhos e micos-leões-dourados.
Não que eu esteja simplesmente fazendo pouco desses laços afetivos. Primeiro porque quem faz pouco de laços afetivos é autista, ou escroto, ou tecnocrata no pior sentido (que não deixa de ser uma forma institucionalizada de autista escroto); segundo porque seria imbecilidade. Fora de ditaduras, ou de semiditaduras à Cingapura, a parte relações públicas de qualquer esforço público deve ser considerada, e qualquer governante que falasse "vamos exterminar os gatos sem dono" seria crucificado em praça pública antes mesmo de ser assinado o termo de seu impeachment. Com a polícia ajudando a tacar ovo e embebendo esponja em vinagre pra matar sua sede.
Uma política de mitigação de danos já experimentada, para além de pedir que as pessoas tranquem seus gatos em casa e da castração dos animais de rua, tem sido enfiar coleiras com guizos (não os bonitinhos de antigamente, mas uns integrados, difíceis de tirar e que não atrapalham os gatos de outra forma) nos bichanos para que eles pelo menos façam barulho ao andar. Não ajuda no caso de um ninho, nem numa área barulhenta, mas já é um passo. Mas eu prefiro adicionar a essa uma solução mais radical, mas interessante até porque não apenas não vai contra a afeição das pessoas pelos gatos como, pelo contrário, se trata de defendê-los: é a proibição pura e simples da criação comercial de gatos (e cães também, por que não?). Pet shop serve pra vender artigos para bichos, não os próprios bichos. Com isso, o número de animais, principalmente de animais abandonados e mal criados, cairia drasticamente.
Sim, eventualmente todas as raças caninas e felinas desapareceriam qua raças. Existiriam gatos que se pareceriam com os siameses ou persas descritos em textos do começo do século XXI, mas seriam obra do acaso do destino. Não é um custo tão alto assim a se pagar em troca de impedir que literalmente milhares de espécies animais desapareçam, ou pelo menos adiar um pouco esse desaparecimento.
Auferre, trucidare, rapere, falsis nominibus imperium; atque, ubi solitudinem faciunt, pacem appellant.
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31.5.11
30.5.11
Depois do jogo
Uma das perguntas que se faz quanto à construção de estádios para a copa do mundo de futebol (me recuso a falar "copa do mundo da FIFA(R)") é o destino do Pacaembu, estádio municipal de São Paulo. Afinal, pelosvisto todos os times de São Paulo pretendem ter estádios adequados a seus respectivos públicos, ou pelo menos, no caso dos grandes, maiores do que o Pacaembu, de 2014 em diante. O São Paulo já tem o Morumbi, o Palmeiras pretende fazer uma breguice à Dubai, e o Corinthians pretende fazer o único estádio original da copa. Pelos renders fico na dúvida se será feio ou bonito, mas original não dá pra negar que é; como a Globo se recusa a usar os tais nomes corporativos e inventa apelidos para os estádios, sempre terminados em "ão," para o de Itaquera sugiro "Xerocão." Nenhum deles, portanto, teria interesse em jogar no Pacaembu, ao invés de num de seus estádios próprios. Tampouco o estádio serve para shows, pois está inserido num bairro rico, numa cidade em que até uma escola de samba situada num bairro classe média, a Vai Vai, tem que encerrar sua comemoração por vencer o carnaval à meia noite.
Ficaria, assim, como elefante branco o estádio mais bonito do Brasil. Por isso, já vai aqui previamente a minha sugestão: transformar ele, de estádio em parque. Seria um parque relativamente pequeno, verdade, mesmo contando a área da praça Charles Miller em frente, mas por outro lado não é tanto uma vocação nova quanto a expansão de algo já pronto, que é o museu do futebol. Hoje, o museu ocupa mais ou menos um sexto da área interna do estádio, se tanto; na minha visão, ele ocuparia toda ela. Além da expansão do museu do futebol, outras coisas a serem feitas seriam:
1- conversão das arquibancadas em terraços arborizados, com plantas bem sedentas para manter seca a estrutura dentro; poderiam ser inclusive os eucaliptos tão queridos dos governos paulistanos da mesma época em que foi construído o Pacaembu. Seriam uns quatro ou cinco terraços, garantindo uma largura razoável e ligados por áreas em declive.
e
2- demolição do tobogã e reconstrução da concha acústica que fazia parte do estádio original.
Com isso, a cidade ganharia um museu de porte razoável, sobre um assunto que interessa muita gente, e um parque que serviria inclusive para absorver parte da água da chuva na região, sujeita a enchentes, e para alternativa ao Parque do Ipiranga para shows ao ar livre durante o dia, além de a concha acústica permitir a qualquer um que quisesse levar lá meia dúzia de equipamentos com amplificador portátil e bateria, ou instrumentos acústicos, tocar de graça.
Ficaria, assim, como elefante branco o estádio mais bonito do Brasil. Por isso, já vai aqui previamente a minha sugestão: transformar ele, de estádio em parque. Seria um parque relativamente pequeno, verdade, mesmo contando a área da praça Charles Miller em frente, mas por outro lado não é tanto uma vocação nova quanto a expansão de algo já pronto, que é o museu do futebol. Hoje, o museu ocupa mais ou menos um sexto da área interna do estádio, se tanto; na minha visão, ele ocuparia toda ela. Além da expansão do museu do futebol, outras coisas a serem feitas seriam:
1- conversão das arquibancadas em terraços arborizados, com plantas bem sedentas para manter seca a estrutura dentro; poderiam ser inclusive os eucaliptos tão queridos dos governos paulistanos da mesma época em que foi construído o Pacaembu. Seriam uns quatro ou cinco terraços, garantindo uma largura razoável e ligados por áreas em declive.
e
2- demolição do tobogã e reconstrução da concha acústica que fazia parte do estádio original.
Com isso, a cidade ganharia um museu de porte razoável, sobre um assunto que interessa muita gente, e um parque que serviria inclusive para absorver parte da água da chuva na região, sujeita a enchentes, e para alternativa ao Parque do Ipiranga para shows ao ar livre durante o dia, além de a concha acústica permitir a qualquer um que quisesse levar lá meia dúzia de equipamentos com amplificador portátil e bateria, ou instrumentos acústicos, tocar de graça.
27.5.11
Dinheiro não traz a felicidade...
...mas ajuda a sofrer em Paris.
A OCDE tentou fazer um índice composto de "vida melhor" pra servir de ferramenta de planejamento público e advocacia, além do PIB. Só que alguns dos indicadores utilizados por eles são uma buesta (uma organização do tamanho da OCDE não conseguiu nada melhor não?), então este link é com pesos dados pela qualidade do indicador (e não pela importância que eu dou a ele).
A Economist, naturalmente, aproveitou para dizer que dinheiro traz a felicidade, já que tem uma correlação forte com uma tentativa de índice de felicidade. Mas para além de eles terem comparado renda com um índice que inclui renda, sem eliminar o componente deste índice, o que é primário, muito menos falar sobre os outros indicadores, eles esquecem de falar do foco principal dos economistas que questionam o crescimento infinito: a correlação não segue com a mesma força passada a linha lá pelos 25,000 USDPPPp.c.a.a. , antes pelo contrário. (Mesmo com a riqueza mineral norueguesa e com a Economist distorcendo o resultado.)
Enfim, não chega a ser como quando a Economistprovou que a curva de Laffer é verdade.
A OCDE tentou fazer um índice composto de "vida melhor" pra servir de ferramenta de planejamento público e advocacia, além do PIB. Só que alguns dos indicadores utilizados por eles são uma buesta (uma organização do tamanho da OCDE não conseguiu nada melhor não?), então este link é com pesos dados pela qualidade do indicador (e não pela importância que eu dou a ele).
A Economist, naturalmente, aproveitou para dizer que dinheiro traz a felicidade, já que tem uma correlação forte com uma tentativa de índice de felicidade. Mas para além de eles terem comparado renda com um índice que inclui renda, sem eliminar o componente deste índice, o que é primário, muito menos falar sobre os outros indicadores, eles esquecem de falar do foco principal dos economistas que questionam o crescimento infinito: a correlação não segue com a mesma força passada a linha lá pelos 25,000 USDPPPp.c.a.a. , antes pelo contrário. (Mesmo com a riqueza mineral norueguesa e com a Economist distorcendo o resultado.)
Enfim, não chega a ser como quando a Economistprovou que a curva de Laffer é verdade.
26.5.11
Parece piada, e é
O PC do B explica, em seu jornal Vermelho, que o Código Florestal novo é parte de uma declaração de guerra à oligarquia rural. Ao tentar explicar por que a oligarquia rural em peso votou a favor dessa "declaração de guerra" a si mesma, produziu um parágrafo do qual Ionesco morreria de inveja.
O engajamento a favor do novo Código Florestal de entidades corporativas dos latifundiários, ideologicamente de direita, com forte influência política e posições destacadas nos grandes partidos das classes dominantes, nada tem a ver com aliança de interesses, opiniões, orientações e estratégias com as forças políticas progressistas que apoiaram o novo Código. Tais entidades, assim como políticos herdeiros da famigerada UDR, continuam sendo figadais inimigos dos camponeses, dos trabalhadores agrícolas em geral e do povo brasileiro.
PS depois da votação do código do desmatamento, qualquer um que se declare preocupado com o meio ambiente e vote no PC do B, no PSDB, no DEM, ou no PMDB estará sendo ou hipócrita ou lesado. Exatamente três tucanos e um PMDBista votaram contra o código, e nenhum demo ou comunista.
O engajamento a favor do novo Código Florestal de entidades corporativas dos latifundiários, ideologicamente de direita, com forte influência política e posições destacadas nos grandes partidos das classes dominantes, nada tem a ver com aliança de interesses, opiniões, orientações e estratégias com as forças políticas progressistas que apoiaram o novo Código. Tais entidades, assim como políticos herdeiros da famigerada UDR, continuam sendo figadais inimigos dos camponeses, dos trabalhadores agrícolas em geral e do povo brasileiro.
PS depois da votação do código do desmatamento, qualquer um que se declare preocupado com o meio ambiente e vote no PC do B, no PSDB, no DEM, ou no PMDB estará sendo ou hipócrita ou lesado. Exatamente três tucanos e um PMDBista votaram contra o código, e nenhum demo ou comunista.
Palavrões V - Bowdlerização
Bowdlerização é o nome semi-erudito para o que também é chamado de disneyficação - o nome erudito é ad usum Delphini, ou apenas ad usum. A palavra se baseia no nome do Thomas Bowdler, um médico inglês que publicou o "Shakespeare para as famílias, no qual nada se adicionou ao texto original, mas foram omitidas aquelas Palavras e Expressões que não podem ser lidas em voz alta perante uma Família," uma edição de Shakespeare sem palavrões, prostitutas, e suicídios, entre outros pecados. Publicou, também, uma Bíblia na mesma linha. O nome pegou para toda e qualquer ocasião em que se pegue um texto e, geralmente mas não necessariamente em nome das crianças, se dê uma amaciada nele para distribuição geral.
É até um exemplo de injustiça: com o Dr. Bowdler, porque houve muita coisa muito mais barra pesada em termos de expurgação do texto Shakesperiano ou bíblico, desde o começo da popularização do livro entre a classe média urbana do século XVIII até os dias de hoje do que o texto do "Family Shakespeare" de 1818, e com a era vitoriana, associada com esse tipo de palhaçada - metade das referências que vejo por aí sobre bowdlerização fala que ela foi uma atitude vitoriana - porque em 1818 o rei era o mesmo Jorge III que perdeu as colônias americanas ao sul do São Lourenço. Vitória, se é que já era nascida, era a terceira da fila.
Também é um problema real a se enfrentar com literatura infantil de eras passadas. Afinal de contas... talvez literatura infantil influencie as atitudes e noções das crianças, talvez não. Eu mesmo lia Kipling direto e (que eu saiba) não sou mais racista do que a média. Mas afinal de contas a noção de que essa influência existe é parte da própria preocupação dos autores da literatura infantil; e nem todo mundo que vai ler, digamos, Huckleberry Finn ou A Fantástica Fábrica de Chocolate tem acesso a outras informações que lhes permitam olhar mais criticamente para essas obras. A Fantástica Fábrica de Chocolate, com seus umpa-lumpas escravos raptados das florestas africanas, aliás, é um exemplo de como isso não se aplica apenas a obras "vitorianas" (não, Kipling também não é exatamente vitoriano), já que foi escrito no ano em que eu nasci, 1977. (Sim, eu sou um pouco mais velho que Ramsés e Tutancamon).
E aí, como se faz? Permite-se apenas aos adultos olhar para o que foi feito para crianças antigamente? Muita gente não gosta lá muito da idéia de que as crianças de hoje não poderiam ter o privilégio, porque é sim um privilégio, de ler Twain, Kipling, ou mesmo Monteiro Lobato. Por outro lado, quem fica particularmente indignado com qualquer bowdlerização ou esqueceu do conteúdo ou não se importa em ver crianças lendo que negros são inferiores. Nem precisamos ficar no racismo, porque há um sem-número de noções que mudaram - se bem que coisas como papel das mulheres, religião, e classe socioeconômica continuam sendo algo controversas até em livros e outras obras para crianças feitas hoje em dia. As princesas da Disney que o digam.
