Apesar do Dirceu ter caído há já um tempo (dizem as más línguas que por conta de ter tentado, no início do governo, bater de frente com a Febraban), ainda é forte o campo, no governo e fora dele, que quer ver Angra III sendo construída. É bem verdade que hoje o campo dos
ashuras dos ambientalistas se mudou em grande parte de Angra pro
Rio Madeira, com o hidrelétrico Silas Rondeau no ministério de minas e energia.
A idéia de completar Angra III só porque "já se gastou dinheiro nisso" não faz o menor sentido. O dinheiro gasto já foi enterrado, não vai ser recuperado, e o dinheiro que falta não é pouco, comparando com o investimento em uma usina termelétrica fóssil, eólica, ou hidrelétrica. Apesar disso, eu sou a favor da construção da usina - não em si, mas como parte de um plano de usinas nucleares brasileiro. A necessidade desse plano se baseia na idéia, defendida num post anterior, de que a restrição dos gases de efeito estufa interessa ao Brasil, e setores emissores como energia e transporte - hoje minoritários no Brasil e majoritários no mundo - tendem a crescer muito, mesmo sem crescimento econômico e muito mais com.
As alternativas não-carboemissoras de geração de energia dividem-se entre experimentais e comerciais. As primeiras geralmente têm algo a ver com o mar: energia das
ondas, de
correntes marítimas, da
diferença térmica entre as profundezas e a superfície, mas também coisas cyberpunk como biocombustíveis de micróbios (que não seriam plantados, mas produzidos), e usinas solares no espaço mandando microondas para antenas receptoras na terra. Esta última opção teria custo proibitivo (inclusive em termos de carbono, já que o foguete a combustão usado pra pôr as tais centrais lá em cima polui que é uma beleza), mas tem uma versão corta-custos verdadeiramente alucinada: ao invés de se construir vários satélites geoestacionários de microondas, manda-se uma única máquina de Von Neumann, isto é, que pode criar outra igual a si mesma, pra lua. Lá, o robozinho vai se reproduzindo até cobrir a Lua inteira de robozinhos-usinas-solares conectados, dos quais um cinturão "equatorial" se converte nos emissores de microondas. Então, ao invés de meia dúzia de satélites com alguns Km2 de área, teríamos
milhões de Km2.As comerciais são, pela ordem de preço, solar, eólica, nuclear, biomassa, e hidrelétrica. A hidrelétrica é a mais barata de todas, e ainda por cima a mais confiável, mas no Brasil fica muito mais cara porque os grandes aproveitamentos perto dos consumidores já acabaram. O plano reativado da Eletrobrás, de enfiar três mega-barragens no Rio Madeira, vai perder no caminho até São Paulo quase um terço da energia, transformada em calor. Fora transformar o rio Xingu, que é um rio de corredeiras e grande variação sazonal, em um rio estático, com consequências...não muito boas, digamos...bem ruinzinhas para o ecossistema circuncidante, aí incluídas as comunidades indígenas e ribeirinhas.
Pausa pra explicar o "confiável": energia elétrica té contada de dois jeitos, o watt e o watt-hora. Sim, o watt-hora nada mais é do que um watt por uma hora, mas as duas medidas se tornam independentes quando você lembra que a energia elétrica, ao contrário de outros materiais (e até de outras formas de energia) não pode ser armazenada em grande escala. Então, como o consumo não é estável ao longo do dia, ser capaz de suprir o consumo total anual (em w/h) não é o bastante, porque você não vai ter energia (w) pra ligar o chuveiro elétrico. Uma usina elétrica também é medida pela sua "capacidade," isso é, quanto tempo ela fica funcionando, e quanto tempo parada. Uma hidrelétrica funciona 97% do tempo, salvo secas extemporâneas; uma térmica, uns 60-70%; uma eólica idem, mas você não programa quando os 40-30 vão aparecer. A combinação disso tudo quer dizer, por exemplo, que Itaipú é responsável por "só" um sexto da capacidade de geração nacional (14GW de ~88), mas por um quarto da energia gerada por ano (~90TWh de ~360); Itaipú fica ligada o tempo todo, e nos períodos de pico as térmicas são ligadas também. Isso tudo significa que, quando alguém põe no jornal que a usina tal "gera não sei quantos Mw," isso não quer dizer muita coisa.
