Todo mundo sabe que, conforme o aforisma Churchiliano, estatísticas não são necessariamente confiáveis. Em geral, se pensa nisso em termos simplistas, como "claro que a estatística vai ser feita para beneficiar quem a gera," o que é uma acusação enorme a um monte de gente, e que em geral não se justifica pela realidade. Há exceções, claro, como a inflação argentina, mas em geral as estatísticas não são simples mentiras, mesmo quando não refletem a realidade. Elas são - como qualquer outro recorte do real - algo problemático quando passa a ser usado como aquilo que podemos compreender da realidade, o que é talvez inevitável. Afinal, é um pouco difícil para aqueles de nós que não somos Mentes da Cultura apreender todo o real a cada instante. O que é realmente interessante, entretanto, é quando conseguimos corrigir essas estatísticas, torná-las mais próximas do real. Ou melhor: em que conseguimos ter uma visão mais precisa do que a estatística mostra.
Um desses casos, e das tentativas mais antigas do mundo de transformar algo subjetivo e referencial em estatística, é a divisão racial brasileira. Não é fácil contar cabeças de cada cor num país em que a atribuição de cor depende da aparência mais do que da ascendência, e pode inclusive variar de acordo com o grupo em que se encontra determinado indivíduo, ou sua posição socioeconômica, "eu já fui preto e sei o que é isso." O método usado pelo Censo, o da autodeclaração, é o único possível por motivos tanto metodológicos quanto éticos; éticos, porque não se pode imputar a alguém uma realidade diferente daquela como se vê, e metodológicos, porque sendo essa realidade complexa e fluida, não funciona a alternativa de treinar todos os recenseadores numa Neue Rassenwissenschaft, para que suas próprias e diversas noções não contaminassem o trabalho.
Mas, todavia, porém, entretanto, esse método certo dá um resultado estatístico que, quando reificado, e mais ainda quando usado comparativamente com outros países, pode ser enganoso. Isso porque existe uma tendência sistemática - bem detalhada pelo Livio Sansone em estudos feitos na Bahia e no Rio - ao embranquecimento no censo. Como ser branco é considerado algo bom, as pessoas A) tendem a se ver como mais brancas do que os outros as vêem, e B) tendem a responder a um agente do governo que lhes inquire que são mais brancas do que se vêem. Em outras palavras, se você tem um grupo de 30 pessoas e 15 responderam que são brancas, o mais provável é que qualquer uma daquelas 30 pessoas, ao olhar para o grupo, só visse umas dez brancas, se tanto.
E daí? E daí que a estatística que diz que metade dos brasileiros são negros (pretos e pardos) não fica lá, sozinha. Ela interage com outras estatísticas. Em outras palavras: sabe essa abissal diferença entre as realidades socioeconômicas de negros e brancos no Brasil? Pois é, ela está subestimada, porque muitos dos "brancos" mais pobres, que puxam a média pra baixo, não são assim tão brancos. (Sem nem contar o lado estatisticamente ponderável disso, que é a subtração regional/ de origem regional, como fazem os americanos com os hispânicos e talvez fosse o caso de fazer aqui com os retirantes.)
Ah sim, e com essa correção passamos a Nigéria como maior país negro do mundo, assim justificando uma imagem como país negro que sugeri aos reaças deste Brasilzão, lá em 2005. :p
Caros amigos.
Reconheço que a tese da "democracia racial" brasileira tem
um valor tradicional que não caberia bem descartar. Afinal, que seria do mundo
sem a tradição? E boa parte da identidade brasileira foi construída a partir
dessa ideologia. Mais do que isso - a própria denúncia da democracia racial
parte da própria, já que o Florestan Fernandes, que foi o primeiro "acadêmico" a
fazer essa denúncia (cinicamente, o primeiro branco, mas cinismo não é
conservador, não é mesmo?), tinha sido contratado pela UNESCO para descobrir o
segredo da falta de racismo, e engarrafar para distribuir mundo afora.