Nem é apenas a educação infantil o problema. Quando Tintin explica aos congoleses sobre "vosso país, a Bélgica," ele passa a ser lido como um branco ridículo colonialista, e não como uma simples estória de aventuras. E aí, para manter o espírito com que se lia, deveria ser alterada a estória? Parece ter sido a decisão da Casterman, já que eu quando li Tintim em criança, não vi a famigerada frase.
Nenhuma das três opções (bowdlerização, reprodução integral, não-reimpressão) parece exatamente muito boa, não é?
É até um exemplo de injustiça: com o Dr. Bowdler, porque houve muita coisa muito mais barra pesada em termos de expurgação do texto Shakesperiano ou bíblico, desde o começo da popularização do livro entre a classe média urbana do século XVIII até os dias de hoje do que o texto do "Family Shakespeare" de 1818, e com a era vitoriana, associada com esse tipo de palhaçada - metade das referências que vejo por aí sobre bowdlerização fala que ela foi uma atitude vitoriana - porque em 1818 o rei era o mesmo Jorge III que perdeu as colônias americanas ao sul do São Lourenço. Vitória, se é que já era nascida, era a terceira da fila.
Também é um problema real a se enfrentar com literatura infantil de eras passadas. Afinal de contas... talvez literatura infantil influencie as atitudes e noções das crianças, talvez não. Eu mesmo lia Kipling direto e (que eu saiba) não sou mais racista do que a média. Mas afinal de contas a noção de que essa influência existe é parte da própria preocupação dos autores da literatura infantil; e nem todo mundo que vai ler, digamos, Huckleberry Finn ou A Fantástica Fábrica de Chocolate tem acesso a outras informações que lhes permitam olhar mais criticamente para essas obras. A Fantástica Fábrica de Chocolate, com seus umpa-lumpas escravos raptados das florestas africanas, aliás, é um exemplo de como isso não se aplica apenas a obras "vitorianas" (não, Kipling também não é exatamente vitoriano), já que foi escrito no ano em que eu nasci, 1977. (Sim, eu sou um pouco mais velho que Ramsés e Tutancamon).
E aí, como se faz? Permite-se apenas aos adultos olhar para o que foi feito para crianças antigamente? Muita gente não gosta lá muito da idéia de que as crianças de hoje não poderiam ter o privilégio, porque é sim um privilégio, de ler Twain, Kipling, ou mesmo Monteiro Lobato. Por outro lado, quem fica particularmente indignado com qualquer bowdlerização ou esqueceu do conteúdo ou não se importa em ver crianças lendo que negros são inferiores. Nem precisamos ficar no racismo, porque há um sem-número de noções que mudaram - se bem que coisas como papel das mulheres, religião, e classe socioeconômica continuam sendo algo controversas até em livros e outras obras para crianças feitas hoje em dia. As princesas da Disney que o digam.
Nem é apenas a educação infantil o problema. Quando Tintin explica aos congoleses sobre "vosso país, a Bélgica," ele passa a ser lido como um branco ridículo colonialista, e não como uma simples estória de aventuras. E aí, para manter o espírito com que se lia, deveria ser alterada a estória? Parece ter sido a decisão da Casterman, já que eu quando li Tintim em criança, não vi a famigerada frase.
Nenhuma das três opções (bowdlerização, reprodução integral, não-reimpressão) parece exatamente muito boa, não é?
25.5.11
Batata batatófona
A expressão brasileira para língua presa e dialetos que soam como se fossem resultado de língua presa é "falar como se tem um ovo na boca." Em outras terras, substituem o ovo por uma batata. Curiosamente apropriado, já que o ministro Palocci, que tem língua presa, virou mais uma vez uma grande batata quente. A pergunta que fica é: por que diabos Dilma, que é acusada de competente por amigos e adversários, escolheu uma batata quente dessas para ministro-chefe da casa civil? Não é só o cargo mais importante no governo depois do presidente: é também um cargo do qual Lula teve que demitir uma ocupante, amiga de Dilma, por deslizes éticos.
Será que Dilma acreditou nas análises pós-eleição que lhe davam uma maioria sólida no Congresso, o que permitiria encampar um Palocci impopular? Se sim, é muito mais ingênua do que eu imaginava. Como o demonstrou a votação do código florestal, o PMDB é um aliado pouco confiável, e o próprio PT não é tão unido assim; do restante dos aliados de direita e do PC do B nem se fala. A imensa maioria da base aliada votou contra um governo que mal passou dos cem dias no Planalto.
182 votos. Esse é o total que o governo teve a seu lado, não contra o texto-base relatado por Aldo Rebelo, mas contra a emenda estúpida que anistia os desmatadores. Retire-se os 12 deputados do PV e mais meia dúzia de oposicionistas que também votaram "não," e temos o real tamanho da gigantesca base do governo: uns 160, 170 deputados. O PMDB, desde Lula, é menos cooptado para o governo do que "neutralizado." O acordo é para que ele não seja de oposição, não para que seja um aliado; o mesmo se dá quanto aos demais partidos de direita que teoricamente formam a base do governo. Não dá pra achar que esse povo defenderia a batata quente Palocífera, ao invés de usá-la como chantagem (como o fez o Garotinho) sem ser muito ingênuo.
Também não dá, sem muita ingenuidade de quem lê Míriam Leitão, para acreditar na necessidade de Palocci como "garantidor" do governo junto à banca internacional. O Brasil hoje não sofre de problemas de fuga de investimento e dólares, como quando Henrique Meirelles foi utilizado nessa função, antes pelo contrário. Uma fugazinha de dólares até ia bem.
Fica a pergunta no ar então: por que logo o Palocci? De que a Dilma é menos competente que o Lula eu nunca tive dúvida (ao contrário da classe média e imprensa que nunca engoliram o torneiro mecânico e retirante), mas nunca pensei que ela chegasse a ser incompetente mesmo.
Será que Dilma acreditou nas análises pós-eleição que lhe davam uma maioria sólida no Congresso, o que permitiria encampar um Palocci impopular? Se sim, é muito mais ingênua do que eu imaginava. Como o demonstrou a votação do código florestal, o PMDB é um aliado pouco confiável, e o próprio PT não é tão unido assim; do restante dos aliados de direita e do PC do B nem se fala. A imensa maioria da base aliada votou contra um governo que mal passou dos cem dias no Planalto.
182 votos. Esse é o total que o governo teve a seu lado, não contra o texto-base relatado por Aldo Rebelo, mas contra a emenda estúpida que anistia os desmatadores. Retire-se os 12 deputados do PV e mais meia dúzia de oposicionistas que também votaram "não," e temos o real tamanho da gigantesca base do governo: uns 160, 170 deputados. O PMDB, desde Lula, é menos cooptado para o governo do que "neutralizado." O acordo é para que ele não seja de oposição, não para que seja um aliado; o mesmo se dá quanto aos demais partidos de direita que teoricamente formam a base do governo. Não dá pra achar que esse povo defenderia a batata quente Palocífera, ao invés de usá-la como chantagem (como o fez o Garotinho) sem ser muito ingênuo.
Também não dá, sem muita ingenuidade de quem lê Míriam Leitão, para acreditar na necessidade de Palocci como "garantidor" do governo junto à banca internacional. O Brasil hoje não sofre de problemas de fuga de investimento e dólares, como quando Henrique Meirelles foi utilizado nessa função, antes pelo contrário. Uma fugazinha de dólares até ia bem.
Fica a pergunta no ar então: por que logo o Palocci? De que a Dilma é menos competente que o Lula eu nunca tive dúvida (ao contrário da classe média e imprensa que nunca engoliram o torneiro mecânico e retirante), mas nunca pensei que ela chegasse a ser incompetente mesmo.
Amazon na Amazônia
A Amazon, maior livraria virtual do mundo, pretende adicionar .br à sua lista de sufixos, que hoje conta, além do .com original americano, com .ca, .cn, .uk, .fr, .de, .it e .jp (Canadá, China, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, e Japão). A notícia não é apenas de que o Brasil terá uma nova loja de comércio virtual para se juntar às demais; a Amazon é e sempre foi extremamente agressiva nos descontos, além de ter um site que está (até pela abertura à participação dos usuários) léguas à frente de qualquer outro, que dirá dos brasileiros. E, não sendo tão FDP nas relações com pequenas empresas quanto a média das companhias americanas (que dirá as brasileiras) pela sua rede de pequenos vendedores associados. Comparar o Submarino (inspirado na Amazon) com a Amazon é covardia sem tamanho. E isso é importante porque até hoje, no Brasil, as livrarias virtuais mais bem sucedidas, apesar da Submarino ter se juntado a elas, têm sido as próprias grandes redes de livrarias físicas.
Nos EUA, a Amazon tem sido um problemão para grandes redes desse tipo, que têm assistido ano a ano suas filiais se tornarem cada vez menos lucrativas, ao ponto de terem que fechar várias delas, algumas abertas há não muito tempo, no boom dos anos 90. E aí é que está a minha Schadenfreude, que agora se aplicará à Cultura, Saraiva, FNAC e congêneres: a maioria dessas grandes filiais foram implantadas às custas de pequenas e médias livrarias independentes, "de bairro," como se diz aqui em São Paulo, ou "mom and pop" como se diz nos EUA. Aliás, engraçado dizer "aqui em São Paulo," porque justamente aqui em São Paulo, em comparação com o Rio, é que isso mais aconteceu; o número de livrarias independentes declinou muito ao longo deste começo do século XXI, justamente em função da incapacidade da maioria de competir com os esforços em desconto e propaganda das grandes. (A metragem de livraria nas duas metrópoles é mais ou menos equivalente, e o número delas no Rio é algo como o dobro ou triplo de São Paulo.)
Aliás, a Schadenfreude é temperada por saber que a Amazon não afeta negativamente apenas as grandes redes; as independentes podem até resistir melhor (porque as que sobrevivem já tiveram que resistir a problemas similares que já lhes foram impostos pelas redes), mas também vão cortar um dobrado. E no Centro do Rio, em particular, esse dobrado será duplo, porque além da criação da Amazon vão ter que encarar a abertura simultânea de uma Livraria Cultura (no prédio do antigo Cine Vitória, na Senador Dantas) e de uma FNAC (no edifício Sul América).
E além dessas duas emoções negativas, a alegria com o predicado da Cultura, da Saraiva, e da FNAC e a preocupação com o destino de Travessa, Da Vinci, Livraria da Vila, Argumento, Timbre & Co., uma emoção inteiramente positiva: cada vez é maior o acesso de quem vive no interior do Brasil à leitura. Apesar do velho dito de que em Buenos Aires haveria mais livrarias do que no Brasil provavelmente nunca ter sido verdade, não sei muito bem se continuaria nunca tendo sido verdade com a adição da cláusula "fora das grandes metrópoles." A imensa maioria das cidades e vilas brasileiras não tem livraria nem biblioteca, ou tem apenas uma filial desenxabida da Nobel e um galpão poeirento com menos livros do que lá em casa e uma funcionária mal paga pra cuidar de tudo.
Nos EUA, a Amazon tem sido um problemão para grandes redes desse tipo, que têm assistido ano a ano suas filiais se tornarem cada vez menos lucrativas, ao ponto de terem que fechar várias delas, algumas abertas há não muito tempo, no boom dos anos 90. E aí é que está a minha Schadenfreude, que agora se aplicará à Cultura, Saraiva, FNAC e congêneres: a maioria dessas grandes filiais foram implantadas às custas de pequenas e médias livrarias independentes, "de bairro," como se diz aqui em São Paulo, ou "mom and pop" como se diz nos EUA. Aliás, engraçado dizer "aqui em São Paulo," porque justamente aqui em São Paulo, em comparação com o Rio, é que isso mais aconteceu; o número de livrarias independentes declinou muito ao longo deste começo do século XXI, justamente em função da incapacidade da maioria de competir com os esforços em desconto e propaganda das grandes. (A metragem de livraria nas duas metrópoles é mais ou menos equivalente, e o número delas no Rio é algo como o dobro ou triplo de São Paulo.)
Aliás, a Schadenfreude é temperada por saber que a Amazon não afeta negativamente apenas as grandes redes; as independentes podem até resistir melhor (porque as que sobrevivem já tiveram que resistir a problemas similares que já lhes foram impostos pelas redes), mas também vão cortar um dobrado. E no Centro do Rio, em particular, esse dobrado será duplo, porque além da criação da Amazon vão ter que encarar a abertura simultânea de uma Livraria Cultura (no prédio do antigo Cine Vitória, na Senador Dantas) e de uma FNAC (no edifício Sul América).
E além dessas duas emoções negativas, a alegria com o predicado da Cultura, da Saraiva, e da FNAC e a preocupação com o destino de Travessa, Da Vinci, Livraria da Vila, Argumento, Timbre & Co., uma emoção inteiramente positiva: cada vez é maior o acesso de quem vive no interior do Brasil à leitura. Apesar do velho dito de que em Buenos Aires haveria mais livrarias do que no Brasil provavelmente nunca ter sido verdade, não sei muito bem se continuaria nunca tendo sido verdade com a adição da cláusula "fora das grandes metrópoles." A imensa maioria das cidades e vilas brasileiras não tem livraria nem biblioteca, ou tem apenas uma filial desenxabida da Nobel e um galpão poeirento com menos livros do que lá em casa e uma funcionária mal paga pra cuidar de tudo.