Também significa que os números são fáceis de torturar; o lobby dos moinhos de vento alega que os ditos são mais baratos, já, do que térmicas nucleares e a gás natural (não do que as movidas a carvão), medindo em dólares por quilovate de capacidade de geração. O poroberema é que, não sabendo quando elas vão estar funcionando, as bichas até funcionam como parte de um sistema integrado (principalmente um do tamanho do Brasil, em que dificilmente vai morrer o vento ao mesmo tempo na Lagoa dos Patos e em Natal), mas você precisar de mais quilovates delas do que de térmicas, cujas desativações podem ser coordenadas com antecedência (de preferência na primavera ou no outono), pra manter a capacidade de geração total do sistema no mesmo nível.
Usinas de biomassa podem ser unifuncionais - isso é, igualzinha a uma usina térmica fóssil, mas com combustível plantado, mas esse modelo, porque você gasta energia (inclusive fóssil) pra plantar, não é lá muito eficiente. A maioria das usinas de biomassa, então, queima lixo, seja lixo orgânico urbano ou sobras de colheita. Ainda tem muito espaço pra expansão das usinas de biomassa no Brasil, principalmente a partir da cana e do lixo urbano, mas usinas de biomassa desse tipo geralmente são dedicadas: a maior parte da energia delas é usada pra processar o próprio lixo ou cana de açúcar (reciclando um, transformando em álcool e açúcar a outra).
Usinas eólicas são provavelmente a melhor opção para o Nordeste, e uma solução ideal para o Brasil; os únicos problemas ambientais relevantes delas são meia dúzia de pássaros mortos - menos do que, digamos, morrem batendo em janelas - e a poluição sonora local. O problema é o preço, principalmente se você levar em conta as perdas na transmissão, do São Francisco ou do Rio Grande do Norte até São Paulo e Rio. E que tem um limite aproveitável economicamente, como no caso das hidrelétricas. É uma quantidade de energia muito grande, maior do que a capacidade de geração de Itaipú, mas ainda é limitada, e nem de longe o bastante pra suprir as necessidades energéticas de um país de 200 milhões de habitantes se o consumo sequer se aproximar do de um país desenvolvido. Usinas solares são melhores ainda, e o limite de aproveitamento de energia é muito maior, mas são muito mais caras.
Então, chegamos à energia nuclear. Você pode construir uma usina nuclear perto dos centros consumidores, como em Angra; isso na prática significa que 1000MW de energia nuclear rendem tanto quanto 1200MW de energia hidrelétrica, mesmo levando em consideração as paradas periódicas para reabastecimento e manutenção da nuclear. Isso assumindo Itaipú; se você comparar com as usinas programadas pela Eletrobrás no Rio Madeira, que tão mais perto de Caracas que do Sudeste ou Nordeste, a vantagem é bem maior. Isso, claro, é a mesma vantagem que qualquer térmica pode alegar; a diferença está na liberação de carbono. Bem, não só na liberação de carbono: sabe Tchernoby'l? Pois bem,
qualquer usina de carvão de tamanho equivalente matou mais gente ao longo da sua vida útil. Como acontece no pingado, e com mineiros de carvão ao invés da população geral, não choca. Morrem mais mineiros de carvão todo ano no mundo do que morre gente na maioria dos conflitos. Só na China, a maior produtora do mundo, podem ser mais de vinte mil mortos todo ano. Só no acidente, sem contar as vítimas do Black Lung, a tropa de doenças pulmonares associadas à mineração de carvão. Sabe aquelas imagens de mina de carvão da revolução industrial de livro de história do ensino médio? Pois bem, aquilo continua sendo uma mina de carvão subterrânea. Claro que uma mina de urânio não é o paraíso das 77 huris, mas a escala é completamente diferente.
