Há tempos atrás, comprei a edição especial da Revista de História da Biblioteca Nacional sobre história da ciência no Brasil. Lá, lia-se que (parafraseado) "os índios brasileiros (tupinambás) descobriram a influência da Lua nas marés antes de Galileu e Isaac Newton." No mesmo registro, num curso na USP ouvi que o conceito de axé da cultura africana (iorubá) é a mesma coisa, e antecede, a teoria da relatividade.
Ora, as duas afirmações, como muitas outras que você verá por aí se cavar um pouco, são uma muito bem intencionada e rematada bobagem. E uma bobagem que se baseia numa confusão absurda do que seja a história da ciência, ou a própria ciência. E uma bobagem que, no limite, tenta combater o racismo e o etnocentrismo e acaba por ser vulnerável, ela mesma, a acusações de racismo ou, pelo menos, estereotipização e etnocentrismo.
Pra ser claro: Isaac Newton e Albert Einstein
não simplesmente disseram "a lua tem influência sobre as marés" ou "o universo é todo feito de energia." A observação de que a lua tem influência sobre as marés é comum a quase todos os povos de que se tem notícia, do Kalahari à terra de Arnhem, à Suméria e ao Egito antigos. Astrônomos persas situaram essa influência lunar dentro do contexto de um sistema heliocêntrico em 200 antes de Cristo. O que Newton fez de novo e importante foi explicar como essa influência se dá, através da gravidade. (Galileu tentou explicar pela rotação da Terra, erradamente.)
A idéia de axé, de que tudo é constituído por uma força vital mais ou menos concentrada, parece superficialmente com a noção relativística de que massa e energia são intercambiáveis, mas parece mais com as cascatas de luz originadas no Empíreo, do
Abade Suger, no século XII ou o monismo do sopro de
Adi Sankara no IX. Assim como Newton, a teoria de Einstein é notável, além de por sua explicação absolutamente materialista (e não mística), por ser uma explicação detalhada (e matemática) de processos, não uma declaração ontológica. e=mc^2 não é outro jeito de dizer que massa é relativa, é uma equação específica de conversão.
A confusão é, sem dúvida, bem intencionada. A idéia é mostrar que africanos e índios não são "primitivos," mas sim seres humanos capazes de realizações tão importantes quanto as do europeu. Os problema todo é que, por não entender bem o que é ciência, se acha que a ciência pode ser definida por declarações vagas, sendo o detalhamento e a matemática apenas minúcias teológicas; se trata ela como um sistema cosmológico, e não como o que é, algo até mais modesto - um sistema e uma atitude de apropriação e processamento de informação (existe uma disciplina científica chamada cosmologia, mas ela se refere ao universo observável para além das fronteiras de nosso planeta, e não a um Cosmos que a tudo açambarca). E quem acha que os (outros) deveriam ter feito a mesma coisa por outros caminhos não se dá conta de que as descobertas científicas de Newton e Einstein se deram, não graças à superioridade da cultura européia, mas graças a esse sistema empírico e científico, como acumulado através da escrita, que tem uma linhagem não apenas européia mas também árabe e se valeu de matemática desenvolvida na Índia e na Pérsia. Ou seja, um edifício multiétnico no qual os europeus foram apenas responsáveis pelos últimos andares.
Não é demérito aos iorubás (atemporais, ficou subentendido) não terem descoberto a teoria da relatividade (como tampouco o fizeram os europeus até 1905). Não é demérito dos tupinambás (ao se eliminar o "brasileiros," pode-se eliminar também o "índios") do século XVI não terem elaborado a teoria da gravitação universal, como tampouco o fizeram os europeus do século XVI (e os dos primeiros 87 anos do XVII). E a tentativa de mostrar como eles são fodas esbarra num duplo etnocentrismo: o primeiro ao achar que o valor do ser humano só pode se dar através da comparação vantajosa com o europeu, medida de todas as coisas; o segundo ao efetuar a metonímia pela qual tupinambás e iorubás viram "índios" e "africanos."
Os tupinambás tinham, realmente, uma astronomia lunar razoavelmente sofisticada, que incluía a previsão de marés e pelo visto era bem mais completa do que a grega do tempo de Péricles ou Alexandre o grande e ninguém acha que Aristóteles ou Platão eram selvagens uga-buga. Os iorubás (e não a África, continente mais diverso de todos) têm cosmologias e mitologias riquíssimas, comparáveis às de qualquer outro povo - e que não são as mesmas hoje que há quinhentos, ou mesmo cinquenta anos. Nem são uma só para todos os iorubás. Nenhum dos dois povos se sentiria muito lá lisonjeado, imagino, ao servir de mera metonímia para uma denominação geográfica, como se tupinambás e marajoaras, iorubás e etíopes, ao longo de séculos e milênios, fossem uma cultura só.