24.5.11
For them it was tuesday
Street Fighter, surpreendentemente, não é tão ruim quanto a média dos filmes baseados em videogames. Aparentemente os criadores e elenco, principalmente Raul Julia, se divertiram pra caramba e não levaram aquela coisa ridícula a sério, e isso transparece na tela. Numa cena memorável para estabalecer que o vilão é mau como o Pica-Pau, uma das mocinhas trava com ele o seguinte diálogo:
Chun-Li: It was twenty years ago. You hadn't promoted yourself to general yet. You were just a petty drug lord. You and your gang of murderers gathered your small ounce of courage to raid across the border for food, weapons, slave labor...my father was the village magistrate. A simple man with a simple code: justice. He gathered the few people that he could to stand against you. You and your bullies were driven back by farmers with pitchforks! My father saved his village at the cost of his own life. You had him shot as you ran away! A hero... at a thousand paces.
M. Bison: I'm sorry... I don't remember any of it.
Chun-Li: You don't remember?!
M. Bison: For you, the day Bison graced your village was the most important day of your life. But for me... it was Tuesday.
Pois bem, levando isso à vida real: uma das noções recorrentes quando se explica a dinâmica, muitas vezes assassina, das relações de poder mundial é que a pobreza e miséria em países periféricos sustentam a riqueza dos países centrais. Como diria o Malcolm X, "no final das contas, o edifício todo se sustenta nas costas daquele mineiro na África." A noção é, evidentemente, contestada por aqueles que tentam justificar o sistema mundial de dominação e produção, mas o curioso é que essa necessidade não é necesária como explicação em nenhuma narrativa "afro-asiática." E, bem, não é tão verdade assim, pelo menos não no presente e em geral.
Ela é obviamente verdadeira e real para as grandes potências no auge do período imperialista, mas depois da era de ouro do pós-guerra se tornou bem menos; assim, pode-se dizer, eg, que mesmo países sem dominação colonial própria, como os escandinavos, puderam se dar ao luxo de se especializar em trabalhos no topo da cadeia profissional porque há os países que ficaram no fundo. Só que a exploração mineral, o literal mineiro na África do Malcom X, é muito capital-intensiva e pouco demanda de trabalhadores; mineiros poderiam ser tão bem pagos na Zâmbia quanto no Canadá, que isso não inviabilizaria o negócio de níquel e cobre. Se comunidades nigerianas e cabindesas cobrassem royalties sobre o petróleo como o fazem as norueguesas e escocesas, do mesmo modo isso não seria nada proibitivo. Poderia afetar o lucro, mas não muito. E o comércio internacional não é essencial para a maioria das economias do planeta, e era ainda menos durante os anos 50-80.
Em outras palavras, e com a exceção de estratégias deliberadas de ferrar com os pobres como a Total Strategy da África do Sul nas últimas décadas do Apartheid, as grandes empresas, e as grandes potências, não ferram com os mais fracos, e principalmente com a África, porque precisam fazer isso, mas porque é conveniente. Faz a margem de lucro passar de 17,6 para 21,2 pontos percetuais. Por horrível que seja pensar isso, pessoas morrem de fome, de bala, de doença, não para que executivos tenham uma vida confortável em Nova Iorque, mas para que essa vida confortável valha marginalmente mais dinheiro. A troco de quase nada.
A percepção, é claro, se por um lado faz dos exploradores deste mundo ainda mais horríveis, por outro tira a imagem de força do explorado. A visão de Malcolm X faz do mineiro africano quase o Orc de Blake; a de que vidas são destruídas sem necessidade nenhuma está mais para fazer dos executivos um monte de Pères Ubu.
Chun-Li: It was twenty years ago. You hadn't promoted yourself to general yet. You were just a petty drug lord. You and your gang of murderers gathered your small ounce of courage to raid across the border for food, weapons, slave labor...my father was the village magistrate. A simple man with a simple code: justice. He gathered the few people that he could to stand against you. You and your bullies were driven back by farmers with pitchforks! My father saved his village at the cost of his own life. You had him shot as you ran away! A hero... at a thousand paces.
M. Bison: I'm sorry... I don't remember any of it.
Chun-Li: You don't remember?!
M. Bison: For you, the day Bison graced your village was the most important day of your life. But for me... it was Tuesday.
Pois bem, levando isso à vida real: uma das noções recorrentes quando se explica a dinâmica, muitas vezes assassina, das relações de poder mundial é que a pobreza e miséria em países periféricos sustentam a riqueza dos países centrais. Como diria o Malcolm X, "no final das contas, o edifício todo se sustenta nas costas daquele mineiro na África." A noção é, evidentemente, contestada por aqueles que tentam justificar o sistema mundial de dominação e produção, mas o curioso é que essa necessidade não é necesária como explicação em nenhuma narrativa "afro-asiática." E, bem, não é tão verdade assim, pelo menos não no presente e em geral.
Ela é obviamente verdadeira e real para as grandes potências no auge do período imperialista, mas depois da era de ouro do pós-guerra se tornou bem menos; assim, pode-se dizer, eg, que mesmo países sem dominação colonial própria, como os escandinavos, puderam se dar ao luxo de se especializar em trabalhos no topo da cadeia profissional porque há os países que ficaram no fundo. Só que a exploração mineral, o literal mineiro na África do Malcom X, é muito capital-intensiva e pouco demanda de trabalhadores; mineiros poderiam ser tão bem pagos na Zâmbia quanto no Canadá, que isso não inviabilizaria o negócio de níquel e cobre. Se comunidades nigerianas e cabindesas cobrassem royalties sobre o petróleo como o fazem as norueguesas e escocesas, do mesmo modo isso não seria nada proibitivo. Poderia afetar o lucro, mas não muito. E o comércio internacional não é essencial para a maioria das economias do planeta, e era ainda menos durante os anos 50-80.
Em outras palavras, e com a exceção de estratégias deliberadas de ferrar com os pobres como a Total Strategy da África do Sul nas últimas décadas do Apartheid, as grandes empresas, e as grandes potências, não ferram com os mais fracos, e principalmente com a África, porque precisam fazer isso, mas porque é conveniente. Faz a margem de lucro passar de 17,6 para 21,2 pontos percetuais. Por horrível que seja pensar isso, pessoas morrem de fome, de bala, de doença, não para que executivos tenham uma vida confortável em Nova Iorque, mas para que essa vida confortável valha marginalmente mais dinheiro. A troco de quase nada.
A percepção, é claro, se por um lado faz dos exploradores deste mundo ainda mais horríveis, por outro tira a imagem de força do explorado. A visão de Malcolm X faz do mineiro africano quase o Orc de Blake; a de que vidas são destruídas sem necessidade nenhuma está mais para fazer dos executivos um monte de Pères Ubu.
23.5.11
De velhice antes dos trinta
O editorial da Folha de São Paulo a favor da NORMA CULTA (assim, com maiúsculas) é um primor de senso comum com tentativas canhestras de arrotar conhecimento,* e um preconceito de classe esperado, mas meio ridículo na sua obviedade. Também tem um ar um pouco retrô - remete aos editoriais dos jornalões americanos denunciando o uso de "ebonics" em escolas situadas em guetos negros, na segunda metade dos anos noventa.
Mas o que choca mesmo são as afirmativas que ele comete, para se esquivar da acusação de preconceito de classe (já que não pegaria bem para um jornal dizer "alguns dos meus melhores amigos falam errado," como aqueles melhores amigos negros dos racistas), a de que a norma culta é "um lastro, que também evolui no tempo, cujo sentido é tornar a língua estável e previsível; sem tal garantia, as variações cresceriam de forma desordenada até inviabilizar a própria comunicação." A Folha acaba, pelo visto, de revolucionar a linguística, além de anular a história. Não existe nenhuma associação entre a existência de algum tipo de norma culta e homogeneidade linguística, ou taxa de evolução da heterogeneidade. Línguas e dialetos (a diferença é geralmente mais política que qualquer outra coisa) sem uma "norma culta" não caminham nem mais nem menos rápido para a Torre de Babel do que aqueles que a possuem.
A ameaça é ainda mais engraçada no Brasil, aonde mutatis mutandis a maior parte da população fala praticamente a mesma variedade de português; há mais heterogeneidade no falar entre as regiões do minúsculo Portugal do que entre as do enorme Brasil - não é privilégio nosso, dá-se o mesmo nas Américas hispânica e Anglo-Saxã, comparadas com suas antigas metróples, como qualquer um que já tenha assistido um filme do Ken Loach sabe. E dizer que a norma culta das escolas é o que preserva a unidade da língua mátria, num país em que só muito recentemente uma maioria da população chegou ao ensino básico é outra grande piada; se nos preocupamos com a Nação em línguas, mais vale reclamar com a Globo que com o MEC.
O jornal afirma ainda que o aprendizado da norma culta "faz parte da disciplina intelectual que deveria ser estimulada em qualquer estabelecimento de ensino. Aprender custa tempo e esforço." Ora, se é assim, se se trata apenas de levantar pesos com o cérebro, por que a norma culta do português e não, sei lá. Geologia aplicada. Astrologia indiana. Alquimia taoísta.
Mas a chave para o entendimento do edital,talvez a contragosto do próprio, está no penúltimo parágrafo, ipsis literis De algumas décadas para cá, a pretexto de promover uma educação “popular” ou “democrática”, muitos educadores dedicam-se a solapar toda forma de saber implicada no repertório de conteúdos que a humanidade vem acumulando ao longo das gerações. Ou seja, é reacionarismo puro e simples, contra o que é popular ou democrático. O que fica claro e explícito porque, ao contrário do alegado pela Folha, a distinção social é, sim, a função primária da "norma culta," que nasce a partir dos dialetos específicos falados pela elite letrada, à medida que cada "língua nacional" é criada junto com a noção de estado-nação, com direito à perseguição legal e física de quem se atreve a falar as línguas gerais, patois, e vernáculos. Tanto que a norma culta (de sotaque assim como de gramática) inglesa-britânica, antes de se chamar como hoje "received pronunciation," "sotaque recebido," chamava-se, e mais corretamente já que não envolve só sotaque, "the queen's English," o inglês da rainha (ou do rei, dependendo da genitália assente no trono).
*Falar en passant, como se fosse coisa que o autor acha tão de conhecimento comum que nem precisa ser explicada, das "ferozes controvérsias gramaticais da República Velha." E aí apor "1889-1930."
PS o mais divertido da grita, como com a prova de inglês do Itamaraty, é a quantidade de gente urrando pela NORMA CULTA e que comete erros primários.
Mas o que choca mesmo são as afirmativas que ele comete, para se esquivar da acusação de preconceito de classe (já que não pegaria bem para um jornal dizer "alguns dos meus melhores amigos falam errado," como aqueles melhores amigos negros dos racistas), a de que a norma culta é "um lastro, que também evolui no tempo, cujo sentido é tornar a língua estável e previsível; sem tal garantia, as variações cresceriam de forma desordenada até inviabilizar a própria comunicação." A Folha acaba, pelo visto, de revolucionar a linguística, além de anular a história. Não existe nenhuma associação entre a existência de algum tipo de norma culta e homogeneidade linguística, ou taxa de evolução da heterogeneidade. Línguas e dialetos (a diferença é geralmente mais política que qualquer outra coisa) sem uma "norma culta" não caminham nem mais nem menos rápido para a Torre de Babel do que aqueles que a possuem.
A ameaça é ainda mais engraçada no Brasil, aonde mutatis mutandis a maior parte da população fala praticamente a mesma variedade de português; há mais heterogeneidade no falar entre as regiões do minúsculo Portugal do que entre as do enorme Brasil - não é privilégio nosso, dá-se o mesmo nas Américas hispânica e Anglo-Saxã, comparadas com suas antigas metróples, como qualquer um que já tenha assistido um filme do Ken Loach sabe. E dizer que a norma culta das escolas é o que preserva a unidade da língua mátria, num país em que só muito recentemente uma maioria da população chegou ao ensino básico é outra grande piada; se nos preocupamos com a Nação em línguas, mais vale reclamar com a Globo que com o MEC.
O jornal afirma ainda que o aprendizado da norma culta "faz parte da disciplina intelectual que deveria ser estimulada em qualquer estabelecimento de ensino. Aprender custa tempo e esforço." Ora, se é assim, se se trata apenas de levantar pesos com o cérebro, por que a norma culta do português e não, sei lá. Geologia aplicada. Astrologia indiana. Alquimia taoísta.
Mas a chave para o entendimento do edital,talvez a contragosto do próprio, está no penúltimo parágrafo, ipsis literis De algumas décadas para cá, a pretexto de promover uma educação “popular” ou “democrática”, muitos educadores dedicam-se a solapar toda forma de saber implicada no repertório de conteúdos que a humanidade vem acumulando ao longo das gerações. Ou seja, é reacionarismo puro e simples, contra o que é popular ou democrático. O que fica claro e explícito porque, ao contrário do alegado pela Folha, a distinção social é, sim, a função primária da "norma culta," que nasce a partir dos dialetos específicos falados pela elite letrada, à medida que cada "língua nacional" é criada junto com a noção de estado-nação, com direito à perseguição legal e física de quem se atreve a falar as línguas gerais, patois, e vernáculos. Tanto que a norma culta (de sotaque assim como de gramática) inglesa-britânica, antes de se chamar como hoje "received pronunciation," "sotaque recebido," chamava-se, e mais corretamente já que não envolve só sotaque, "the queen's English," o inglês da rainha (ou do rei, dependendo da genitália assente no trono).