Alguns dos defeitos da usina nuclear também são comuns a termoelétricas em geral. Por exemplo: às vezes alega-se que elas seriam melhores do que uma hidrelétrica porque não detonam um rio. Só que uma usina térmica usa uma quantidade brutal de água pro seu resfriamento, que é devolvida à natureza vários graus mais quente. "Poluição térmica' não é frescura; o ambiente aquático perto de uma usina é geralmente estéril. Em alguns casos, isso é utilizado para aquecimento residencial depois, mas acho difícil muita gente gostar da idéia de ter água aquecida por um reator nuclear. (Apesar da popularidade das águas minerais radioativas. Vai entender.)
Outros defeitos são só delas: por exemplo, o risco catastrófico. Tudo bem, eu disse que no agregado uma usina nuclear não mata tanta gente quanto uma térmica, mas bem - isso não muda o fato de que é mais fácil pôr os outros a perigo, principalmente os que, como os soldados e mineiros de carvão, são voluntários. (Na
França, os "veteranos do trabalho" têm alguns dos mesmos direitos e honrarias dos veteranos de guerra, o que me parece bastante razoável, já que arriscam a vida "pela nação" do mesmo jeito, fora não serem assassinos.) Fora que se, para reduzir o custo de transmissão, você enfia uma usina nuclear no vale do Paraíba, você está pondo em risco uns 10 milhões de pessoas. Se puser vento acima de São Paulo, então...Tchernoby'l foi o pior desastre nuclear que aconteceu, mas não o pior concebível; um risco baixo, mas catastrófico, vale a pena correr? Qualquer programa nuclear deveria ser precedido de um debate a sério, com direito a audiências públicas e associação de moradores, quiçá plebiscito nas áreas afetadas, sobre isso. Novas tecnologias, como o
leito de cascalhos radioativos, diminuem em muito o risco de uma explosão do reator, é verdade, mas não seria o caso de Angra 3, a ser construída com tecnologia velha. E essas novas tecnologias são caras - tanto usá-las quanto reforçar a carapaça de concreto são estratégias de redução de risco que fazem com que a alegação de que as usinas nucleares são econômicas deixe de ser verdade.
Falando em preço, outro problemitcho é intensificado no caso brasileiro: assim como a comparação entre o quilovate de geração eólico e o térmico é uma meia-verdade, é uma meia verdade a comparação entre o custo de uma usina nuclear por quilovate e o de uma eólica. Isso porque eólicas são construídas em unidades de 1 a 3MW, enquanto você precisa completar uma unidade de mais de mil megavates antes de começar a gerar energia nuclear, e demora mais pra começar a operar. Num país em que a taxa básica de juros tem dois dígitos, essa diferença não é nada insiginificante; contando os juros, a usina nuclear fica muito mais cara. Pra completar Angra 3, o investimento seria equivalente ao da refinaria petroquímica planejada pela Petrobras ou da Replan - isso o investimento novo. Contando o que já se gastou (isso, repetindo, não deveria influenciar a tomada de decisões agora), acho que Angra 3(1.2GW) fica atrás, em termos de projetos brasileiros, só de Tucuruí (8GW) e Itaipú (14GW).
Pra não dizer que eu só soltei um monte de coisa sem dar opinião ou conclusão: o uso de usinas nucleares representa a única alternativa viável, a médio prazo, pro Brasil e pro mundo. Existem alternativas melhores, que precisam receber muito mais dinheiro de pesquisa, mas se continuarmos usando combustíveis fósseis até elas serem econômicas, vamos começar a usá-las no mundo maravilhoso do
Kevin Costner. (O filme, se não me engano, foi considerado pelo júri dos troféus framboesa pra receber o prêmio "pior do século," mas foi derrotado pela obra-prima "A Reconquista," que alterou o nome do prêmio pra "pior de todos os tempos."