A discussão em torno da abertura dos arquivos da ditadura - ou melhor, do que sobrou deles, já que muitos foram queimados sem que ninguém fosse por isso punido - é geralmente posta em termos de justiça. A revisão da lei da anistia, tão temida pelos generais, não é objetivo explícito das comissões da verdade apenas por medo (ou estratégia, chamem como quiserem) da outra parte, porque o objetivo real é mesmo punir, ainda que apenas através da vergonha e do opóbrio públicos, aqueles torturadores. Não é tão forte a idéia de que os arquivos, não só os da ditadura, mas todos, deveriam ser pesquisados. O Brasil não prima pela conservação de sua história. A frase poderia parecer estranha, tendo em vista todas as discussões em torno da sua história, da ditadura militar à guerra do Paraguai, dos quilombos. Mas é que, assim como aquele historiador francês da III República descrito pelo Toynbee que dizia que os caminhos neolíticos já respeitavam as fronteiras do Hexágono, a França moderna (ao contrário do que fez todo mundo entre eles e Luís XVI), essas querelas apaixonadas prescindem da verificação.
O Brasil não é exatamente o país dos arquivos e arquivistas. Nossos grandes historiadores admirados (fora dos círculos profissionais) o foram por estabelecer teses que resumiam o caráter nacional (essa Kultur sempre em discussão, sempre elusiva), não por obras laboriosas e detalhadas. Com todo o respeito aos tijolões do Freyre, mas se trata do espírito em que a obra é acolhida - e é, claro, uma percepção subjetiva minha. Talvez por isso - e aí é uma questão objetiva - o Brasil sempre tenha sido pródigo com seus arquivos. Os milicos estão em boa companhia, sincrônica e diacronicamente: Ruy Barbosa, com a melhor das boas intenções, queimou arquivos da escravidão, e a Justiça brasileira se prepara para eliminar arquivos em massa, sob o grandiloquente nome de Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário.
Atente-se para a desculpa deste último para a fogueira: trata-se de fazer o que, de outro modo, o tempo faria, preservando "o importante." (Ou melhor, aquilo que um pesquisador contratado pelo tribunal, hoje, considera importante.) Não deixa de ser verdade, quando se constata o estado dos arquivos brasileiros em geral. A historiadora Laura de Mello e Souza, em seu "Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue"*, comenta sobre o choque cultural ocorrido ao, acostumada a penar em arquivos brasileiros, encontrou os bem-cuidados arquivos do India Office britânico. Na Alemanha, os nazistas queimaram livros em praça pública, mas em compensação (talvez querendo se afirmar perante uma burocracia estatal que lhes desprezava pela incompetência) mantiveram arquivos detalhados, se não muito bem organizados, de todas as atrocidades que cometeram.
Não são só os juízes que acham que manter arquivos é caro e inútil no Brasil, ou pelo menos que se pode escolher agora o que é importante. É, quando sincero, uma onipotência em relação à história futura curiosa; não creio que um inquisidor do século XVI fosse selecionar para ser preservado o caso de um maluco que dizia que o mundo era um queijo. E assim, quem for pesquisar sobre teatro de marionetes ou mesmo candomblé no Brasil encontra, frequentemente, mais fontes na Argentina - veja bem, não fontes na Argentina sobre a Argentina, fontes na Argentina sobre o Brasil. (São dois casos citados nas últimas edições da Revista de História da Biblioteca Nacional.) Fica a pergunta: até quando vai ser possível lutar pela abertura dos arquivos da ditadura, sem que estes tenham sido queimados por inteiro?
*Daria nome para duas bandas góticas fácil.
PS a mesma pergunta é válida para quem sugere riscar os generais-presidentes de seus numerosos topônimos. Até quando pode-se tirar os nomes do elevado e da ponte Costa e Silva, sem que tenha prescrito - ou que, num exercício muito mais amplo, tiremos também as Presidentes Vargas, Marechais Florianos, Dom Pedros...
PPS é curioso que os arquivos estejam envelhecendo mais depressa do que se renovam a cabeça dos generais. Aparentemente todos os presidentes democráticos, de Collor em diante, trataram o ensino nas Agulhas Negras ou na Ilha de Villegaignon como irrelevância a ser deixada a cargo dos militares, ao invés de uma oportunidade de formar um oficialato democrático (e minimamente competente). Quando Dilma fala hoje de renovar um instituto militar é o ITA, para formar engenheiros, mas das Agulhas Negras (ali pertinho do ITA, igualmente encravada no Vale do Paraíba) nada se fala.
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