*Falar en passant, como se fosse coisa que o autor acha tão de conhecimento comum que nem precisa ser explicada, das "ferozes controvérsias gramaticais da República Velha." E aí apor "1889-1930."
PS o mais divertido da grita, como com a prova de inglês do Itamaraty, é a quantidade de gente urrando pela NORMA CULTA e que comete erros primários.
20.5.11
Separatismo
Separem o São Paulo do Brasil!
Não o estado. :p A porcaria de porta-aviões velho, comprado pelo FHC à França na mesma época em que seu irmão gêmeo foi mandado para a china virar sucata, por um bilhão de dólares - quando o dólar ainda valia alguma coisa. (Vide a série "lugares estranhos do mundo.")
Pela undécima vez, quando deram de ligar o bicho pra ver no que dava, saiu uma nuvem de fumaça negra. Não custa lembrar que o Clemenceau, irmão gêmeo do São Paulo (né Foch) não pôde adentrar águas indianas para ser desmontado lá, porque as autoridades do país não queriam pagar pra ver o resultado de se desmontar um navio atulhado de amianto cancerígeno; acabou sendo um dos pioneiros na migração da indústria de desmonte de navios da Índia para o Sri Lanka.
Quanto amianto havia na fumaça negra que envolveu a Ilha das Cobras?
Não o estado. :p A porcaria de porta-aviões velho, comprado pelo FHC à França na mesma época em que seu irmão gêmeo foi mandado para a china virar sucata, por um bilhão de dólares - quando o dólar ainda valia alguma coisa. (Vide a série "lugares estranhos do mundo.")
Pela undécima vez, quando deram de ligar o bicho pra ver no que dava, saiu uma nuvem de fumaça negra. Não custa lembrar que o Clemenceau, irmão gêmeo do São Paulo (né Foch) não pôde adentrar águas indianas para ser desmontado lá, porque as autoridades do país não queriam pagar pra ver o resultado de se desmontar um navio atulhado de amianto cancerígeno; acabou sendo um dos pioneiros na migração da indústria de desmonte de navios da Índia para o Sri Lanka.
Quanto amianto havia na fumaça negra que envolveu a Ilha das Cobras?
De fome um pouco por dia
O vídeo da professora potiguar Amanda Gurgel ganhou o Brasil, ou pelo menos as redes virtuais da classe média e os editoriais dos órgãos de imprensa. Sobre por que e como isso se deu, não tenho nada de muito novo para falar; é a receita tradicional da indignação fácil da classe média, que reclama por prioridade número 1 para absolutamente tudo, desvirtuando a palavra e incluindo pedidos contraditórios (como maiores salários para professores e corte de impostos), e resolve essas contradições pela fórmula mágica da corrupção e da "moralização."
Mas uma coisa em particular me chamou a atenção. Num país federal, e duplamente federal graças a essa estranha jabuticaba que é o município ser ele também entidade da federação ao invés de apenas parte de seu estado, a situação de uma professora do sistema estadual de ensino do Rio Grande do Norte não é um problema do estado, mas nacional. O arqui-classe-média-indignada-vou-votar-no-DEM, Marcelo Tas, por exemplo, fala diretamente "dos governantes FHC, Lula, e Dilma." Ora, como assim FHC, Lula, e Dilma? O país não é federal? Avisem todas as campanhas de governadores à reeleição que todas aquelas obras não foram deles, mas de "FHC, Lula, e Dilma."
E aí é que está: cada vez mais, no Brasil, a solução para os problemas enfrentados pelos governos locais é vista na participação do governo federal. O resultado é um sistema híbrido, nem bem centralizado nem bem federativo, em que os problemas de ambas as soluções se acumulam. Temos uma burocracia hierarquizada e distante mas que ao mesmo tempo não é enxuta nem qualificada. Temos um sistema multicéfalo e disparidades regionais, sem termos uma variedade de soluções nem autonomia local. E esse retrato do SUS vai se estendendo a todas as outras áreas de atividade do governo. (Menos, até agora, a segurança. Parece que governadores gostam muito de sua prerrogativa de mandar bala em puta, preto, e pobre.)
Por outro lado, se na execução de políticas os governos locais se atrelam a sistemas únicos, na taxação e na confecção de leis vivem uma realidade quase hobbesiana, no sentido oposto. E com isso não apenas não temos as facilidades de comércio de um país unitário, como ainda somos muito piores para fazer comércio entre estados do que a maioria das federações. (E o terceiro nível legiferante não ajuda em nada.)
Não sei se é sequer possível uma "refundação" do Brasil, não mais como república federativa mas como estado unitário, como a França ou a Itália (ou como o próprio Brasil, durante o Império e o Estado Novo). Mas seria o caso de pelo menos se discutir as bases de como a federação funciona.
Mas uma coisa em particular me chamou a atenção. Num país federal, e duplamente federal graças a essa estranha jabuticaba que é o município ser ele também entidade da federação ao invés de apenas parte de seu estado, a situação de uma professora do sistema estadual de ensino do Rio Grande do Norte não é um problema do estado, mas nacional. O arqui-classe-média-indignada-vou-votar-no-DEM, Marcelo Tas, por exemplo, fala diretamente "dos governantes FHC, Lula, e Dilma." Ora, como assim FHC, Lula, e Dilma? O país não é federal? Avisem todas as campanhas de governadores à reeleição que todas aquelas obras não foram deles, mas de "FHC, Lula, e Dilma."
E aí é que está: cada vez mais, no Brasil, a solução para os problemas enfrentados pelos governos locais é vista na participação do governo federal. O resultado é um sistema híbrido, nem bem centralizado nem bem federativo, em que os problemas de ambas as soluções se acumulam. Temos uma burocracia hierarquizada e distante mas que ao mesmo tempo não é enxuta nem qualificada. Temos um sistema multicéfalo e disparidades regionais, sem termos uma variedade de soluções nem autonomia local. E esse retrato do SUS vai se estendendo a todas as outras áreas de atividade do governo. (Menos, até agora, a segurança. Parece que governadores gostam muito de sua prerrogativa de mandar bala em puta, preto, e pobre.)
Por outro lado, se na execução de políticas os governos locais se atrelam a sistemas únicos, na taxação e na confecção de leis vivem uma realidade quase hobbesiana, no sentido oposto. E com isso não apenas não temos as facilidades de comércio de um país unitário, como ainda somos muito piores para fazer comércio entre estados do que a maioria das federações. (E o terceiro nível legiferante não ajuda em nada.)
Não sei se é sequer possível uma "refundação" do Brasil, não mais como república federativa mas como estado unitário, como a França ou a Itália (ou como o próprio Brasil, durante o Império e o Estado Novo). Mas seria o caso de pelo menos se discutir as bases de como a federação funciona.
19.5.11
De emboscada antes dos vinte
No momento em que os ruralistas flexionam seus músculos, impondo uma derrota cada dia mais acachapante ao governo no Congresso e desmatando antes até de ser passada a anistia que se autoconcedem, não custa lembrar de quem, além das árvores, são suas vítimas.
Em primeiro lugar, são seres humanos, principalmente trabalhadores e sem terra. Ainda hoje no Brasil se morre muito de uma morte bem Severina, apesar do foco das preocupações com a violência ter se deslocado para a periferia das grandes cidades. Aliás, que a fronteira agrícola é também uma fronteira da violência pode ser visto nas estatísticas de homicídio nacionais. É só comparar os mapas da produção de presuntos, de carne, e de soja.
Em segundo lugar, são os próprios negócios a longo prazo desse bando de imbecis. Se o campo brasileiro, e principalmente aquele situado na fronteira agrícola no Cerrado e na Amazônia, é singularmente produtivo, não é apenas pela incidência do sol, muito menos por algum efeito místico, mas justamente porque ainda há mato em volta para cumprir um sem-número de funções ambientais que de outro modo teriam que ser pagas pelos próprios fazendeiros. Para se ter uma noção do quanto os fazendeiros recebem de graça das florestas que eles querem destruir, o negócio de polinização assistida nos EUA (que não podem mais contar com a polinização natural) movimenta mais de 16bn por ano. Imaginem o impacto de um custo de 16bn por ano no agronegócio brasileiro. Ou a irrigação distante, quando os rios sem floresta ripária secarem? Ou o aumento de até 60% nos gastos com controle de pragas?
Truculentos e míopes. E ganhando. Na versão eduardiana de Ricardo Terceiro, o partido deste usa de símbolo à fascista uma cabeça de javali; é de se pensar se seria um símbolo apropriado para a bancada ruralista.
PS Me intrigou muito a "denúncia" surgida assim de repente de que Palocci teria enriquecido como consultor após a passagem pela fazenda. Afinal, é uma não-notícia quase em estado bruto; é algo que se sabe que todos os ex-ministros fazem, e é algo que já era sabido de todos os jornalistas. Nem é, apesar de eticamente questionável, ilegal. Até que me dei conta de que Palocci em particular, e o governo em geral, estão neste momento num embate contra a bancada ruralista...
Em primeiro lugar, são seres humanos, principalmente trabalhadores e sem terra. Ainda hoje no Brasil se morre muito de uma morte bem Severina, apesar do foco das preocupações com a violência ter se deslocado para a periferia das grandes cidades. Aliás, que a fronteira agrícola é também uma fronteira da violência pode ser visto nas estatísticas de homicídio nacionais. É só comparar os mapas da produção de presuntos, de carne, e de soja.
Em segundo lugar, são os próprios negócios a longo prazo desse bando de imbecis. Se o campo brasileiro, e principalmente aquele situado na fronteira agrícola no Cerrado e na Amazônia, é singularmente produtivo, não é apenas pela incidência do sol, muito menos por algum efeito místico, mas justamente porque ainda há mato em volta para cumprir um sem-número de funções ambientais que de outro modo teriam que ser pagas pelos próprios fazendeiros. Para se ter uma noção do quanto os fazendeiros recebem de graça das florestas que eles querem destruir, o negócio de polinização assistida nos EUA (que não podem mais contar com a polinização natural) movimenta mais de 16bn por ano. Imaginem o impacto de um custo de 16bn por ano no agronegócio brasileiro. Ou a irrigação distante, quando os rios sem floresta ripária secarem? Ou o aumento de até 60% nos gastos com controle de pragas?
Truculentos e míopes. E ganhando. Na versão eduardiana de Ricardo Terceiro, o partido deste usa de símbolo à fascista uma cabeça de javali; é de se pensar se seria um símbolo apropriado para a bancada ruralista.
PS Me intrigou muito a "denúncia" surgida assim de repente de que Palocci teria enriquecido como consultor após a passagem pela fazenda. Afinal, é uma não-notícia quase em estado bruto; é algo que se sabe que todos os ex-ministros fazem, e é algo que já era sabido de todos os jornalistas. Nem é, apesar de eticamente questionável, ilegal. Até que me dei conta de que Palocci em particular, e o governo em geral, estão neste momento num embate contra a bancada ruralista...
18.5.11
Lugares estranhos de todo o mundo
Uma das coisas que me irritam em muito da ficção científica, principalmente a audiovisual, é o quão pouco alienígenas são as paisagens alienígenas. Guerra nas Estrelas, claro, é praticamente a reductio ad absurdum disso, na qual os planetas bem poderiam ser, cada um deles, uma cidade, e geralmente uma cidadezinha, com seu ecossistema único; é o planeta árido, a lua floresta, o planeta gelado... na ficção científica escrita, a coisa é menos grave, e inclusive, naquela que chamamos de ficção científica "dura," a descrição de ambientes estranhos é frequentemente metade da graça da narrativa.
Que lugares o capitão Kirk ou Luke Skywalker já visitaram, por exemplo, mais estranhos do que a floresta amazônica de várzea? Nela, durante as cheias, a água sobe até quinze metros acima do chão. Assim, temos golfinhos pré-históricos nadando por entre troncos de árvores e sobre tocas de antas e porcos do mato, às vezes comendo um esquilo desgarrado ou outro. As águas por onde nadam são classificadas entre os rios brancos, azuis, negros, e pardos - os últimos são os rios cheios de lodo comuns no mundo inteiro, os dois primeiros se carregam, como na Islândia, de sedimentos coloridos, e os negros são rios cheios de húmus vegetal, com águas cor de coca-cola. Nos cursos principais dos grandes rios, gordos de mais de légua ou, no caso do próprio Amazonas e do Negro, mais de dez léguas, cardumes de golfinhos mais comuns caçam peixes e seguem navios como se do mar se tratasse.