Só
tem um probleminha. Quando vocês usam a democracia racial e a "falta" de racismo
no Brasil pra acusar quem vê racismo de racista, isso pode até fazer vocês se
sentirem bem, mas não engana ninguém. A declaração de que "não existe
preconceito racial, existe preconceito social associado à cor preta" chega a ser
ridícula. Se existe preconceito associado à cor, existe preconceito de cor. E
sinto muito, mas há uma quantidade bastante razoável de dados indicando que
existe, sim, preconceito racial que vai além da ligação com a classe
socioeconômica. Menos do que em muitos outros países, é verdade, apesar de os
dados serem distorcidos, nas metrópoles do Sudeste, pela falta de uma resposta
"paraíba" à pergunta sobre cor/raça. E, por isso mesmo, tenho uma idéia pra
vocês, se quiserem mesmo ser anti-racistas e se opor ao movimento negro ao mesmo
tempo.
Vejam bem, muitos de nós (nós, a elite, quase toda branca a ponto
de gente de países mais segregados ficar com a impressão do Brasil como
especialmente racista) dizemos, até com certo orgulho, que temos ancestrais
negros. Vide o pé na cozinha do Príncipe dos Sociólogos. O problema é que esse
pé é uma afetação, mais do que um sentimento de identidade, e segue os passos do
Gilberto Freyre, em que os brasileiros se misturaram "com" os negros e
índigenas, ou seja "os brasileiros" são os brancos. Todas essas declarações de
amor à democracia racial vêm de um povo que se vê branco, de um país branco com
negros oprimidos. Toda a construção do "brasileiro' desde o Freyre e o Getúlio
passa por isso. Por um lado, se hiperenfatiza o papel dos imigrantes, como se
nós tivéssemos recebido mais deles do que a Argentina ou os EUA, por outro o
"brasileiro" misturado é o peão, é um outro. Tudo bem, a posição desconfortável
de petit bourgeois global que ocupamos não é só nossa, é de todas as elites
subdesenvolvidas.
Vamos ser sinceros. Há racismo no Brasil, há uma
desigualdade racial imensa, e isso tem que ser remediado. E não vai ser
remediado através de políticas neutras, ou sequer de políticas dirigidas aos
pobres, já que uma condição socioeconômica equivalente não elimina o racismo.
Que o digam os judeus. Então, o que fazer, se você é um conservador e abomina o
movimento negro, ações afirmativas e o escambau? Não estou dizendo que isso faz
de você um racista, existem bons motivos nacionalistas para não gostar de algo
que é uma forma de nacionalismo rival. E olhe só, a declaração de que status
socioeconômico e educacional não acaba com o racismo, se você pensar bem, também
serve contra as cotas.
Que tal uma idéia - fazer uma campanha
nacionalista capitalizando em cima do fato de o Brasil ser um país mulato? Não um país "que se
misturou com negros e com indígenas," um país negro mesmo, no
sentido mais amplo? Que tal enfiar retratos do Machado de Assis, do Lima
Barreto, do André Rebouças, do Abdias do Nascimento, do Luiz Gama, para competir
com a imagem do Zumbi? Dizer que afro-brasileiro é pleonasmo, lembrando que a
civilização brasileira foi feita por mulatos, que antes de trazerem os
imigrantes para embranquecer o país até a elite era mulata, como observou o
Gobineau (que, afinal, era um especialista...)? Mandar a Globo retratar isso nas
novelas de época, ao invés daquele quadro que acaba parecendo mais o Antebellum
na Geórgia do que um engenho de café no Vale do Paraíba? Desarianizar a história
do Brasil? Incentivar a história da África e das relações desta com o Brasil nas
escolas? Em suma, fazer um nacionalismo da democracia racial que não fosse mais
baseado num ator central branco que não tem preconceitos?
Não sei se ia
adiantar. Mas pelo menos vocês poderiam alegar estar fazendo alguma coisa contra
o racismo, ao invés de só ficar dizendo que quem tenta enxotar o rinoceronte que
está na sala é culpado pelo rinoceronte.
PS o título, evidentemente, é uma alusão à música "Haiti," de Gil e Caetano. E ironicamente, já que o que este post defende é justamente que, se para a PM o quase branco é quase preto de tão pobre, para o Censo ele é branco.
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