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23.7.12

As preparadas

Com a trágica morte de um empresário numa blitz, na quarta passada, o país parece ter acordado para o fato de que sua polícia mata mais do que qualquer outra. E chegam os questionamentos sobre se isso não seria resultado de a polícia de São Paulo estar "despreparada." Ora, tanto esse questionamento quanto a reclamação habitual quanto à corrupção policial são uma confusão quanto a o que é e pra que serve a polícia no Brasil - e, convenientemente, deixam nos ombros dos policiais a culpa por um sistema do qual eles são apenas a ponta.

Os agentes do monopólio estatal da violência, muitos deles ainda imbricados nas forças armadas por teias de relacionamentos, mesmo na PF e nas PCs, que ao contrário das PMs e dos bombeiros não levam "militar" no nome, são ensinados a ver sua tarefa como antes a manutenção da "ordem" (tradicional e consuetudinária - e portanto com todos os problemas e preconceitos da ordem tradicional, hierárquica) do que a aplicação da lei.  O policial que faz parte de um grupo de extermínio está cometendo um crime, segundo a lei escrita, mas fazendo algo necessário e meritório, pelas suas luzes. E é nisso estimulado por todo o sistema policial. Ele não nasceu querendo "invadir favela e deixar corpo no chão," ele foi ensinado a fazer isso na academia de polícia, no treinamento, pelas ordens vindas de cima, do governador. Há unidades, como a Rota, que foram feitas para servir de grupo de extermínio oficial, acima e além da matança geral - e isso é apregoado por políticos, não escamoteado. Maluf teve a chancela popular para "pôr a Rota na rua" - ie, matar indesejáveis.

E como faz! O estado de São Paulo, que mata mais do que toda a polícia dos EUA, está longe de ser aquele aonde a polícia mais mata gente, proporcionalmente. Mesmo em números absolutos, o Rio de Janeiro não está muito atrás (antes de Beltrame e das UPPs, estava na frente). A polícia brasileira como um todo mata mais gente do que a maioria dos conflitos armados. E essas legiões de mortos comprovam o quanto a questão não é de despreparo, mas de qual a função: em meio a dezenas de milhares de favelados e pobres mortos, apenas ocasionalmente se vê alguém ser morto que não deveria ter morrido. Branco, de classe média. 99.999% de acerto é despreparo? Não é para ser "dura" com os criminosos que a polícia está na rua? Para proteger o cidadão de bem, e só ele? Para ignorar os "direitos dos manos"? Então não se pode chegar a outra conclusão, senão a de que a polícia cumpre o papel que dela se exige admiravelmente. Esse papel é pré-moderno, de antes de sir Robert Peel inventar o que se entende hoje por polícia, que até hoje no Reino Unido é desarmada. É o papel dos esbirros reais, da guarda. Protege-se a coletividade, com toda sua hierarquia, e não cada e todo cidadão.

O problema, portanto, não é de execução (com o perdão do trocadilho), mas de qual o papel que queremos da polícia. A polícia "dura" que protege apenas o "cidadão de bem" e não investiga nada, separada em civil e militar, não serve para coibir a violência e o crime - fato escondido pela redução nas estatísticas de homicídio do Sudeste, que não teve nada a ver com a polícia. Uma polícia obediente à lei e respeitadora de todos os cidadãos - mesmo os criminosos - não é apenas uma questão de humanidade, mas algo necessário se quisermos ter um estado de paz em algum momento, mais duradouro e justo do que o estado de paz conseguido pelo PCC e pelas milícias cariocas. Enquanto matar alguém e bater uma carteira forem ambos crimes puníveis com a pena de morte, não haverá incentivo para que o criminoso se restrinja a bater carteiras. Enquanto ser favelado já tornar alguém "suspeito" (e a pena para suspeição pode ser a morte), o discurso de que o crime não compensa será oco - a punição independe de crime. Ao contrário do que pensam os Datenas e seus seguidores, a polícia "dura" (em que dura significa que ignora a lei) gera o crime e a violência.

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