Pessoas mais inteligentes que eu já comentaram que o meu humor é um tanto obscuro. Ia dizer às vezes, mas achei que o Serviço de Proteção aos Eufemismos me multaria. Pelo visto não é só o humor - e tanto no caso do humor quanto de outros, isso é um pouco até deliberado, é o prazer da inside joke, mas é muito mais uma falta de capacidade de imaginar o que os outros vão saber (então torna-se enfadonho ou irritante explicar) ou não. Bem, e preguiça. E dificuldade de expressão clara.
Normalmente, eu explico se alguém perguntar, senão assumo que ninguém se interessa. No caso do último post, porém, parece que eu realmente não me expliquei bem MESMO. Então vamos lá:
Primeiro a epígrafe: ela é do livro Neuromancer, de William Gibson, a obra mais famosa de uma corrente da ficção científica chamada cyberpunk. O "sprawl" no qual muitos de seus personagens vivem é o continente norte-americano, transformado ao longo do século XXI numa única, feia e decadente megalópole. O nome também se dá ao desenvolvimento suburbano, que é o assunto do post, especialmente àquele desenvolvimento suburbano que, nos EUA, se inicia após a II Guerra Mundial, e que se baseia no acesso, através de uma densa rede de estradas de rodagem, a loteamentos residenciais de grandes proporções, em que casas grandes (entre 1.200 e 8.000 pés quadrados, a 9 pés o metro) ocupam o centro de terrenos até nove vezes maiores.
Nota - a Amazônia mencionada no post é, pra ele, irrelevante, e ter falado da sua devastação só serviu pra embolar a mensagem, de que o Brasil não é um país de "baixa densidade populacional," já que essa baixa densidade é resultado de se acrescentar à área povoada as extensões da Amazônia, responsável por metade da área do país e um décimo da população. Seria como se alguém dissesse que a Dinamarca tem baixa densidade populacional, contando a Groenlândia (e a minha barbada, como se alguém ao dizer isso tivesse aproveitado pra denunciar o preconceito contra os Inuit). A nota fica aqui porque a devastação da Amazônia é movida pelo mesmo fator que levou à expansão dos subúrbios americanos: terra barata. Com a facilidade de acesso criada pelo automóvel e pelas estradas construídas em ritmo acelerado durante a Idade de Ouro, ter um terreno de mais de 5.000 metros quadrados no subúrbio é mais barato do que ter um quarto-e-sala no centro urbano; muitos centros urbanos mais recentes, nos EUA, nem chegaram a se desenvolver por conta disso, sendo hoje uma bizarra construção em que meia dúzia de arranha-céus, numa área de talvez quatro quarteirões, emergem de um extensíssimo subúrbio. Um dos efeitos colaterais disso é que o custo baixo da terra leva a construções com materiais mais baratos, tentando ocupar o máximo de terra possível (também é a razão dos gramados; a grama demanda baixo investimento inicial, principalmente antes do deslocamento da população americana para o Oeste árido). Assim, uma quase-mansão americana pode ser toda feita de madeira de segunda.
O modelo suburbano americano é o que eu estou criticando aqui, e não o fato de alguém morar em casas ou no subúrbio. Com a maior parte da classe média morando em subúrbios, as cidades européias têm densidades populacionais muito maiores do que as americanas. Não é simplesmente uma questão do tamanho da área ocupada pela família propriamente dita; o acesso exclusivamente automobilístico significa uma área considerável de estradas dedicadas ao automóvel, e as localizações escolhidas por esses loteamentos são, frequentemente, escolhidas pela própria beleza natural que elas destroem. Qualquer dos elementos (condomínios isolados, distância do centro, transporte de carro, grande área individual, preferência por localizações cênicas) desse modelo é inteiramente legítimo individualmente, mas o fato de ele ser acessível a baixo custo gera problemas sociais, ecológicos e econômicos para a sociedade. O problema não é a casa, é a Barra.
No Rio, esse modelo não seria o das casas de subúrbio nos bairros servidos pela estrada de ferro, que são de média densidade populacional, servidos por transporte de média-alta densidade (trens de superfície com cruzamentos), com estrutura urbana (serviços, infraestrutura, etc) antiga. Pelo contrário; o abandono dos antigos bairros operários, a não ser quando a "gentrification" faz deles objetos de especulação imobiliária, é um dos maiores desperdícios da dinâmica urbana capitalista. No caso do Rio de Janeiro, chega às raias do ridículo que uma cidade com problemas de transporte, em que seus bairros burgueses são também vias expressas atoladas de ônibus, privilegie a expansão para uma área mal-servida de infraestrutura, isolada da cidade por um maciço montanhoso, enquanto uma rede de transporte sobre trilhos de uns 200Km é deixada á própria sorte e os bairros por ela servidos vão lentamente se convertendo em terra de ninguém.
É bem verdade, aliás, que o Rio não é um caso muito bom para se pensar o Brasil. Mesmo descontando as "cidades médias" das periferias metropolitanas, hoje a maior parte da população brasileira vive em cidades médias, que são também as que mais crescem - um crescimento que poderia, se um dia a especulação imobiliária aliada ao planejamento "estilístico" parassem de dar as cartas, ser uma pusta oportunidade em termos de planejamento urbano. O Rio é uma das duas megalópoles brasileiras, e nenhuma outra cidade do país parece ter ele ou SP no futuro avistável.
PS pro Guilherme: "Manhattans" se formam em ilhas ou outras situações em que o acesso para fora do centro urbano é difícil; é o caso do Rio e seus morros.
Um comentário:
Perfeito, Tiago.
Já tinha ouvido falar muitas vezes em críticas ao modelo americano de subúrbio (na minha humilde opinião todo subúrbio sempre leva a uma demanda maior por área, inclusive as vias de acesso, ainda que seja apenas uma ruazinha para se chegar no portão de casa), mas não imaginava que no caso deles se tratasse de casas tão grandes com terrenos idem. A banalização disso, sem dúvida, gera grandes distorções.
Na verdade, tinha entendido todo o teu post. Apenas não tinha ficado claro se você criticava apenas o modelo americano em si (que eu não sabia ter casas tão enormes), ou se criticava todas as casas.
Some-se a isso o fato de em qualquer filme americano aparece uma casa de subúrbio (o que poderia ser uma propaganda de seu way of life); curiosamente os filmes europeus têm mais enfase em apartamentos.
Logo, pareceu-me à primeira vista uma crítica EUA X Europa, casa X apartamento. Mas agora está esclarecido esse ponto. :)
Um grande abraço, e feliz ano novo.
PS1: Quando escrevi no outro post: "Porém, quero também ser respeitado no meu direito de querer morar numa casa, sem ser considerado criminoso ou pecador por isso(...)" não tinha em mente a sua pessoa, mas sim alguma lembrança vaga de ideólogos-teóricos-arquitetos-urbanistas que deliram e acham o máximo aquela sopa efervescête e estressante da densidade urbana máxima. Quem gosta disso eu respeito, mas não quero que me imponham esse tipo de estilo de vida (coisa que o Rio de Janeiro, infelizmente, inclina a impor a muitos de seus habitantes).
PS2: No caso do "Manhattan" não seria apenas o rio e seus morros, mas um sistema ferroviário relativamente amplo no subúrbio e inexplicavemente subdesenvolvido. Comprando uma casa no subúrbio não estaria pressionando o mercado imobiliário ultra-inflacionado da zona sul. :)
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