Falei da Islândia? Pois na Islândia, e em outras regiões vulcânicas próximas aos polos, vivem ecossistemas de cabeça pra baixo, em que a energia não vem da luz solar, mas das profundezas da terra, com todos os parâmetros comuns à vida que conhecemos invertidos, e uma fauna e flora que nada devem em variedade às suas congêneres mais comuns. Que nem são tão mais comuns assim - os continentes e as águas rasas do oceano podem cobrir o planeta, mas dois terços dele também são cobertos pelos fundos dos mares, e a maior parte do volume marinho fica sem luz o ano inteiro. Tudo abaixo de 200m, e o mar tem em média 3.000m de profundidade. Eu aproveitaria para falar da neve de corpos que alimenta esses ecossistemas sem luz nem calor, mas a verdade é que não apenas eu mas mesmo os oceanógrafos conhecem ainda muito pouco dessa que é a metade, em volume, da biosfera.
OK, talvez não a metade em volume. Falei isso pensando apenas no ar e no mar, aonde vivem os organismos em que pensamos quando nos vem à mente a palavra "vida." Mas cada vez mais se descobre que existe vida - não alguma coisa exótica baseada em outras cadeias químicas, mas vida mesmo, de carbono, hidrogênio, e oxigênio - em boa parte da crosta terrestre, em condições que imaginávamos literalmente inabitáveis até há pouco tempo atrás. Boa parte das bactérias e dos archaea - um reino inteiro da existência, que só foi ser descoberto nos anos 1970 - são extremófilos, e vivem vários quilômetros crosta abaixo, em meio a rochas que só são encontradas por sondas de petróleo e olhe lá; alguns são capazes de se reproduzir a mais de 100ºC. (Nem todos os extremófilos são micróbios - o krill, o camarãozinho que serve de presa principal das grandes baleias e é das espécies mais significativas na biomassa total do globo, rivalizando com grama e seres humanos, é um deles, vivendo a vida inteira a quase zero grau.)
A Terra é muito mais esquisita do que se pensa. Urge trabalhar para que ela continue assim.
Que lugares o capitão Kirk ou Luke Skywalker já visitaram, por exemplo, mais estranhos do que a floresta amazônica de várzea? Nela, durante as cheias, a água sobe até quinze metros acima do chão. Assim, temos golfinhos pré-históricos nadando por entre troncos de árvores e sobre tocas de antas e porcos do mato, às vezes comendo um esquilo desgarrado ou outro. As águas por onde nadam são classificadas entre os rios brancos, azuis, negros, e pardos - os últimos são os rios cheios de lodo comuns no mundo inteiro, os dois primeiros se carregam, como na Islândia, de sedimentos coloridos, e os negros são rios cheios de húmus vegetal, com águas cor de coca-cola. Nos cursos principais dos grandes rios, gordos de mais de légua ou, no caso do próprio Amazonas e do Negro, mais de dez léguas, cardumes de golfinhos mais comuns caçam peixes e seguem navios como se do mar se tratasse.
Falei da Islândia? Pois na Islândia, e em outras regiões vulcânicas próximas aos polos, vivem ecossistemas de cabeça pra baixo, em que a energia não vem da luz solar, mas das profundezas da terra, com todos os parâmetros comuns à vida que conhecemos invertidos, e uma fauna e flora que nada devem em variedade às suas congêneres mais comuns. Que nem são tão mais comuns assim - os continentes e as águas rasas do oceano podem cobrir o planeta, mas dois terços dele também são cobertos pelos fundos dos mares, e a maior parte do volume marinho fica sem luz o ano inteiro. Tudo abaixo de 200m, e o mar tem em média 3.000m de profundidade. Eu aproveitaria para falar da neve de corpos que alimenta esses ecossistemas sem luz nem calor, mas a verdade é que não apenas eu mas mesmo os oceanógrafos conhecem ainda muito pouco dessa que é a metade, em volume, da biosfera.
OK, talvez não a metade em volume. Falei isso pensando apenas no ar e no mar, aonde vivem os organismos em que pensamos quando nos vem à mente a palavra "vida." Mas cada vez mais se descobre que existe vida - não alguma coisa exótica baseada em outras cadeias químicas, mas vida mesmo, de carbono, hidrogênio, e oxigênio - em boa parte da crosta terrestre, em condições que imaginávamos literalmente inabitáveis até há pouco tempo atrás. Boa parte das bactérias e dos archaea - um reino inteiro da existência, que só foi ser descoberto nos anos 1970 - são extremófilos, e vivem vários quilômetros crosta abaixo, em meio a rochas que só são encontradas por sondas de petróleo e olhe lá; alguns são capazes de se reproduzir a mais de 100ºC. (Nem todos os extremófilos são micróbios - o krill, o camarãozinho que serve de presa principal das grandes baleias e é das espécies mais significativas na biomassa total do globo, rivalizando com grama e seres humanos, é um deles, vivendo a vida inteira a quase zero grau.)
A Terra é muito mais esquisita do que se pensa. Urge trabalhar para que ela continue assim.
17.5.11
À sorrelfa
Aldo Rebelo parece sofrer de jobinite. Jobinite, assim chamada em homenagem ao excelso ministro da defesa Nelson Jobim, é a moléstia de quem, como Jobim fez com a Constituição Federal em 1988, altera o texto de um projeto de lei após este ser acordado, de modo a fazer com que o texto efetivamente votado pelos parlamentares seja diferente daquele que eles pensam estar votando. Que isso seja sequer possível é, reconheço, surreal, uma excrescência do ritualismo por um lado e da tolerância com políticos por outro; para os pares de Jobim e Aldo Rebelo, isso será quando muito um pecadilho, e não algo que lhes roube para todo o sempre de qualquer credibilidade.
O surto de jobinite do deputado comunista(sic) se deu, claro, na relação do novo Código Florestal, na qual um monte de pegadinhas foram inseridas após o acordo realizado entre diversos partidos. O curioso dessas pegadinhas é que elas se estendem até a pontos que, em teoria, não afetariam em nada o agronegócio, apoiador de Aldo. Assim, foi retirada a proteção a manguezais e veredas; veredas tudo bem, mas que fazendeiro pretende plantar soja num manguezal? Essa encampação leva a sujerir que o antiambientalismo, e não apenas o da bancada ruralista, ganhou novas proporções, para além da irritação quando se impede alguém de dilapidar o patrimônio ambiental brasileiro e ganhar dinheiro pra si; passou a ser uma questão ideológica, movida por um animus quase evangélico.
Curiosamente, ao contrário da maioria de tais questões ideologicamente carregadas, o antiambientalismo não ficou nem à parte da dicotomia direita/esquerda nem encampado por um lado apenas do debate; ao invés disso, o que se tem é uma ampla maioria dos que se percebem como de direita - mas também uma parcela muito significativa dos que se consideram de esquerda, como o Paulo Henrique Amorim.
O surto de jobinite do deputado comunista(sic) se deu, claro, na relação do novo Código Florestal, na qual um monte de pegadinhas foram inseridas após o acordo realizado entre diversos partidos. O curioso dessas pegadinhas é que elas se estendem até a pontos que, em teoria, não afetariam em nada o agronegócio, apoiador de Aldo. Assim, foi retirada a proteção a manguezais e veredas; veredas tudo bem, mas que fazendeiro pretende plantar soja num manguezal? Essa encampação leva a sujerir que o antiambientalismo, e não apenas o da bancada ruralista, ganhou novas proporções, para além da irritação quando se impede alguém de dilapidar o patrimônio ambiental brasileiro e ganhar dinheiro pra si; passou a ser uma questão ideológica, movida por um animus quase evangélico.
Curiosamente, ao contrário da maioria de tais questões ideologicamente carregadas, o antiambientalismo não ficou nem à parte da dicotomia direita/esquerda nem encampado por um lado apenas do debate; ao invés disso, o que se tem é uma ampla maioria dos que se percebem como de direita - mas também uma parcela muito significativa dos que se consideram de esquerda, como o Paulo Henrique Amorim.
16.5.11
Defendendo o indefensável, depois eu paro
... dessa vez não uma pessoa, mas o neoliberalismo. Curiosamente, na mesma área, a educação, em que, no comecinho deste blog, defendi outro indefensável, o Bush. Ou melhor: não é bem o neoliberalismo, mas é uma idéia com as bases nele, e especificamente na advocacia dos vouchers educacionais substituindo as escolas públicas (que, em si, é péssima por uma pá de motivos). O programa mexicano Apoyo a la Géstion Escolar funciona assim: dá-se aos pais de alunos matriculados em escolas públicas um estipêndio de uns minguados caraminguás por aluno. Parece similar ao bolsa-família, não? Pois é, mas não é nem um pouco, e é muito menor, e complementar. É que, ao contrário do bolsa-família, que na verdade é um programa de renda mínima condicionado, este tem como receptores, não os pais como indivíduos, mas a associação de pais e mestres. Com isso mata dois coelhos com uma única caixa d'água.
1) Um dos maiores problemas da escola pública, como do serviço público em geral, é a percepção de que se está fazendo um favor ao cidadão atendido, tanto da parte deste quanto do funcionário que o atende; essa percepção é em parte uma questão cultural, mas em parte também resultado de um cálculo material quanto ao funcionamento das coisas: o cidadão atendido não tem como, a não ser muito indiretamente pelo voto (e mesmo a importância deste na elaboração de políticas públicas é questionável), alterar as condições de trabalho e recompensas do funcionário. Assim, a cobrança que teríamos numa escola paga não encontra equivalente numa escola privada. A escola não depende de servir bem à comunidade, e tem como recompensa por fazer isso apenas a satisfação do dever cumprido. A solução mais utilizada para esse problema, a imposição de metas de desempenho em testes padronizados e outros quejandos burocráticos, como metas de desempenho em geral, serve para fazer com que se preocupe em atender às metas, e não em ensinar bem, com aumento da burocracia e do estresse. (O fato de isso geralmente ser imposto como substituição, e não complementação ao salário, piora tudo, claro.) A cobrança direta, com capacidade de influência direta, pela comunidade é mais simples e mais eficaz.
2) Como já demonstrado à exaustão, o ensino que a criança recebe na escola é apenas um ingrediente, às vezes nem tão importante, do seu aprendizado. Parte dos outros fatores, como o famoso capital cultural do Bourdieu, são de certa forma incontornáveis, mas outra parte é sanável pelo estado, como representado pelo próprio bolsa-Família, que corrige a evasão pela necessidade da criança render dinheiro trabalhando e diminui a subnutrição. E dentre estes está a dedicação dos pais ao estudo dos filhos, que é incentivada ao inseri-los numa responsabilidade coletiva.
1) Um dos maiores problemas da escola pública, como do serviço público em geral, é a percepção de que se está fazendo um favor ao cidadão atendido, tanto da parte deste quanto do funcionário que o atende; essa percepção é em parte uma questão cultural, mas em parte também resultado de um cálculo material quanto ao funcionamento das coisas: o cidadão atendido não tem como, a não ser muito indiretamente pelo voto (e mesmo a importância deste na elaboração de políticas públicas é questionável), alterar as condições de trabalho e recompensas do funcionário. Assim, a cobrança que teríamos numa escola paga não encontra equivalente numa escola privada. A escola não depende de servir bem à comunidade, e tem como recompensa por fazer isso apenas a satisfação do dever cumprido. A solução mais utilizada para esse problema, a imposição de metas de desempenho em testes padronizados e outros quejandos burocráticos, como metas de desempenho em geral, serve para fazer com que se preocupe em atender às metas, e não em ensinar bem, com aumento da burocracia e do estresse. (O fato de isso geralmente ser imposto como substituição, e não complementação ao salário, piora tudo, claro.) A cobrança direta, com capacidade de influência direta, pela comunidade é mais simples e mais eficaz.
2) Como já demonstrado à exaustão, o ensino que a criança recebe na escola é apenas um ingrediente, às vezes nem tão importante, do seu aprendizado. Parte dos outros fatores, como o famoso capital cultural do Bourdieu, são de certa forma incontornáveis, mas outra parte é sanável pelo estado, como representado pelo próprio bolsa-Família, que corrige a evasão pela necessidade da criança render dinheiro trabalhando e diminui a subnutrição. E dentre estes está a dedicação dos pais ao estudo dos filhos, que é incentivada ao inseri-los numa responsabilidade coletiva.
13.5.11
Defendendo o indefensável
O indefensável também atende por Gilberto Kassab, ou (dizem as más línguas) Khadija. Com o distanciamento de Kassab do PSDB, a Folha, que é mais tucana do que os próprios tucanos, tem estendido o noticiário negativo sobre ele do caderno Cotidiano ao primeiro caderno. No caderno cotidiano, era uma peculiaridade dos grandes jornais paulistanos em que, ao contrário da maioria dos jornais brasileiros, o caderno local é, de regra geral, crítico quanto aos prefeitos ao ponto do tédio, associada ao fato de a gestão Kassab ser realmente desastrosa. No caderno de política (que é o que na prática o primeiro caderno é), tá mais pra campanha contra. E a última pérola que descobriram foi que aliados do Kassab ganham sinecuras bem remuneradas em conselhos de administração. O que é verdade, e sem dúvida é ridículo o Marco Maciel ser conselheiro da CET (e deixa no chão a aura que de algum modo um sujeito arenista conseguiu, de "político honrado.") Mas porém todavia entretanto... as denúncias fazem parecer que essa é uma peculiaridade de Kassab. Não é. Tanto em empresas públicas como privadas, cargos em conselhos de administração são, como regra, distribuídos assim mesmo. Indica-se alguém que se quer recompensar com uma boquinha, ou então se for importante alguém leal. Quem vocês acham que o Serra indicou pra Sabesp? Antero Paes de Barros e Francisco Luna. O Consad da CEMIG parece um "sociedade mineira," com sobrenomes como Kubitschek e Negrão de Lima. Etc etc etc. Nas estatais federais, isso é em parte até institucionalizado: o presidente do conselho de administração de uma empresa sempre é o ministro ao qual ela está subordinada (não, isso não quer dizer que no caso do BNDES o cargo é preenchido por Deus) ; outra cadeira será preenchida pelo ministro-chefe da casa civil.
Agora pra limpar da boca o gosto de defender Kassab: durante a gestão da Marta Suplicy, a prefeitura paulistana havia elaborado uma cartilha, incluindo um kit e um curso, de introdução à história do negro no Brasil e da África. Foi suspensa por Serra e Kassab, com a alegação de falta de recursos, mentira deslavada já que a verba é federal e continua disponível. Não é apenas que a suspensão seja reacionária - ela contraria flagrantemente uma lei aprovada no Congresso federal. No reacionarismo, em termos de medidas imediatas demonstrando as prioridades, rivaliza com a ministra Ana de Holanda retirando do site do MinC a licença Creative Commons, ou talvez com outra medida de Serra e Kassab, a imposição de "regras mais estritas" para a admissão em albergues de sem-teto. Regras mais estritas quase escancaradamente destinadas a diminuir a procura. A imposição de regras duras, com um suposto cunho moral, destinadas a impedir o acesso à "caridade" do Estado pelos mais miseráveis dos miseráveis, lembra nesse sentido a ação das autoridades do período vitoriano e eduardiano, das poorhouses britânicas aos serviços dos flagelados no Ceará. Taí uma boa bandeira pro partido do Kassab, que por enquanto carece de uma, mesmo que de mentirinha. "Vamos voltar o relógio." Deu quase certo para os conservadores britânicos, que falam descaradamente que bons tempos eram os da rainha Vitória.
Agora pra limpar da boca o gosto de defender Kassab: durante a gestão da Marta Suplicy, a prefeitura paulistana havia elaborado uma cartilha, incluindo um kit e um curso, de introdução à história do negro no Brasil e da África. Foi suspensa por Serra e Kassab, com a alegação de falta de recursos, mentira deslavada já que a verba é federal e continua disponível. Não é apenas que a suspensão seja reacionária - ela contraria flagrantemente uma lei aprovada no Congresso federal. No reacionarismo, em termos de medidas imediatas demonstrando as prioridades, rivaliza com a ministra Ana de Holanda retirando do site do MinC a licença Creative Commons, ou talvez com outra medida de Serra e Kassab, a imposição de "regras mais estritas" para a admissão em albergues de sem-teto. Regras mais estritas quase escancaradamente destinadas a diminuir a procura. A imposição de regras duras, com um suposto cunho moral, destinadas a impedir o acesso à "caridade" do Estado pelos mais miseráveis dos miseráveis, lembra nesse sentido a ação das autoridades do período vitoriano e eduardiano, das poorhouses britânicas aos serviços dos flagelados no Ceará. Taí uma boa bandeira pro partido do Kassab, que por enquanto carece de uma, mesmo que de mentirinha. "Vamos voltar o relógio." Deu quase certo para os conservadores britânicos, que falam descaradamente que bons tempos eram os da rainha Vitória.
12.5.11
Defendendo o indefensável, a vingança
O indefensável, no caso, também atende por Gilberto Kassab, ou (dizem as más línguas) Khadija. Com o distanciamento de Kassab do PSDB, a Folha, que é mais tucana do que os próprios tucanos, tem estendido o noticiário negativo sobre ele do caderno Cotidiano ao primeiro caderno. No caderno cotidiano, era uma peculiaridade dos grandes jornais paulistanos em que, ao contrário da maioria dos jornais brasileiros, o caderno local é, de regra geral, crítico quanto aos prefeitos ao ponto do tédio, associada ao fato de a gestão Kassab ser realmente desastrosa. No caderno de política (que é o que na prática o primeiro caderno é), tá mais pra campanha contra. E a última pérola que descobriram foi que aliados do Kassab ganham sinecuras bem remuneradas em conselhos de administração. O que é verdade, e sem dúvida é ridículo o Marco Maciel ser conselheiro da CET (e deixa no chão a aura que de algum modo um sujeito arenista conseguiu, de "político honrado.") Mas porém todavia entretanto... as denúncias fazem parecer que essa é uma peculiaridade de Kassab. Não é. Tanto em empresas públicas como privadas, cargos em conselhos de administração são, como regra, distribuídos assim mesmo. Indica-se alguém que se quer recompensar com uma boquinha, ou então se for importante alguém leal. Quem vocês acham que o Serra indicou pra Sabesp? Antero Paes de Barros e Francisco Luna. O Consad da CEMIG parece um "sociedade mineira," com sobrenomes como Kubitschek e Negrão de Lima. Etc etc etc. Nas estatais federais, isso é em parte até institucionalizado: o presidente do conselho de administração de uma empresa sempre é o ministro ao qual ela está subordinada (não, isso não quer dizer que no caso do BNDES o cargo é preenchido por Deus) ; outra cadeira será preenchida pelo ministro-chefe da casa civil.
Agora pra limpar da boca o gosto de defender Kassab: durante a gestão da Marta Suplicy, a prefeitura paulistana havia elaborado uma cartilha, incluindo um kit e um curso, de introdução à história do negro no Brasil e da África. Foi suspensa por Serra e Kassab, com a alegação de falta de recursos, mentira deslavada já que a verba é federal e continua disponível. Não é apenas que a suspensão seja reacionária - ela contraria flagrantemente uma lei aprovada no Congresso federal. No reacionarismo, em termos de medidas imediatas demonstrando as prioridades, rivaliza com a ministra Ana de Holanda retirando do site do MinC a licença Creative Commons, ou talvez com outra medida de Serra e Kassab, a imposição de "regras mais estritas" para a admissão em albergues de sem-teto. Regras mais estritas quase escancaradamente destinadas a diminuir a procura. A imposição de regras duras, com um suposto cunho moral, destinadas a impedir o acesso à "caridade" do Estado pelos mais miseráveis dos miseráveis, lembra nesse sentido a ação das autoridades do período vitoriano e eduardiano, das poorhouses britânicas aos serviços dos flagelados no Ceará. Taí uma boa bandeira pro partido do Kassab, que por enquanto carece de uma, mesmo que de mentirinha. "Vamos voltar o relógio." Deu quase certo para os conservadores britânicos, que falam descaradamente que bons tempos eram os da rainha Vitória.
Agora pra limpar da boca o gosto de defender Kassab: durante a gestão da Marta Suplicy, a prefeitura paulistana havia elaborado uma cartilha, incluindo um kit e um curso, de introdução à história do negro no Brasil e da África. Foi suspensa por Serra e Kassab, com a alegação de falta de recursos, mentira deslavada já que a verba é federal e continua disponível. Não é apenas que a suspensão seja reacionária - ela contraria flagrantemente uma lei aprovada no Congresso federal. No reacionarismo, em termos de medidas imediatas demonstrando as prioridades, rivaliza com a ministra Ana de Holanda retirando do site do MinC a licença Creative Commons, ou talvez com outra medida de Serra e Kassab, a imposição de "regras mais estritas" para a admissão em albergues de sem-teto. Regras mais estritas quase escancaradamente destinadas a diminuir a procura. A imposição de regras duras, com um suposto cunho moral, destinadas a impedir o acesso à "caridade" do Estado pelos mais miseráveis dos miseráveis, lembra nesse sentido a ação das autoridades do período vitoriano e eduardiano, das poorhouses britânicas aos serviços dos flagelados no Ceará. Taí uma boa bandeira pro partido do Kassab, que por enquanto carece de uma, mesmo que de mentirinha. "Vamos voltar o relógio." Deu quase certo para os conservadores britânicos, que falam descaradamente que bons tempos eram os da rainha Vitória.
10.5.11
Estados por encomenda
A Câmara de Deputados aprovou a realização de plebiscitos para decidir se vão ser criados dois novos estados a partir do Pará, os estados de Tapajós e Carajás. Hormis os nomes parecidos, os dois estados têm outra característica em comum: sua criação (com todo o respeito pelas pessoas das duas regiões que gostam da idéia) atende a interesses nem tão confessáveis nem tão locais.
O estado de Carajás, por exemplo, poderia logo situar como sua capital o Rio de Janeiro, mais especificamente o prédio que já foi conhecido como "Noivinha do MEC" e situado na Avenida Graça Aranha, nº 26. É onde funciona a sede da ex-estatal Vale ex-do Rio Doce, a maior interessada num estado todinho só pra ela. E boa parte do interesse específico da empresa nesse desmembramento pode se dever ao fato de que, um tanto atrasado, o Pará, com Minas, nos últimos anos tem começado a fazer pressão pelo pagamento do valor justo de royalties sobre a mineração. É que o estado, hoje em dia, em troca dos grandes passivos sociais e ambientais gerados pela mineração, ganha um quase nada. O problema não é apenas a alíquota (apesar desta ser uma das mais baixas do mundo), é que o royalty sobre a mineração no Brasil é faturado sobre uma figura confusa chamada "faturamento líquido," que na prática faz com que a Vale, com um valor bruto da produção mineral de um quarto da Petrobrás, pague menos de um centésimo do que esta paga em royalties. Isso mesmo, menos de um centésimo. (No relatório lincado acima, de 2006 e sem as participações especiais devidas à alta do petróleo, falam em um oitenta e oito avos.)
Do mesmo modo, o estado de Tapajós poderia ter seu palácio de governo na Marginal Tietê, onde fica a sede da JBS, ex-Friboi, que à custa de muito dinheiro público via BNDES se tornou a maior produtora de carne dos EUA e da Austrália, além do Brasil. É que o estado do Pará é amistoso com fazendeiros desmatadores, mas não chega a ser tão ridiculamente amistoso quanto o Mato Grosso, e isso é ainda mais importante num momento em que está para ser aprovado um novo código florestal, que tira responsabilidades por coibir desmatamento do poder federal e as entrega aos estados.
Se os nomes dos estados fossem mais honestos, seria até interessante. "Com a palavra, o nobilíssimo senador por Vale-Inco, rebatendo o argumento de sua excelência o governador de JBS Friboi."
O estado de Carajás, por exemplo, poderia logo situar como sua capital o Rio de Janeiro, mais especificamente o prédio que já foi conhecido como "Noivinha do MEC" e situado na Avenida Graça Aranha, nº 26. É onde funciona a sede da ex-estatal Vale ex-do Rio Doce, a maior interessada num estado todinho só pra ela. E boa parte do interesse específico da empresa nesse desmembramento pode se dever ao fato de que, um tanto atrasado, o Pará, com Minas, nos últimos anos tem começado a fazer pressão pelo pagamento do valor justo de royalties sobre a mineração. É que o estado, hoje em dia, em troca dos grandes passivos sociais e ambientais gerados pela mineração, ganha um quase nada. O problema não é apenas a alíquota (apesar desta ser uma das mais baixas do mundo), é que o royalty sobre a mineração no Brasil é faturado sobre uma figura confusa chamada "faturamento líquido," que na prática faz com que a Vale, com um valor bruto da produção mineral de um quarto da Petrobrás, pague menos de um centésimo do que esta paga em royalties. Isso mesmo, menos de um centésimo. (No relatório lincado acima, de 2006 e sem as participações especiais devidas à alta do petróleo, falam em um oitenta e oito avos.)
Do mesmo modo, o estado de Tapajós poderia ter seu palácio de governo na Marginal Tietê, onde fica a sede da JBS, ex-Friboi, que à custa de muito dinheiro público via BNDES se tornou a maior produtora de carne dos EUA e da Austrália, além do Brasil. É que o estado do Pará é amistoso com fazendeiros desmatadores, mas não chega a ser tão ridiculamente amistoso quanto o Mato Grosso, e isso é ainda mais importante num momento em que está para ser aprovado um novo código florestal, que tira responsabilidades por coibir desmatamento do poder federal e as entrega aos estados.
Se os nomes dos estados fossem mais honestos, seria até interessante. "Com a palavra, o nobilíssimo senador por Vale-Inco, rebatendo o argumento de sua excelência o governador de JBS Friboi."
9.5.11
Oferta e demanda
Responda rápido: qual dos museus abaixo recebeu mais visitantes em 2010?
CCBB-RJ
Museu Rainha Sofia
Galeria degli Ufizzi
Galeria Tate
Rijskmuseum
A resposta, obviamente, é o CCBB-RJ, que está logo atrás, na lista, do Hermitage. O conjunto dos CCBBs, com pouco mais de quatro milhões de visitantes, está entre a Galeria Nacional de Washington e o MoMA de Nova Iorque. (E tem pouco mais da metade do campeão hors-concours eterno, que é o Louvre.) Além dos CCBBs, a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o MASP também entraram para a lista de museus de arte com mais de meio milhão de visitantes no ano passado, sem contar o pavilhão da Bienal.
Agora, quais as nacionalidades dos artistas e curadores envolvidos em três das cinco exposições de arte contemporânea mais populares no mundo em 2010? Isso mesmo. Pela ordem, foram a exposição da sérvia radicada em Nova Iorque Marina Abramovic, no MoMA, a Bienal de São Paulo, e duas exposições no CCBB-RJ. Este ainda tem a exposição temática mais assistida do mundo, com a retrospectiva sobre o Islã. (A revista faz as contas, nessas categorias, por número de visitantes por dia, não total.)
A conclusão parece óbvia: o lugar-comum de que brasileiro não entende de arte e não gosta de ir a museus é falho. Pode até não entender grandes cousas de arte, mas visita museus mais do que muita gente com mais tempo e dinheiro disponíveis para isso. (OK, bem menos do que os japoneses.) E idem em relação a outros equipamentos culturais; a porcaria do zoológico do Rio tem números de visitantes comparáveis aos do zôo de Londres. O que deixa por terra toda a mistificação de que, para a cultura no Brasil, precisamos investir em educação para formar a demanda. Demanda existe, o que falta é oferta mesmo. A maioria dos museus brasileiros tem números de visitantes pífios por um motivo bem simples: são uma porcaria. O Rio de Janeiro tem mais de 120 museus, um número comparável a Londres ou Nova Iorque. São Paulo tem mais de 70, próximo de Madri e mais que o dobro de Bruxelas ou Milão. Obviamente ninguém acha que Rio e SP têm a mesma oferta de museus que esses países; a imensa maioria desses "museus" são coisa que, em outras paragens, quando muito seriam considerados "casas históricas."
Na categoria se encaixa até, de certa forma, o museu que inexplicavelmente recebe loas tanto dos guias 4 Rodas quanto do poder público, que é o Palácio do Getúlio, digo Museu da República. Et pourtant, falta de acervo para fazer museus que prestam não é um problema tão grande assim. O Museu Nacional, hoje largado às moscas, tem a maior coleção antropológica e paleontológica fora das casas de butim dos velhos países colonialistas ou da China, que além de repaginar as exposições na Quinta da Boa Vista serviria para montar subsedes, pelo menos, em cada região do Brasil. Os MAMs e a Pinacoteca, igualmente, poderiam muito bem emprestar parte de suas coleções para museus menores em cidades médias. E os museus de arte contemporânea, ciência, design, e história natural têm uma oferta de material praticamente inexaurível, se alguém, com verba extra mas também com parte daquela ganha com a extinção dos musecos, se dedicasse a construí-los ou reformá-los. E público, pelo visto, mais que garantido.
CCBB-RJ
Museu Rainha Sofia
Galeria degli Ufizzi
Galeria Tate
Rijskmuseum
A resposta, obviamente, é o CCBB-RJ, que está logo atrás, na lista, do Hermitage. O conjunto dos CCBBs, com pouco mais de quatro milhões de visitantes, está entre a Galeria Nacional de Washington e o MoMA de Nova Iorque. (E tem pouco mais da metade do campeão hors-concours eterno, que é o Louvre.) Além dos CCBBs, a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o MASP também entraram para a lista de museus de arte com mais de meio milhão de visitantes no ano passado, sem contar o pavilhão da Bienal.
Agora, quais as nacionalidades dos artistas e curadores envolvidos em três das cinco exposições de arte contemporânea mais populares no mundo em 2010? Isso mesmo. Pela ordem, foram a exposição da sérvia radicada em Nova Iorque Marina Abramovic, no MoMA, a Bienal de São Paulo, e duas exposições no CCBB-RJ. Este ainda tem a exposição temática mais assistida do mundo, com a retrospectiva sobre o Islã. (A revista faz as contas, nessas categorias, por número de visitantes por dia, não total.)
A conclusão parece óbvia: o lugar-comum de que brasileiro não entende de arte e não gosta de ir a museus é falho. Pode até não entender grandes cousas de arte, mas visita museus mais do que muita gente com mais tempo e dinheiro disponíveis para isso. (OK, bem menos do que os japoneses.) E idem em relação a outros equipamentos culturais; a porcaria do zoológico do Rio tem números de visitantes comparáveis aos do zôo de Londres. O que deixa por terra toda a mistificação de que, para a cultura no Brasil, precisamos investir em educação para formar a demanda. Demanda existe, o que falta é oferta mesmo. A maioria dos museus brasileiros tem números de visitantes pífios por um motivo bem simples: são uma porcaria. O Rio de Janeiro tem mais de 120 museus, um número comparável a Londres ou Nova Iorque. São Paulo tem mais de 70, próximo de Madri e mais que o dobro de Bruxelas ou Milão. Obviamente ninguém acha que Rio e SP têm a mesma oferta de museus que esses países; a imensa maioria desses "museus" são coisa que, em outras paragens, quando muito seriam considerados "casas históricas."
Na categoria se encaixa até, de certa forma, o museu que inexplicavelmente recebe loas tanto dos guias 4 Rodas quanto do poder público, que é o Palácio do Getúlio, digo Museu da República. Et pourtant, falta de acervo para fazer museus que prestam não é um problema tão grande assim. O Museu Nacional, hoje largado às moscas, tem a maior coleção antropológica e paleontológica fora das casas de butim dos velhos países colonialistas ou da China, que além de repaginar as exposições na Quinta da Boa Vista serviria para montar subsedes, pelo menos, em cada região do Brasil. Os MAMs e a Pinacoteca, igualmente, poderiam muito bem emprestar parte de suas coleções para museus menores em cidades médias. E os museus de arte contemporânea, ciência, design, e história natural têm uma oferta de material praticamente inexaurível, se alguém, com verba extra mas também com parte daquela ganha com a extinção dos musecos, se dedicasse a construí-los ou reformá-los. E público, pelo visto, mais que garantido.
6.5.11
Aviso a todas as Elzas
Por algum motivo, o default de regime de bens para união estável, no Brasil, não é a separação mas a união parcial de bens. Isso é, todos os bens adquiridos após a união são do casal. Como não foi aprovado o casamento gay, mas apenas a união estável, e apenas no casamento pode-se escolher regime de bens, isso significa que todos os "casamentos" gays até que seja aprovado o projeto de lei da Martha Suplicy serão em regime de união parcial de bens.
Ou seja, aproveitem, que a hora de dar o truque é essa.
...
A sério, parabéns ao Supremo e aos GLBT do país. Que ainda falta muito chão pela frente pode ser visto na forma como O Globo e a Folha de São Paulo noticiaram, há uma semana, a notícia de que um presídio mineiro criaria uma ala para GBT, onde a travestis e transsexuais seria permitido não raparem o cabelo: <a href=http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u568031.shtml>Homossexuais poderão ter cabelo comprido em cadeia.</a>
Momento Regina Duarte
Não é exagero, hipérbole ou histeria dizer que Aldo Rebelo e a bancada ruralista da qual ele faz parte querem acabar com o código florestal, não reformá-lo. O pior nem são os muitos pontos em que a proteção diminui diretamente, ou a anistia aos crimes anteriores, é que o texto da lei proposta por ele é um caso, que não chega infelizmente a ser único, de lei na qual, ao invés de tentar se fechar a interpretação da lei engenhosa (o loophole, como dizem os gringos), faz questão de os abrir ao máximo. Pontos como a isenção de reserva de mato para pequenas propriedades, a classificação da produção de alimentos como "relevante interesse social" que permite ignorar a lei, ou a regulamentação a nível estadual... cada um permite, por si só, o desmatamento de 100% das propriedades rurais em todo o Brasil, do Monte Roraima à Lagoa dos Patos. É de longe a coisa mais importante que ocorre no Congresso brasileiro nos últimos anos, e é até curioso como não causa um décimo da indignação de um escândalo mequetrefe como o mensalão, ou as mordomias do Sarney, ou até as movimentações do Kassab.
Por outro lado, dá pra dizer que a única coisa estranha desse código anti-florestal é que ele demorou muito para aparecer. A bancada ruralista é de longe a mais coesa e poderosa do Congresso, aliás muito mais coesa em suas votações e negociações do que qualquer partido. Isso até deixa a nu o funcionamento da maioria dos partidos brasileiros (com a exceção dos de esquerda e, cada vez menos, do PSDB), que é o de coligações mais ou menos estáveis de blocos de poder estaduais, ligados a caciques. Esses blocos se juntam para conseguir mais poder para seus líderes, e é só. Podem seguir o alinhamento que for necessário, a qualquer dado momento (não à toa, o PSD de Kassab já foi interpretado como "Partido do Serra e da Dilma"), apesar de serem em geral pró-governo e pró-capital. Ao contrário, a bancada ruralista é suprapartidária na medida em que diferentes líderes estaduais (portanto cada um em um partido, para poderem conduzir sua rivalidade nas urnas) reconhecem seus interesses comuns ligados ao latifúndio e ao agronegócio. E é coesa, e segue negociações; se a Kátia Abreu ou o Blairo Maggi assumirem um compromisso em nome da bancada, haverá muito menos desertores do que se Temer ou Sarney falarem algo em nome do PMDB, ou mesmo se Serra e Aécio o fizerem em nome dos tucanos. E tem cada vez mais força - segundo o DIAP, subiu de 122 para 142 deputados na câmara, sem contar agregados.
Até agora, a bancada tinha concentrado sua enorme força na obtenção de benesses arrancadas aos contribuintes, diretamente ou via Banco do Brasil. Assim, deixou o campo livre para que a legislação ambiental brasileira não apenas fosse sendo escorada, como até se aprimorass, como quando áreas de vegetação menos densa começaram a ser protegidas também, ao longo dos anos 90 e 2000; anteriormente, como na época de Dom Diniz, apenas as florestas eram protegidas. Enquanto a indústria garantiu que o Brasil continuaria sendo centro de custos e poluição, vetando normas mais restritivas para si, a bancada ruralista deixou passar a imposição de regras justas para o campo, cada vez mais efetivamente fiscalizadas. Agora chegou a hora da reação. É assustador pensar nisso, mas a devastação do código florestal que desmata antes mesmo de ser aprovado pode ser só o primeiro tiro.
Por outro lado, dá pra dizer que a única coisa estranha desse código anti-florestal é que ele demorou muito para aparecer. A bancada ruralista é de longe a mais coesa e poderosa do Congresso, aliás muito mais coesa em suas votações e negociações do que qualquer partido. Isso até deixa a nu o funcionamento da maioria dos partidos brasileiros (com a exceção dos de esquerda e, cada vez menos, do PSDB), que é o de coligações mais ou menos estáveis de blocos de poder estaduais, ligados a caciques. Esses blocos se juntam para conseguir mais poder para seus líderes, e é só. Podem seguir o alinhamento que for necessário, a qualquer dado momento (não à toa, o PSD de Kassab já foi interpretado como "Partido do Serra e da Dilma"), apesar de serem em geral pró-governo e pró-capital. Ao contrário, a bancada ruralista é suprapartidária na medida em que diferentes líderes estaduais (portanto cada um em um partido, para poderem conduzir sua rivalidade nas urnas) reconhecem seus interesses comuns ligados ao latifúndio e ao agronegócio. E é coesa, e segue negociações; se a Kátia Abreu ou o Blairo Maggi assumirem um compromisso em nome da bancada, haverá muito menos desertores do que se Temer ou Sarney falarem algo em nome do PMDB, ou mesmo se Serra e Aécio o fizerem em nome dos tucanos. E tem cada vez mais força - segundo o DIAP, subiu de 122 para 142 deputados na câmara, sem contar agregados.
Até agora, a bancada tinha concentrado sua enorme força na obtenção de benesses arrancadas aos contribuintes, diretamente ou via Banco do Brasil. Assim, deixou o campo livre para que a legislação ambiental brasileira não apenas fosse sendo escorada, como até se aprimorass, como quando áreas de vegetação menos densa começaram a ser protegidas também, ao longo dos anos 90 e 2000; anteriormente, como na época de Dom Diniz, apenas as florestas eram protegidas. Enquanto a indústria garantiu que o Brasil continuaria sendo centro de custos e poluição, vetando normas mais restritivas para si, a bancada ruralista deixou passar a imposição de regras justas para o campo, cada vez mais efetivamente fiscalizadas. Agora chegou a hora da reação. É assustador pensar nisso, mas a devastação do código florestal que desmata antes mesmo de ser aprovado pode ser só o primeiro tiro.
4.5.11
De porque a Modesta Proposta não era tão absurda quanto Swift o queria, e como coisa parecida foi e é implantada; uma jeremíada
O economista medalhado (ex-reitor de Harvard e secretário do Tesouro americano) Larry Summers ficou infame por ter sugerido que o terceiro mundo estava "sub-poluído." A recomendação dele, seguida por gente como a Thyssen-Krupp, que instalou a CSA no Rio, era de que as indústrias poluentes deviam migrar dos países ricos para os pobres. Agora, como relatado na Economist, pesquisadores noruegueses encontraram evidência estatística de que a recomendação dele foi cumprida pelo primeiro mundo em geral.
A base de medida da pesquisa, e o foco do artigo na Economist, foi a emissão de gases de efeito estufa, um problema global em termos do qual o maior senão dessa transferência, e do fato dela estar oculta da percepção geral, é a questão da culpabilidade moral, em que os países ricos seriam "mais culpados" do que o assumido por algo que afetará a todos. (Mesmo que, anatolefrancianamente, um tanto mais a camponeses bengalis do que a banqueiros suíços.) Mas o cerne do argumento do Summers era, não custa nada lembrar, um tanto mais local e um muito mais macabro: como as vidas de africanos, em termos estritos de produtividade ao longo da expectativa de vida base, valem menos do que as de noruegueses, um africano morto prematuramente pela poluição é uma externalidade negativa de menor custo a ser suportada para a produção de determinado bem. Em outras palavras, africanos deveriam morrer em lugar dos americanos e europeus para que estes pudessem fruir as benesses da indústria.
Não deixa de lembrar as discussões em torno das grandes fomes na Índia ao final do século XIX (que o Mike Davis argumenta que foram essenciais para a criação do que hoje é o terceiro mundo), durante as quais primeiro-ministors e vice-reis deixaram bem claro que a Índia, mesmo durante um apocalipse de seca, doença, e fome, deveria ser um gerador de divisas para a Grã-Bretanha, e não um objeto de caridade. Mais do que isso, mesmo em meio à fome generalizada que matou milhões, deveria, como a Irlanda em muito menor escala e três décadas antes, continuar exportando grãos para a metrópole, para que o preço dos alimentos nesta se mantivesse baixo.
Preços mais baixos nos países mais ricos, graças a um sistema mundial legalmente acionável e largamente legitimizado...lembra alguma coisa?
A base de medida da pesquisa, e o foco do artigo na Economist, foi a emissão de gases de efeito estufa, um problema global em termos do qual o maior senão dessa transferência, e do fato dela estar oculta da percepção geral, é a questão da culpabilidade moral, em que os países ricos seriam "mais culpados" do que o assumido por algo que afetará a todos. (Mesmo que, anatolefrancianamente, um tanto mais a camponeses bengalis do que a banqueiros suíços.) Mas o cerne do argumento do Summers era, não custa nada lembrar, um tanto mais local e um muito mais macabro: como as vidas de africanos, em termos estritos de produtividade ao longo da expectativa de vida base, valem menos do que as de noruegueses, um africano morto prematuramente pela poluição é uma externalidade negativa de menor custo a ser suportada para a produção de determinado bem. Em outras palavras, africanos deveriam morrer em lugar dos americanos e europeus para que estes pudessem fruir as benesses da indústria.
Não deixa de lembrar as discussões em torno das grandes fomes na Índia ao final do século XIX (que o Mike Davis argumenta que foram essenciais para a criação do que hoje é o terceiro mundo), durante as quais primeiro-ministors e vice-reis deixaram bem claro que a Índia, mesmo durante um apocalipse de seca, doença, e fome, deveria ser um gerador de divisas para a Grã-Bretanha, e não um objeto de caridade. Mais do que isso, mesmo em meio à fome generalizada que matou milhões, deveria, como a Irlanda em muito menor escala e três décadas antes, continuar exportando grãos para a metrópole, para que o preço dos alimentos nesta se mantivesse baixo.
Preços mais baixos nos países mais ricos, graças a um sistema mundial legalmente acionável e largamente legitimizado...lembra alguma coisa?
3.5.11
Antecipação
Quando foi lançado o filme Thor, baseado na história em quadrinhos homônima da Marvel sobre o super-herói epônimo, eu comentei que o filme já me dava alegria mesmo antes d'eu vê-lo, porque várias associações de conservadores reclamaram do fato de um dos personagens, Heimdall, ser interpretado por um ator negro, já que os asgardianos são inspirados, um pouco, nos deuses nórdicos. Não que eles fossem racistas, claro, era apenas uma questão de fidelidade histórica. OK, eles são racistas sim, porque fidelidade histórica é o escambau. Mesmo deixando de lado o fato de que os asgardianos são apenas vagamente inspirados na mitologia nórdica, na qual Thor não era parente de Odin e era especificamente descrito como ruivo, nem os Aesir são deuses, e não alienígenas com uma Bifrost canhão de teletransporte, mesmo deixando tudo isso pra lá, se eles não fossem racistas, não teriam se agarrado à cor do Idris Elba como coisa mais destoante da nordicidade do filme. Isso porque o Loki é mesmo Laufeyson, filho de Laufey, na mitologia - mas no filme, esse Laufey é o rei dos gigantes do gelo, e em norueguês (tanto arcaico quanto moderno) Laufey é um nome de menina. O pai do Loki é Farbauti, um gigante cujo nome já foi interpretado pra dizer que ele representaria o raio - o que faria de Loki, meio-irmão e não filho de Odin na mitologia, de certa forma filho do Thor. Um norueguês que assista o filme, a não ser que seja ele mesmo um nazi (o que não é de todo impossível) vai achar muito mais estranho o rei dos gigantes se chamando Ana Maria do que um dos deuses sendo negro.
E o fato de eles terem sido olimpicamente (asgardianamente?) ignorados pela produção do filme muito me alegrou. Faz sentido - a Marvel, cuja encarnação moderna, assim como quase todos os superheróis principais, foram criados por um bando de judeu novaiorquino, mexe com, e contra preconceito, há algum tempo. No que se refere especificamente ao racismo stricto sensu, a editora tem os primeiros personagens de quadrinhos de superheróis negros, desde os anos sessenta - e no começo dos anos setenta lançou um monte de superheróis negros, como Luke Cage (este com sua própria revistinha) e o Irmão Vudu, que - parte até pelo desconhecimento desse bando de judeu novaiorquino sobre cultura negra, parte em atendimento à onda do blaxploitation - em retrospecto têm no seu visual e atitude algo de preconceito também, mas pô, foi bem intencionado.
Na mesma linha do efeito antecipado, e um pouco mais sério do que uns racistas enrustidos chorando por um filme de gibi, o novo código florestal do Aldo Rebelo já está provocando problemas antes mesmo de ser aprovado, com fazendeiros querendo desmatar o máximo possível para se beneficiar da anistia prometida pelo Aldo (hoje, por pressão do governo, foi retirada a anistia do texto, mas ruralistas já avisaram que vão reintroduzi-la durante a votação). O processo é particularmente preocupante porque reverte, rapidamente, toda a luta contra o desmatamento realizada ao longo de quase uma década pelo ministério do Meio Ambiente sob Marina Silva e Carlos Minc. A diminuição do desmatamento ocorrida no governo Lula foi, em boa parte, fruto, mais até do que diretamente da fiscalização que agora acontecia (e ao contrário de soluços temporários para menos anteriores, que só ocorriam em épocas de vacas magras econômicas), da percepção de que o governo não toleraria o desmatamento; em outras palavras, da insegurança jurídica do negócio ilegal. Com o aceno de Aldo Rebelo, os madeireiros e fazendeiros perderam esse medo do investimento soçobrar.
Também é preocupante pela pergunta que levanta: no governo Lula, muitos passaram a idéia de uma oposição entre uma Dilma "Magnitogorsk," comprometida com o desenvolvimento econômico a ferro e fogo, mesmo que implicasse em problemas ambientais e sociais, e as áreas mais, digamos, à esquerda, ou a uma concepção específica de esquerda (que, admito, é aquela com a qual eu mesmo me identifico), que acham que não vale a pena um megaempreendimento a qualquer custo de pessoas deslocadas de seus lares e matas destruídas. A visão Magnitogorsk do mundo hoje é questionada até por economistas, devido ao fato de que os bons índices de desenvolvimento alcançados A) ignoram a dilapidação de ativos não quantificados, e B) no longo prazo, enfrentam tetos de produtividade e retornos decrescentes; mas são muitos os chefes de estado que acham que os números do PIB valem qualquer sacrifício (pelos outros).
Resta saber se Dilma realmente é uma deles. O empenho do governo em negociar um "meio termo" entre o absurdo do código ruralista e o atual (e civilizado) texto, junto com a aprovação explícita a Belo Monte e tácita aos outros grandes projetos de hidrelétricas na Amazônia, indicam que, se não chega a ser, tende muito mais para esse lado do que o governo Lula.
O governador do Mato Grosso, que estimulou o desmatamento ilegal à espera do fait accompli, conta com isso, e esta notícia-editorial (coisa cada vez mais comum no jornalismo brasileiro, que daqui a pouco vira uma blogolândia impressa) do Diário de Cuiabá, oficialista como a maioria dos órgãos de imprensa regionais, resume a filosofia: "Mato Grosso deve praticar o positivismo sempre acreditando que o projeto maior dispensa discussões periféricas, que sempre abrem brechas aos contestadores de plantão contra o desenvolvimento." Discussões periféricas, claro, como cui bono, quem realmente vai lucrar com o "desenvolvimento," e sua contraparte menos famosa, cui malo - quem não apenas não vai lucrar, como só vai é tomar no lombo.
PS falando em representações bem intencionadas mas problemáticas de negros, e só um pouco antes dos heróis blaxploitation da Marvel, olha que bonitinho o ganhador do prêmio nacional [japonês] de literatura infantil de 1969.
E o fato de eles terem sido olimpicamente (asgardianamente?) ignorados pela produção do filme muito me alegrou. Faz sentido - a Marvel, cuja encarnação moderna, assim como quase todos os superheróis principais, foram criados por um bando de judeu novaiorquino, mexe com, e contra preconceito, há algum tempo. No que se refere especificamente ao racismo stricto sensu, a editora tem os primeiros personagens de quadrinhos de superheróis negros, desde os anos sessenta - e no começo dos anos setenta lançou um monte de superheróis negros, como Luke Cage (este com sua própria revistinha) e o Irmão Vudu, que - parte até pelo desconhecimento desse bando de judeu novaiorquino sobre cultura negra, parte em atendimento à onda do blaxploitation - em retrospecto têm no seu visual e atitude algo de preconceito também, mas pô, foi bem intencionado.
Na mesma linha do efeito antecipado, e um pouco mais sério do que uns racistas enrustidos chorando por um filme de gibi, o novo código florestal do Aldo Rebelo já está provocando problemas antes mesmo de ser aprovado, com fazendeiros querendo desmatar o máximo possível para se beneficiar da anistia prometida pelo Aldo (hoje, por pressão do governo, foi retirada a anistia do texto, mas ruralistas já avisaram que vão reintroduzi-la durante a votação). O processo é particularmente preocupante porque reverte, rapidamente, toda a luta contra o desmatamento realizada ao longo de quase uma década pelo ministério do Meio Ambiente sob Marina Silva e Carlos Minc. A diminuição do desmatamento ocorrida no governo Lula foi, em boa parte, fruto, mais até do que diretamente da fiscalização que agora acontecia (e ao contrário de soluços temporários para menos anteriores, que só ocorriam em épocas de vacas magras econômicas), da percepção de que o governo não toleraria o desmatamento; em outras palavras, da insegurança jurídica do negócio ilegal. Com o aceno de Aldo Rebelo, os madeireiros e fazendeiros perderam esse medo do investimento soçobrar.
Também é preocupante pela pergunta que levanta: no governo Lula, muitos passaram a idéia de uma oposição entre uma Dilma "Magnitogorsk," comprometida com o desenvolvimento econômico a ferro e fogo, mesmo que implicasse em problemas ambientais e sociais, e as áreas mais, digamos, à esquerda, ou a uma concepção específica de esquerda (que, admito, é aquela com a qual eu mesmo me identifico), que acham que não vale a pena um megaempreendimento a qualquer custo de pessoas deslocadas de seus lares e matas destruídas. A visão Magnitogorsk do mundo hoje é questionada até por economistas, devido ao fato de que os bons índices de desenvolvimento alcançados A) ignoram a dilapidação de ativos não quantificados, e B) no longo prazo, enfrentam tetos de produtividade e retornos decrescentes; mas são muitos os chefes de estado que acham que os números do PIB valem qualquer sacrifício (pelos outros).
Resta saber se Dilma realmente é uma deles. O empenho do governo em negociar um "meio termo" entre o absurdo do código ruralista e o atual (e civilizado) texto, junto com a aprovação explícita a Belo Monte e tácita aos outros grandes projetos de hidrelétricas na Amazônia, indicam que, se não chega a ser, tende muito mais para esse lado do que o governo Lula.
O governador do Mato Grosso, que estimulou o desmatamento ilegal à espera do fait accompli, conta com isso, e esta notícia-editorial (coisa cada vez mais comum no jornalismo brasileiro, que daqui a pouco vira uma blogolândia impressa) do Diário de Cuiabá, oficialista como a maioria dos órgãos de imprensa regionais, resume a filosofia: "Mato Grosso deve praticar o positivismo sempre acreditando que o projeto maior dispensa discussões periféricas, que sempre abrem brechas aos contestadores de plantão contra o desenvolvimento." Discussões periféricas, claro, como cui bono, quem realmente vai lucrar com o "desenvolvimento," e sua contraparte menos famosa, cui malo - quem não apenas não vai lucrar, como só vai é tomar no lombo.
PS falando em representações bem intencionadas mas problemáticas de negros, e só um pouco antes dos heróis blaxploitation da Marvel, olha que bonitinho o ganhador do prêmio nacional [japonês] de literatura infantil de 1969.
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